Betto della Santa
“É, é rir para não chorar” (Sabedoria Popular Caiçara)
“Would you need anybody?” (The Beattles apud Joe Cocker)
Ken Loach já de-há quasi-meio século persiste no meio de vida –e no modo de luta– do intransigente compromisso de refletir criticamente, através dum viril cinema socialista, sobre a experiência vivida da classe trabalhadora. (Primeiramente do Reino Unido e, a posteriori, de todos os países.) Não tão-só a incansável batalha pela sobrevivência ou a resistência organizada contra o sistema mas, enfim, todas as esferas da vida operária e, em toda a riqueza de relações e determinações várias, a sua generalização através das lutas de classes. Um cinema moderno que atualiza às tradições revolucionárias do Neorrealismo Italiano, da Nouvelle Vague e do mesmo Free Cinema já amealhou, desde um robusto saber-fazer cinematográfico de criação coletiva, às diferentes angulações sobre as diversas milleaux d’The Making of the English Working Class (d’A Formação da Classe Operária Inglesa). A boa – e velha – magnum-opus do mestre-artesão Edward Thompson dispensaria comentários sobre o seu enunciado-formal – “a clumsy title”; “um título desajeitado”, admite a prefaciação de lavra do próprio Thompson –, caso não houvesse aí alguns problemas de tradução. “Making”, insiste o mestre, “porque é um estudo sobre um processo ativo, que deve tanto à agência [sujeito], quanto ao condicionamento [estrutura]. A classe trabalhadora não nasceu [rise] como o Sol num determinado momento.”[1] A fina-sintonia –de tempo e de espaço–, entre as obras de Loach e Thompson, valem-nos a brevíssima digressão…
A língua inglesa traz, em-si, uma concepção de mundo que muitos já acusaram de empirista, pragmática e, ao fim e ao cabo, simplista. Não foram poucos emigrados alemães que o comentaram, em suas cartas, sobre o que lhes parecia a excessiva transparência do idioma. O verbo-de-ação inscrito no gerúndio –“the making of”–, em síntese peculiar, atribui múltiplos significados: desde per-fazer, até fabricar e dar forma a. Contra a entificação, a-histórica e antidialética –determinista e dogmática– do conceito de classe, o historiador inglês insistia tratar-se, aí, dum fenômeno histórico-concreto (classe) que de fato ocorre na trama de relações humano-societais. Neste sentido as lutas de classe produziriam as classes em luta; daí depreendendo-se que o per-fazimento –ou a autoformação– da classe trabalhadora seria, então, simultâneo à sua própria constituição. Contra a fórmula, senso-comúnica, do ovo e da galinha: “a verdadeira gênese está ao fim.” (Ernst Bloch) A história –tal qual o cinema– está aí para ser feita. A questão linguística remete, agora, a problemas de organização coletiva e processos de consciência social da própria experiência vivida do ser-que-trabalha. O making–history, e as suas astúcias, assim como o film-making, e os seus ossos, demandam uma auto-organização e uma autoconsciência dum sujeito transindividual conjugado no tempo presente e sobretudo, no plural. A refinada estética e a bruta política são, cinema e história, processo de manufatura, e de criação.
O rigor e a paixão de ambos se debruçam sobre a cotidianidade, a cultura e o modo de vida duma sempre renovada, e em ininterrupto processo de vir-a-ser, condição de proletariedade. Para além dos politicismos sectários e dos economicismos oportunistas do materialismo vulgar – já seja o fetiche estatólatra ou o determinismo econômico– a cepa de marxistas de fala inglesa pós-New Left Clubs – de Raymond Williams a Terry Eagleton, de Peter Fryer a Tariq Ali – entendia a concepção dialética da história como uma forma tentativa e exploratória de explicar e compreender como e porquê as pessoas vivem, e não só do que elas vivem. Suas mentalidades e suas utopias, suas esperanças milenares e sonhos subjetivos, isto é, todas as suas relações humano-societais ou, em última instância, a tal “perspectiva de totalidade”. Trata-se, aqui, dum marxismo indisciplinar muito, muito, mas muito rico, no qual são observados os hábitos das pessoas, o modo como tais pessoas vivem e assim por diante inclusive o próprio modo como elas constroem suas vidas privadas. Quais são suas formas de sociabilidade? No que se constituem suas práticas? De que modo se articulam suas concepções? Como e porquê, dia-após-dia, se repete a tragédia do capital na comédia do trabalho? A obra mais “semiótica” de Karl-H. Marx – O 18 Brumário… – dá conta de temas e problemas da representação estética (forma) e política (conteúdo), tanto das insurreições do passado, ou “bourgeoisie”, quanto das revoluções do futuro, ou “proletariat”. Com ele, compreendemos que, as últimas, alfinetando pompa e ocasião às primeiras, devem aprender a rir de si mesmas. E parece que é isto o quê a forma dialética da nova comédia operária de Ken Loach quer nos lembrar. Isto, e mais duas ou três coisas, que não devemos esquecer nunca. E fiel ao perfazimento do oficio que ama e conhece, trata-se, aqui, do que constitui a primeira vez, na obra-total deste também mestre, que o gênero farsesco vem à luz.
Mundos do Trabalho em canteiro de obras
Looking for Eric – a um só e mesmo tempo, À Procura de Eric, Olhando por Eric e, com mínima alteração, Espelhando-se em Eric– é, tipicamente, uma película do mesmo film-maker de Meu Nome é Joe, Pão e Rosas e Ventos de Liberdade. Eric Bishop, personagem-narrador do filme em tela, é um trabalhador material cuja categoria econômico-corporativa tende a perder status e prestígio em meio ao mundo do capital tardio, global e financeirizado que nos toca viver hoje em dia. Como um Trabalhador de Correios, a luta pelo direito a uma existência plena de sentido parece perder todo o sentido vis-à-vis à vida das novíssimas tecnologias de informação e comunicação em rede social. O “tempo real” dum eterno presente se torna cada vez mais georgeorwellianamente omnipresente, omnisciente e omnipotente via YouTubes, Twitters e Facebooks. À medida da perda de sua importância no mundo da produção e da política – vide a crescente privatização, terceirização e precarização dos correios mundo-afora – o próprio self de Eric se achincalha a retalhos. A narrativa nos dá a conhecer um Eric em pleno surto psicótico, dando voltas na contramão duma rotatória citadina qualquer. Literalmente, a vida de nosso protagonista –se vale o termo– chegou a uma encruzilhada. A rotatória da urbe hipertardia nada mais é do que a ilusão de múltipla escolha. E o grito sufocado de Eric, na direção do carro popular, dá-se em todas elas à contramão da forma-mercadoria e os modos de circulação-fetiche.
Eric é acudido por seu companheiro de trabalho, Meatballs (Almôndegas ou Porpettas) rechonchudo e simpático – antítese, algo simétrica, a um magricelas e neurastênico Eric –, colega-supervisor que terá papel de destaque na superação-de-si de nosso herói problemático. Ao levá-lo da ala de internação ao local de moradia, ele explica que sua pena por infração de trânsito será atenuada por conta de, em jargão advocatício, sua “condição psíquica”. Eric abre a porta de sua casa e nos mostra a matéria-bruta de sua subjetividade estilhaçada. Vive nos subúrbios ingleses da cidade proletária de Manchester, em bairro blue-collar de sobrados, em nada parecido aos idílicos gramados sem-muros, à la famigerado American way of live. Seus step-sons adolescem inarredavelmente e, aos hormônios em explosão, vem se unir uma sociabilidade incipiente e potencialmente criminosa –como já nos mostrou Loach, em Sweet Sixteen, The Angel’s Share e outros –, cultura jovem de tipo gangster-style, experimentada pelo pobretariado branco inglês junto a outros grupos sociais subalternos. A casa, subproduto duma crise generalizada da assim-chamada moderna civilização capitalista – social, econômica, política e cultural–, está longe de ser um lar. Louças por lavar, quartos por arrumar e comida por fazer… trata-se dum depósito de artigos de contrabando para o mequetrefe – crimelord – local burlar a polícia nada comunitária da Inglaterra xenófoba, racista e elitista da guerra contra o terror. Eric é protoforma do pai ausente…
[Vale, aqui, um colchetes. Longe de se constituir em moralista do dever-ser proletário, Ken se mostra fiel a uma tese cada vez mais esquecida dos fundadores do materialismo histórico. Se é verdade que o marxismo contemporâneo logrou resgatar a polêmica teoria da pauperização absoluta do morto-vivo consenso social-democrático, desafiou os detratores da ideia de crise estrutural do capital através de sua atualidade e vigência e deu a volta por cima no que se refere aos críticos da teoria do valor-trabalho demonstrando seu ser-precisamente-assim também o é que falta ainda sacudir a poeira da problemática teórico-práxica da extinção da família tal qual a conhecemos. Karl-H. Marx e Friedrich Engels não poderiam ser mais enfáticos no que se refere à indiciação sintomal da necessidade histórica mesma de supra-sunção da família burguesa que, chiaroscuro dialético, constituiria o prostíbulo proletário. As teorias do Estado e da revolução, o exame criterioso das leis tendenciais socioeconômicas e a elaboração mesma de tática e estratégia para além do capital deve conter em si o germe da crítica à celula mater da sociedade civil-burguesa ou, como diria um galhardo jornalista narrativo uruguaio, um olho na luneta e outro no microscópio. O “retorno ao concreto” que sucedeu o linguistic ou pictorial turn, sob o risco de se converter numa retomada “careta”, deve atentar para aquilo que uma autêntica teoria da revolução permanente julga central para uma era de “militantismo cultural” (Leon Trotsky). Neste sentido, aguardamos ansiosos a monumental publicação do já-ora de antemão clássico Revolução Passiva e Modo de Vida, do imprescindível intelectual orgânico ao trabalho, mestre Edmundo Fernandes Dias, no prelo pela juveníssima Editora Sundermann. Se temos entre nós um gigante da estatura moral e intelectual de Edward Thompson e Ken Loach no Brasil seu nome é Edmundo. E ele nos elenca uma série de assuntos-tabu da esquerda brasileira e mundial, como diria o comunista sardo inspirado pelo revolucionário ucraniano: “modo de sentir-pensar”.]
Are you mad?
Quando finalmente Eric, após uma irascível implosão de desespero e dor, se fecha em seu quarto e, tentando acalmar os nervos, fuma um cigarro de cannabis surrupiado do filho fora-da-lei a narrativa se-nos faz mais clara (mais um ponto para a cinematografia-verdade de Loach). Uma série de flashbacks nos dão a entender a razão-de-ser do ataque de ansiedade do-ente auscultado pela câmera loachiana. O primeiro grande amor de Eric, a bela Lilly, foi abandonada, junto ao bebê recém-nascido, do casal recém-casado. O texto e o con-texto de tirania familiar – mais especificamente patter-potestad – se-nos é mostrado em íntegra plenitude. A transcriação estética das contradições nevrálgicas dos mundos do trabalho vão ao mais íntimo âmago do ser nos inventariando –com paleta de cores e máscara de texturas– àquilo que a dialética viva na forma-canção viniciusdemoraesiana vindicaria, galhofeira, aos desafetos de plantão: “não existe nada mais social do que o amor.” Sim, uma e outra vez, Eric é a protoforma do pai ausente. Passado e presente governam um futuro-do-pretérito que, entre o novo não-nascido e o velho não-matado, hipostasiam a uma individualidade social já des-efetivada. O impasse de hoje é o dilema de ontem. A filha que foi bebê de colo tem, aqui-e-agora, o seu próprio bebê de colo. Às voltas com a necessidade de redigir um trabalho de conclusão de curso, a filha apela aos pais separados para que se revezem nos cuidados à respectiva neta. A simples perspectiva de ter que se encontrar tète-a-tète com a ex-esposa deixa Eric em frangalhos. À voz que lhe restava e à veia que lhe saltava tal desatenção fora gota d’água. A crise de pânico soou qual o alerta de incêndio.
O colapso de estafa –de mente e coração– de um dos seus é enfrentando de peito aberto pelos colegas da seção de trabalho. Ao perceberem um Eric apático e catatônico de volta ao trabalho os camaradas do carteiro tentam fazer algo que por vezes pode constituir, senão o melhor dos remédios, ao menos o mais engraçado: provocar-lhe o riso. As tentativas, singelas e patéticas, são uma confissão de marinheiro-de-primeira-viagem. Tal qual os trabalhadores na tela, carteiros, o trabalhador da tela, cineasta, escarnece sem qualquer autopiedade o fato mesmo de que ele próprio é um amateur no metiê de fazer-rir. A arte imita a vida, diriam os estetas. Em formulação brutalmente sintética, Italo Calvino resumiu, certa feita –e de modo lapidar–, às máscaras canônicas da antiga tragicomédia grega clássica: “Se o drama é sobre a inevitabilidade da ruptura da morte, a comédia é a respeito do devenir de continuidade da vida.” Como um personagem insólito em busca dum autor, Eric precisa descobrir, por si só –mas com uma pequena ajuda de seus amigos –, se serve, grosso modo, a um amo dramaturgo ou comediógrafo. O discurso intertextual invade derrisoriamente à narrativa fílmica como redução por absurdo. Meatballs se mune das mais avançadas técnicas-trabalho da subliteratura de autoajuda, passando pela reprogramação neurolinguística até o limiar mesmo do estado-da-arte do dito life-coaching. Visualização, relaxamento e meditação-yogui são parte dum arsenal de improviso ao que os zombeteiros amigos não arredam-pé de tirar-sarro. O recurso, aqui, é mais do que legítimo; os de baixo reconhecem a vã filosofia decadente dos de cima e se riem gordamente, sobre o nonsense… Se vale a antropomorfização da classe, “cada um sabe a dor e delícia de ser o que se é…”. Não é?
Os trabalhadores, aqui, não integram a movimentos, sindicatos ou partidos (como a imensa maioria da classe trabalhadora, de quaisquer horas históricas e lugares sociais, realmente existente). Não protagonizam atos, barricadas e/ou greves. Dificilmente assinariam até petições públicas, sequer fazem biscates ou mesmo atrasam os cartões-de-ponto. O que lhes resta, enfim, é ter um ao outro. A manutenção do emprego, a apatia política e a desmobilização tradeunionista não são, contudo, tudo. Esse grupo social operário, com seu saber-fazer específico, seu sotaque local e suas idiossincrasias irrepetíveis ama a um time de futebol chamado Manchester United e, tanto quanto ou mais, um ídolo estrangeiro de nome Éric Daniel-Pierre Cantona, l’enfant terrible Eric Cantona. Num típico exercício Paul McKenna de autoajuda, Meatballs pede a cada um dos partícipes da roda que emulem os atributos d’alguma personalidade que admiram. Frank Sinatra, Fidel Castro e Mahatmah Gandhi são alguns dos eleitos e, ao turno de Eric, Bishop; Eric, Cantona. Um pouco antes de terminada a sessão coletiva, brindada com dicas de respiração e todo o mais, os pares descobrem as cartas não-entregues de Eric, e se dispõe a ajudá-lo com o fardo dum labor sem-sentido de circulação de papéis que, mais a mais, são propaganda sem-importância, pilha de política do capital ou contas a pagar. Já se disse que somos o que fazemos. E, sobretudo, o quê fazemos para mudar o que somos. Com a ajuda psicoativa do cigarro de maconha, a terapia de grupo e a circulação de papéis Eric vê surgir, na sua frente, um outro Eric. “A loucura coloca em questão à norma.”[2]
Tudo começou com um belo passe de Eric Cantona…
Este letreiro que dá largada ao filme é, ao mesmo tempo, anunciação e enunciação. É uma realidade estética e, também, uma representação extra-estética. O filme de Loach, torcedor e cineasta, começou com a procura de Cantona, boleiro e ator. Sua persona pública controversa, suas frases-de-efeito em coletivas de imprensa e seu je-ne-sais-quoi – intra e extracampos –, pouco-a-pouco, foram tomando forma para a dupla criativa Ken Loach-Paul Laverty. Não faz muito, um ensaísta inglês asseverou que quando a classe trabalhadora voltasse aos tablados da história não tardaria a ocupar a vanguarda da cena loachiana. A sedimentação da forma histórica encontrou, na fábula narrativa, uma realidade mais estranha que a ficção. É verdade que não se trata da reorganização da ofensiva socialista, mas tampouco assombra mais a consciência da derrota histórica. Que horas são? Em miúdos, a exasperante lentidão dos anos noventa já não mais está-lá, mas ainda não veio-a-ser aí a aceleração alcantilada do século vinte e um. Ainda e quando arte e ciência não devam aceitar conselhos de fora Loach parece, cantando a Cantona, pôr em prática o pitaco de Frederic Jameson – bam-bam-bam anglo-saxão – de mapear cognições (e cartografar afetos, dica dum Raymond Williams) quando/onde o mar da história seja ressaca. As formas embrionárias das lutas de classes podem muitas vezes passar desapercebidas a olhares mais incautos. Loach, torcedor inglês e cineasta marxista, sabe do jogo de luz e sombra que há num estádio de futebol. O futebol pode ser uma simulação e um simulacro duma sociabilidade espetacular. Mas também pode ser o ensaio geral da emancipação social. Pode ser uma pálida lembrança da epopeia burguesa mas pode também vir a ser vibrante invenção de épica proletária.
Diretamente das galerias surge Eric diante de Eric. Não sabemos se fruto da imaginação criativa ou da alucinação psicotrópica, o herói de nosso herói –alter-herói–, salta do cartaz de fã e vem responder aos medos e frustrações, sonhos e aspirações, ao já-feito e ao-que-será, dum seu torcedor. A metáfora também é uma metonímia, e o deslocamento também é a condensação; diz a convenção do cinema e alerta a psicanálise. Os recursos de esperança são dum Eric latente e potente… Nada, ali, é exterior a Eric; solução formal –e arranjo estético– que não carece de nenhuma explicação rocambolesca ou recurso pirotécnico por parte de Loach ou Laverty. Nada de fade-outs, contra-ploungées e/ou fumaças misteriosas. (E nada de diálogos com terceiros, tampouco, demonstrando, em triangulação à audiência das gerais, a fantasmagoria das visões…) A impressão raw-material do cinema-direto de Loach no celuloide revelado, o mais de perto atado à filigrana do real, fez-que-fez que se-o transfigurou ocultamente em fantástico. O novo realismo fantástico de Loach é sui generis e, na loucura do dia-a-dia proletário, soa a cadinho de lucidez plebeia. Obviamente, Eric esfrega-se os olhos e pede que Cantona fale francês. Mas é só, com tal exegese-relâmpago, tudo fará sentido em plano justaposto entre sonhos, memória e vida. Um desejo de história, uma necessidade de narração: Eric diante de Eric remonta à história social dos esportes e à história cultural da narratividade. O futebol, como a vida, é a arte do encontro. Desde suas mais remotas origens no medievo bretão o futebol foi nexo de unidade-diversidade de comunidades reais; tal qual o teatro, na antiguidade grega, não reconheceu distinção entre representantes e representados. Não havia protagonista individual ou artilheiro “self-made man.” A multidão, a patuleia, a ralé … – do lócus esportivo à cena teatral –, e nada de star-system global.
Se um certo cinema de autor –europeu e estadunidense– da-hora busca como outsider desajustado o dândi ilustrado ou flanêur esclarecido mais-vale, em Loach, o fodido e mal-pago. E fodidos sempre serão fodidos. “I’ve fucked-up”, confessa Eric a Eric. Caso não sejam filósofos fitcheanos –com espelhos na mão, e para quem basta um “eu-sou-eu”, absoluto– os homens se identificam, e se diferenciam, refletindo-se (e projetando-se) uns aos outros. A humanidade bishopiana é para o outro Eric a humanidade cantoniana para o um dialeticamente una e diversa. Neste particular, Loach é, a um só tempo, um artista e um político. O senso comum vulgar do individualismo possessivo, da sociabilidade concorrencial e do ter-como-ser tão característicos de meados dos anos noventa são aí meticulosamente desarticulados, da aparência até a essência. O seu feixe de juízos leva-nos do fetichismo da idolatria à celebração do eu-coletivo. As frases autoajúdicas de Cantona vão pari-passu cedendo a uma embrionária filosofia da práxis que reúne consciência e ser, pensamento e sentimento, teoria e prática. A nau desgovernada em mar aberto, que caracteriza a vida privada (e pública) de Eric vai, progressivamente, tomando algo de prumo. É como o ator de cinema ou o atleta de alta-performance, que podem treinar diante do diretor e do técnico, um autoconsciente (e auto-organizado) salto de qualidade –e quantidade– diante do público. Se os demônios internos vão sendo superados (a auto-alienação), os inimigos externos (o estranhamento-de-si) re-põem o desafio e o fardo do processo histórico. Eric se confronta com seu passado, redime-se com seu presente e projeta um seu futuro. Este duplo movimento de individuação/socialização intensifica-se, à medida que conhecemos, mais de perto, ao nosso Eric.
Se não confiamos em nossos companheiros estamos perdidos…
Desde a caixa do baú de memórias fotográficas é-nos resgatado da máquina de moer gente – do capital e sua ordem – o jovem Eric que conheceu Lilly numa pista de dança ao som dum clássico rock’n’roll anos 50 e, pasmem!, calçando mocassins importados de camurça azul. É um rapaz jovem, bonito e, é claro, cheio de sonhos… Seu swing, reconhecem os amigos do trabalho, era inconfundível até no chão do post-office. É um Eric com a auto-estima recuperada que chamará a Lilly para um jantar em família. É esse mesmo Eric que protegerá o filho mais velho dos pés-de-chinelo locais. É um novo Eric que encontrará a solução coletiva para sua aflição privada desde a mais tradicional instituição de sociabilidade plebeia dos tempos modernos: o bar proletário e seus entornos. A comédia operária light-hearted de À Procura de Eric ressoa e reverbera, em seu momento, a Segundas-Feiras Ao Sol (Lunes al Sol) e Ou Tudo Ou Nada (Full Monty). Mesmo sem o fantasma do desemprego estrutural tão perto, pode-se notar ecos da Vigo/Galiza espanhola e da Sheffield/South-York inglesa, certo seqüestro de ferry-boat e/ou abertura dum streap-tease, a dialética rarefeita de marginalidade emergente tal contestação ao discurso de ordem/desordem. A dualidade constitutiva deste movimento vai ser abertamente escancarada por Loach ao se-nos esfregar nas caras que, entre a desordem do capital e a ordem do crime, não há solução de continuidade para indivíduos e grupos sociais no interior duma sociedade de classes. A polícia britânica –da doutrina de choque– invade a casa proletária em pleno almoço de domingo. O crime local escaranfucha –com raivoso cão-de-guarda– à queima-roupa um trabalhador indefeso. Entre a cruz e a espada, a classe trabalhadora só pode confiar em suas próprias forças, i.e., consciência (e organização) de classe. Mas os day-dreams de Eric Bishop não estão de todo superados. Eric perguntaria a Eric qual teria sido seu momento de maior realização nos campos. Um voleio de bate-pronto? Um chute à distância? Arrancada de herói-artilheiro com gol no fim? Daí é que a epopeia burguesa cede lugar, e dá hora, a uma verdadeira –atual– moral da multidão. Cantona revela que seu melhor momento no jogo não fora gol de placa, mas, um passe magistral. “Se não confiamos em nossos companheiros estamos perdidos…”. E, também, confessa que a sua entrada no campo traz sempre a motivação-subjetiva de presentear as torcidas com uma surpresa. “Mas, para surpreender à torcida [e ao adversário], primeiro é preciso surpreender a si mesmo.”
O movimento mesmo do filme é-o de fazer decrescer as potencialidades magicamente atribuídas alhures a outrem e, em tempo-espaço desigualmente combinados, reconstruir a força efetiva de si mesmo. Das celebridades midiáticas às patuleias proletárias, da individualidade falsa para a sociabilidade plena e, de cabo a rabo, da fragmentação ao pertencimento. O filme reconstrói empaticamente às motivações-geradoras que dão-se em fusão ao grupo social, subseqüente reconhecimento ideológico e, por fim, a “consciência de classe auto-adjudicada”. Não é preciso ser estraga-prazer (spoiler) quanto ao desenlace da trama (ainda que para os dialéticos interesse, muito mais, o acompanhamento dum processo) já-tão-recontada ao longo do presente ensaio. A criação coletiva do final da estória –e, lembremo-nos, a verdadeira gênese está ao fim– soma futebol + cinema à promessa de regalar público com making-of surpresa (!). O debate coletivo à mesa do bar é a antessala, cerveja à mão, dum esperado desfecho com que se tece a tela de vida-vivida. Mas, inserido na longa temporalidade que une passado e presente à potencialidade de futuro, o filme em questão trata a obra duma classe universal que carrega partícula de destino da vida de toda humanidade. O filme se supera egoico-passionalmente em catarse ética e política com classe. Se o meio se trata dum ato de fala sobre a particularidade classista dos mundos do trabalho o fim é muito mais amplo – artística e politicamente mais generoso, aberto e pleno de si.
Se a forma e o sentido tem a ver com a classe-que-vive-do-trabalho, o proletariado, o leitmotiv e a projeção pré e pós-tela falam a respeito do ser-que-trabalha, a humanidade. A autoemancipação dos trabalhadores deve dar hora e ceder lugar à autoemancipação humana total do ser-genérico. Para que as necessidades de cada um sejam satisfeitas com as possibilidades de todos, e vice-versa, e para que futebol, cinema e vida sejam cada vez mais individualidade e sociabilidade humano-societal libertas. Eduardo Galeano já cantou em prosa –poesia política– a reconstituição genético-estrutural da origem histórica e social do complexo de linguagem/trabalho/socialidade recém-afastadas às barreiras naturais dos “homens das cavernas”. O homem se autonomizou (relativamente) da natureza passando aí a transformá-la e, aí, transformando-se a si mesmo. A produção dos homens nunca foi apartada do mundo dos homens. A des-alienação dos homens se faz necessariamente por aquele gestus coletivo que perpassa dos primeiros passos de dança, aos primeiros ensaios de música, até a primeva forma de ser do gênero humano morfologicamente moderno levando-os além no tempo e no espaço. A busca de si, enfim, se dá no outro. É assim: no melhor cinema e no melhor futebol. São objetivações duradouras de subjetividade social… O gestus coletivo de Loach é como o passe-direto de Cantona. Assim se faz cinema, assim se faz futebol, assim se faz história e, sobretudo, assim o homem se fez, faz e se fará homem, qual seja, With a Little Help From my Friends.
(Dedicado ao rock’n’rolla Joe Cocker.)
[1] E. P. Thompson. The Making of the English Working Class. London : Penguin, 1963/1991, p.08.
[2] F. Basaglia apud E. F. Dias. Revolução Passiva e Modo de Vida. São Paulo : Sundermann, no prelo, p.40.
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