Alvaro Bianchi
Louis Althusser está de volta? O autor dispensaria apresentações. Como poucos de sua geração marcou a conformação do campo intelectual francês e fez sentir sua forte influência na Inglaterra, Itália, Estados Unidos e América Latina. Sua obra, fortemente marcada pela polêmica, gerou reações antagônicas, despertou simpatias e antipatias, organizou adeptos e opositores, motivou a apropriação acrítica e a crítica inapropriada. Inserindo sua obra explicitamente na conjuntura política de sua época, Althusser exigiu nos anos 1960 e 1970 uma apaixonada tomada de partido.
Passados mais de 20 anos de sua morte outro Althusser reaparece. Menos apaixonante, é verdade, mas filosoficamente mais complexo. Imediatamente depois de seu desaparecimento teve início na França um importante movimento de resgate da obra de Althusser e de edição póstuma de suas obras, em grande parte inédita e localizada nos arquivos do Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (Imec). Já em 1992 foi publicada uma primeira edição de sua autobiografia, a qual alcançou um estrondoso sucesso editorial (ALTHUSSER, 1994). Seguiu-se a publicação dos escritos sobre a psicanálise de seu diário da prisão, redigido durante seu cativeiro na Segunda Guerra Mundial e de escritos filosóficos e políticos (ALTHUSSER, 1993 e 1994a e 1997), além de novas edições de Pour Marx e Lire Le Capital.[1]
É possível ter agora uma idéia mais abrangente da complexidade da obra althusseriana, de seus diferentes momentos e de suas múltiplas dimensões. O conhecimento agora possível é certamente crítico, como todo conhecimento efetivo, mas trata-se de uma crítica serena e rigorosa cujo único parti pris é o estudo aprofundado de sua obra e de seu contexto. Os novos textos que estão à disposição permitem abordar de modo mais circunstanciado as relações entre filosofia/política, filosofia/filosofia política, esclarecendo a profunda tensão interna existente no pensamento de Althusser a respeito dessas relações.
A relação era tensa, como já foi dito, mas o próprio filósofo da rue d’Ulm se encarregou de evidenciar essa tensão em mais de uma oportunidade. A tensão já estava posta na forte distinção entre prática teoria e prática política que foi feita em Pour Marx. O conceito de prática sobre o qual se base essa distinção era, entretanto, um só. Recorrendo a O capital, e particularmente a sua seção IV, embora não a citasse nesse ponto, Althusser definia prática como “todo processo de transformação de uma determinada matéria-prima dada em um produto determinado, transformação efetuada por um determinado trabalho humano, utilizando meios (‘de produção’) determinados.” (1979, p. 144). Esse conceito abrangente de prática lhe permitia afirmar uma certa unidade entre prática teórica e prática política concebidas como partes integrantes do conjunto do processo de transformação social, ou seja, como partes de uma mesma prática social.
Mas aquilo que era reunido conceitualmente não se encontrava unificado concretamente. O conceito de teoria e de prática teórica que era a seguir apresentado por Althusser dificultava em grande medida essa unificação. Por teoria, o filósofo da rue d’Ulm entendia “uma forma específica da prática” (idem, p. 144) e, particularmente, uma “prática teórica científica” (idem, p. 145). Mas para chegar ao ponto no qual pretendia se viu obrigado a estratificar a prática teórica. Desse modo, ele distingue: 1) a “teoria”, as diferentes práticas que comporiam uma ciência, com seus conceitos, enunciados e leis; e 2) a Teoria, “a teoria geral, isto é, a Teoria da prática em geral, que transforma em ‘conhecimentos’ (verdades científicas), o produto ideológico da práticas ’empíricas’ (a atividade concreta dos homens) existentes”. A Teoria seria, desse modo, “a dialética materialista que não constitui mais do que um só todo com o materialismo dialético.” (Idem, p. 145.)
Estabelecer a relação entre teoria e prática era, então, em primeiro lugar, estabelecer a relação entre teoria e Teoria, ou seja, entre um sistema teórico dado, como por exemplo, o materialismo histórico, e o sistema metateórico que lhe permitiria chegar ao conceito de sua própria prática:
“É nesse duplo sentido que a teoria importa à prática. A ‘teoria’ importa à sua própria prática, diretamente. Mas a relação de uma ‘teoria’ com sua prática, na medida em que está em causa, interessa também, com a condição de ser refletida e enunciada, à própria Teoria geral (a dialética), onde se exprime teoricamente a essência da prática em geral, e através desta a essência das transformações, do ‘devir’ das coisas em geral.” (idem, p. 146.)
Mas em que sentido a prática importaria à teoria ou à Teoria? Qual é o efeito da luta de classes sobre o “conhecimento verdadeiro”. Sobre esse efeito, da maior importância tanto para a teoria como para a prática, nada é dito. Segundo Althusser, Lenin em Que fazer? ao afirmar que “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário” teria não apenas lembrado à prática política a necessidade da teoria, ou seja, da análise da formação social russa, como também, enunciado a necessidade para a teoria da Teoria.[2] De fato, Lenin nos textos que escreveu em polêmica com o populista Nicolai Mikhailovski, afirmou que “os marxistas tomam da teoria de Marx, sem restrições, apenas os métodos mais valiosos, sem os quais uma elucidação das relações sociais é impossível” (LCW, v. 1, p. 194).
Mas, diferentemente de Althusser não havia em Lenin uma separação radical entre o materialismo histórico (teoria) e o materialismo dialético (Teoria), nem esse imperialismo metodológico da Teoria, na qual o filosofo da rue d’Ulm insiste a todo momento, o qual permitiria a esta assumir a função de garantia da “verdade” distinguindo-a precisamente do erro, desde que corretamente aplicada pelo filosofo. Mas por que insistir nessa separação? Ela seria necessária para retirar a Teoria da história: “a filosofia não tem história (no sentido em que a ciência tem uma história)”, afirmava Althusser (1978, p. 44) em sua resposta a John Lewis. A Teoria seria, portanto, opaca ao materialismo histórico.
Althusser sabia, entretanto, que a filosofia não era estranha a luta de classes e nessa mesma resposta insistiu que “a filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria” (idem, p. 44). Um crítico mais apressado poderia apontar uma contradição entre as teses que “a luta de classes é o motor da história” e a filosofia é luta de classes e a tese de que a filosofia não tem história. Mas essa contradição não existiria para Althusser. A filosofia não teria história porque lhe seria externa.
A separação entre materialismo histórico e materialismo dialético bloqueavam a possibilidade do materialismo histórico assumir como objeto o materialismo dialético. Nesse ponto, o sofisticado Althusser não estava distante do pragmático Stalin que destacava a distinção entre materialismo histórico e materialismo dialético e na impermeabilidade destes ao próprio materialismo histórico, em um livro de uma espantosa indigência teórica (STALIN, 1982).
Essa proximidade com o diamat staliniano só pode surpreender os mais ingênuos ou desinformados. Althusser aderiu ao Partido Comunista Francês depois da invasão soviética à Hungria, ou seja, quando intelectuais mais lúcidos começavam a abandoná-lo. No partido comportou-se como um hardliner e se em alguns momentos contrapôs-se à ortodoxia o fez sempre em nome da ortodoxia.[3] As recorrentes menções à “ciência marxista-leninista” ou à “filosofia marxista-leninista” não são cláusulas de segurança para acalmar a burocracia stalinista. Desta, Althusser se apropriou não apenas do jargão mas também de aspectos teóricos centrais e, principalmente, de sua herança política. Assim, enquanto alguns por puro cinismo deixaram de citar o “guia genial dos povos” após o relatório secreto de Nikita Khrushchev e as denúncias dos crimes, Althusser continuou a fazer gala à obra “teórica” de Stalin, considerando-a “em muitos aspectos notáveis”, em Pour Marx (idem, p. 83).
Notável, dentre outras coisas, por ter abolido a “negação da negação” das “leis da dialética”, reivindicou o autor de Pour Marx. Afinal, se “está-se hoje oficialmente convencido” de que se deve censurar o autor de Materialismo histórico e materialismo dialético por tê-la abolido, melhor seria reconhecer que “a expulsão da ‘negação da negação’ do domínio da dialética marxista pode atestar um real discernimento teórico no seu autor.” (idem, p. 175-176.) E ainda em 1967, em seu escrito inédito sobre a querela do humanismo, Althusser reafirmaria seu juízo em termos ainda mais assombrosos: “Eis por que Stalin pode ser tido por um filósofo marxista extraordinariamente perspicaz, ao menos neste ponto, por ter eliminado a negação da negação das ‘leis’ da dialética.” (1997, v. 2, p. 470. Grifos meus.) “É verdade”, afirma Daniel Benasïd, comentando essa passagem: Stalin preferirá muitas vezes “a negação tout court, sem retorno e sem adjetivos” (BENSAÏD, 2001, p. 108). O termidor como a negação tout court da revolução russa. Extraordinária a perspicácia filosófica desse georgiano que antes de expulsar e abolir a negação da negação, expulsou e aboliu a vida de toda oposição.
Abolição! Expulsão! Que palavras terríveis! Será possível que Althusser não percebesse o significado delas e sua inadequação ao debate filosófico? É certo, o filósofo não tinha muita familiaridade com a prática política. Rancière se aproveitou disso em seu ressentido e mordaz acerto de contas com o antigo mestre (RANCIÈRE, 1974). Mas o filosofo da rue d’Ulm não era, evidentemente, ingenuo, como revela o modo como constrói seu argumento em Pour Marx. “Está-se, hoje, oficialmente convencido…”. Estranho esse sujeito indeterminado. O próprio Althusser havia se assombrado perante o apoio aos intelectuais humanistas que o secretário geral do PCF Waldeck Rochet lhe havia confessado sem citar nenhum nome: “mas quem são eles?”, perguntou-se Althusser em sua biografia (1994, p. 223). E quem está convencido agora? E mais estranho é esse convencimento “oficial”. Sim, era contra a interpretação dominante no Partido Comunista Francês, que Althusser se voltava e, principalmente, contra alguns dos filósofos oficias: Guy Besse e Roger Garaudy, em primeiro lugar. Melhor seria dizer: “a direção de nosso partido está convencida”. Mas isso não poderia ser dito por um filósofo se ele quisesse permanecer no partido.
Para Althusser, “não existia, agora, objetivamente, nenhuma outra forma de intervenção política possível no partido senão aquela puramente teórica, e mais uma vez, com base na teoria existente ou reconhecida para utilizá-la contra o uso que se fazia no Partido.” (1994, p. 221) O que ele poderia fazer, então, e fez, foi atirar na cara da nova ortodoxia a velha ortodoxia, aquela que o PCF não poderia rejeitar sem negar-se a si próprio. Apoiou-se, assim, em uma “teoria existente”. O argumento, como pode se ver, estava longe de ser ingênuo, mas justamente por isso submetia-se voluntariamente à fria lógica do aparelho: era no campo teórico do stalinismo que Althusser propunha travar essa luta teórica, naquilo que Althusser chamava, candidamente, “nossa história”. Mas que história é essa? O filósofo responde:
“Stalin não pode (…) ser reduzido ao desvio que ligamos a seu nome; nem tampouco o pode por razões ainda mais fortes a III Internacional, que Stalin terminou por dominar após os anos [19]30. Ele teve outros méritos diante da história. Compreendeu que era preciso renunciar ao milagre iminente da ‘revolução mundial’ e, desse modo, empreender a ‘construção do socialismo’ em um só país; e tirou as consequências dessa decisão: defendê-lo a qualquer preço como a base e a retaguarda de todo o socialismo no fundo, fazer dele sob o assédio do imperialismo – uma fortaleza inexpugnável e, com essa finalidade, dotá-lo prioritariamente de uma indústria pesada, da qual saíram os tanques de Stalingrado, que serviram ao heroísmo do povo soviético na luta de vida ou morte para libertar o mundo do nazismo. Nossa história passa também por isso. E, através inclusive das deformações, das caricaturas e das tragédias dessa história, milhões de comunistas aprenderam, ainda que Stalin lhes ‘ensinasse’, como dogmas, que existiam princípios do leninismo.” (idem, p. 63).
A história como expressão da realpolitik staliniana. O que deveria ser explicado era, para Althusser, o que deveria ser justificado. O complexo processo de renovação filosófica liderado pelo filosofo francês atualizava o stalinismo e procurava dar-lhe uma justificativa filosófica mais sólida. Por essa razão Althusser sempre procurou evitar a crítica ao fenômeno burocrático, limitando-se, na maioria das vezes a observações do senso comum nas quais não deixava de coincidir retrospectivamente com aquele humanismo soviético que havia criticado.
Convenha-se, se o rude interesse da burocracia soviética era o horizonte do pensamento, para que uma filosofia tão sofisticada? Se era possível chegar a essa história por meio “das deformações, das caricaturas e das tragédias”, qual a finalidade da teoria? No auge da força e influência do Partido Comunista Francês talvez fosse possível evitar essas perguntas, embora um pensamento crítico não o tenha feito. Mas, mais de vinte anos depois do colapso soviético e do irreversível declínio do comunismo burocrático, que sentido há em continuar a evitá-las? A miséria do althusserianismo original continua a ser a do neoalthusserianismo.
Referência bibliográficas
ALTHUSSER, Louis et al. Lire le Capital. Paris: F. Maspero, 1967, 2v..
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1969.
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, a política e a história. Lisboa: Presença, 1977.
ALTHUSSER, Louis. Posições 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
ALTHUSSER, Louis. Écrits sur la psychanalyse: Freud et Lacan. Paris: Stock/Imec, 1993.
ALTHUSSER, Louis. L’avenir dure long temps, suivi de Les faits: nouvelle édition augmentée. Paris: Stock/Imec, 1994.
ALTHUSSER, Louis. Journal de captivité. Stalag XA, 1940-1945: carnets correspondences, textes. Paris : Stock/Imec, 1994a.
ALTHUSSER, Louis. Écrits philosophiques et politiques: textes réunis et présentés par François Matheron. Paris: Stock/Imec, 1997, v. 2.
ALTHUSSER, Louis. Solitude de Machiavel: edition préparée et comentée par Yves Sintomer. Paris: PUF, 1998 (Col. Actuel Marx Confrontation).
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.
ALTHUSSER, Louis. Política e história: de Maquiavel a Marx. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BENSAÏD, Daniel. Résistances: essai de topologie générale. Paris: Textuel 1, 2001.
LENIN, Vladimir Ilitch. Collected works. Moscow: Progress, 1963-. 44v. (LCW)
RANCIÈRE, Jacques. La leçon d’Althusser. Paris: Gallimard, 1974.
STALIN, Joseph. Materialismo dialético e materialismo histórico. 3. ed. São Paulo: Global, 1982.
THOMPSON, E. P.. The poverty of theory & other essays. New York: Monthly Review, 1978.
Notas:
[1] Esse revival parece, aos poucos, chegar ao Brasil. Quase simultaneamente à França foi aqui publicada sua biografia. Alguns anos depois, foi lançada uma deplorável tradução de Sur la reprodution (ALTHUSSER, 1999). Agora, vem à luz uma coletânea de textos sobre política e história, reunindo seus cursos sobre filosofia da história e filosofia política, ministrados entre 1955 e 1972 na École Normale Supérieure (ALTHUSSER, 2007). O publico brasileiro é, entretanto, claramente prejudicado pela ausência de um projeto editorial consistente. Para quem não conheça, por exemplo, textos mais coerentes a respeito do pensamento político escritos por Althusser (p. ex. 1997 e 1998) torna-se difícil, compreender em profundidade um conjunto de notas de aula, nem sempre coerentes.
[2] Althusser cita Lenin (entre aspas) do seguinte modo: “sem teoria, não existe ação revolucionária”. A citação é equívoca por duas razões: 1) Lenin escreveu de “teoria revolucionária” destacando de antemão o nexo existente entre teoria e política, nexo obnubilado pela suposta citação em Pour Marx; 2) Lenin escreve “movimento revolucionário” e não simplesmente “ação revolucionária” destacando o caráter orgânico deste, razão pela qual a seguir faz referência explícita á social-democracia russa. Atribuir a autores aquilo que nunca disseram era prática corrente em Althusser. A esse respeito, ver a observação de Edward Thompson de que Marx nunca teria escrito que a “luta de classes é o motor da história”, frase insistentemente citada entre aspas por Althusser que lhe atribui até mesmo uma imaginária referência bibliográfica: o Manifesto comunista.
[3] Dentre as passagens mais patéticas de sua penosa autobiografia está, sem dúvida, aquela na qual descreve sua participação na reunião que votou pela expulsão de sua companheira Hèlene: “Quando veio o momento do voto todas as mãos se levantaram (…) e eu vi para minha vergonha e estupefacto minha própria mão se levantar: eu sabia há muito tempo, eu era um covarde.” (ALTHUSSER, 1994, p. 228)
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