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TEORIA

Peter Fryer, jornalista socialista, pesquisador e cronista da revolução húngara

Beto della Santa (com a colaboração de Martin Ralph, de Liverpool)

Peter Fryer (1927-2006) destacou-se, dentre outras coisas, por ter sido enviado especial à Revolução Húngara de 1956, testemunhando diretamente os acontecimentos da luta de classes – então desde as fileiras do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Sua morte ocorreu – por uma descomunal coincidência – justamente no cinquentenário desta grande revolução proletária. Peter Fryer, de origem social operária, nasceu em 18 de fevereiro de 1927. Foi contemplado com uma bolsa de estudos do Hymer’s College, em 1938, onde se graduou. Inicialmente anarquista, Fryer aproximou-se definitivamente do Partido Comunista Britânico sob o impacto dos esforços do Exército Vermelho – que impôs a derrota militar à Alemanha nazista – durante a Segunda Guerra Mundial.

Fryer tinha se unido à Liga da Juventude Comunista, em 1942, e ao Partido Comunista, em 1945. Juntou-se à equipe do jornal Daily Worker – órgão oficial do PC – atuando principalmente como correspondente no parlamento inglês. Em outubro de 1956 foi enviado à Hungria para cobrir a insurreição. Os informes enviados, que incluíam a brutal repressão das tropas russas sobre as massas húngaras, foram censurados ou diretamente suprimidos pela direção stalinista do PC inglês. Foi expulso primeiro do jornal e depois do PC inglês, “por publicar na imprensa burguesa ataques ao partido comunista” – nas palavras de seus detratores. Seu livro, A Tragédia da Hungria, foi escrito com base em vários daqueles artigos e foi publicado pouco tempo após o término da revolução, constituindo registro fundamental desta revolução política, operária e popular, contra a ditadura stalinista.

A denúncia do crime stalinista contra a Revolução Húngara

Os informes de Fryer contrapuseram-se frontalmente à linha oficial do PC, que caracterizava a insurreição húngara como se não passasse de uma contrarrevolução, reacionária e fascista. Sobre a revolução que presenciou Fryer afirmou que “não era nem organizada, nem controlada por fascistas ou reacionários, mas pelo povo comum da Hungria: operários, camponeses, estudantes e soldados”. Na verdade, Fryer relatou os fatos tal como os encontrou: nem mais, nem menos. Já tinha coberto os prelúdios embrionários da insurreição húngara para o jornal e, após o discurso secreto de Khrushchev em 1956, expôs algumas das abomináveis realidades do domínio de Stálin. Mas agora se viu diretamente confrontado nas ruas da Hungria com soviets “antissoviéticos” – na verdade, antistalinistas –, e aos corpos de trabalhadores revolucionários ao chão, metralhados pelas mesmas autoridades que se reivindicavam “comunistas”. Os dirigentes do jornal e do partido simplesmente recusaram-se a ratificar seus relatos.

A descrição de Fryer dos soviets “antissoviéticos” húngaros – ressaltados por sua “notável semelhança, em muitos aspectos, aos conselhos de operários que surgiram na Rússia durante as revoluções de 1905 e 1917” – é vívida e rigorosa: “estes comitês, que se estenderam em cadeia por toda a Hungria, desde o começo se mostraram órgãos da insurreição – reunindo os delegados eleitos em fábricas, universidades, minas e unidades do exército e órgãos de autogoverno popular, que gozavam de ampla confiança do povo armado. Como tais, tinham tremenda autoridade, e não é exagero afirmar que até o ataque soviético de 4 de novembro o poder real do país estava em suas mãos”. Fryer estava em Budapeste quando os russos lançaram – durante quatro dias e quatro noites ininterruptas – bombardeios que deixaram vastas zonas da cidade, sobretudo os bairros operários, praticamente em ruínas. Quando enviou suas informações, desmascarando o crime stalinista contra a revolução operária na Hungria, o jornal sequestrou seus informes e, subsequentemente, o Partido Comunista da Grã-Bretanha expulsou-o de suas fileiras.

Fryer, a imprensa operária e o movimento trotskista

Depois de romper com o stalinismo – junto a diversos intelectuais e historiadores ingleses, no mesmo período, tais como R. Williams, E. P. Thompson e E. Hobsbawn – uniu-se às então incipientes fileiras do movimento trotskista inglês. Em 1957 editou, junto a Gerry Healy, o jornal The Newsletter – publicado pelo grupo The Club, transformado depois em Socialist Labour League (Liga Socialista dos Trabalhadores), publicação regular com alguma influência no movimento operário –, do qual se afastou em 1959.

Depois de 1985, colaborou – mesmo sem chegar a se filiar – com o semanário político Worker’s Press, editado pelo Worker’s Revolutionary Party (Partido Revolucionário dos Trabalhadores). Colaborou com a publicação de Labour Review até seu rompimento com o dirigente trotskista britânico G. Healy.

Fryer, tornado editor de The Newsletter, promoveu conferências de base destinadas a sindicalistas perseguidos pelo patronato, pela direita trabalhista e pelos “comunistas” do PC. Contudo, Healy centralizou o controle do jornal The Newsletter – tornando-o órgão oficial da SLL, em 1959 –, rompendo desta forma com tais experiências de base, sua natureza suprapartidária bem como com sua estreita relação com a nascente New Left (a Nova Esquerda britânica), movimento político-intelectual surgido após as rupturas antistalinistas provocadas pelos acontecimentos de 1959 – a invasão soviética à Hungria e a ofensiva anglo-israelense ao Egito – e socialmente alentado pela Campanha pelo Desarmamento Nuclear: galvanizador político-social da esquerda que orbitava fora das zonas de influência trabalhistas e “comunistas”. Fryer, após a centralização do jornal, demite-se de seu comitê editorial.

A partir de então passa a se dedicar à mais rigorosa pesquisa historiográfica, no interior da tradição marxista britânica, versando sobre diversos temas acerca das várias relações e formas de opressão social e política no Reino Unido e no mundo. Entre seus principais livros se encontram Oldest Ally, 1962 (traduzido ao castelhano como Portugal de Salazar; Staying Power: The History of Black People in Britain (1984) e Rhythms of Resistance (2000).

A obra revolucionária e o jornalismo socialista de Fryer

Em seu livro A Tragédia da Hungria, consta o parágrafo: “‘Na República Popular Húngara’, diz a Constituição de 1949, ‘todo o poder pertence à classe trabalhadora’. Por pouco tempo, neste outono, essa afirmação foi uma realidade. O povo teve o poder e não o abandonou senão depois de uma luta terrivelmente tenaz. A cada dia passado, desde que cessou a luta, vêm à luz notícias que confirmam a principal afirmativa deste livro: que a agitação na Hungria foi o movimento de um povo contra a tirania, a pobreza, a ocupação e a tutela estrangeiras. A revolução foi derrotada, ou melhor, afogada em sangue e enterrada entre escombros e mentiras – mas o movimento continua, tenaz, desesperado, aparentemente inexorável. O proletário industrial da Hungria está demonstrando diariamente, para o mundo inteiro, seu inabalável desafio a um governo fantoche, sustentado por armas estrangeiras, que tem a audácia de se chamar a si mesmo ‘governo operário e camponês’. O governo ameaça com demissões, adula, embuste e suborna com ofertas de alimentos, mas os trabalhadores provam que eles são os verdadeiros senhores. Os trabalhadores das minas estão prontos a inundá-las, enquanto os operários das fábricas se recusam a voltar ao trabalho. Preferem a fome e a ruína à submissão. Este é um povo cujo espírito de luta será muito difícil de quebrar.”

Após a implosão do WRP – partido trotskista inglês – durante a greve mineira de 1984-1985 e a desaparição de Healy do cenário político, Peter Fryer retornou à práxis revolucionária, e recomeçou a escrever uma coluna regular no Worker’s Press. Foi então que demonstrou o auge de suas qualidades jornalísticas. Era extremamente rigoroso em termos da qualidade da escrita, além de talentoso polemista. Se em seus textos mostrava-se um crítico intransigente a favor da excelência das matérias a publicar, pessoalmente nunca deixou de encorajar entusiasticamente que cada trabalhador sempre escrevesse, por seus próprios punhos, os relatos da vida e da luta operária – em todas suas nuances.

Exímio jornalista revolucionário, Fryer era um escritor afinado com a concepção leninista de imprensa – em especial a importância fundamental atribuída ao jornal revolucionário, enquanto organizador coletivo, e o papel imprescindível de seus correspondentes operários no seu interior –, tendo sempre se preocupado em alcançar uma ampla audiência política, de base operária e popular. Neste sentido, ministrou diversas oficinas – sempre para a base de trabalhadores, militantes e escritores socialistas – sobre como escrever para as multidões e, como resultado desta experiência, escreveu um livro que se tornou referência obrigatória a este respeito, sob o título Lucid,Vigorous and Brief: advice to new writers (Lúcido, Vigoroso e Breve: dicas para novos escritores). A orelha do livro dá bem a dimensão do conteúdo da obra e, em síntese, do caráter do próprio escritor: “Quer saber quando usar um travessão ou uma vírgula? A orientação de Fryer para uma escrita clara é particularmente eficaz para alfinetar a pompa e evitar a pretensão. Inclui capítulos em temas tais quais ‘como escrever uma sentença’, ‘como escrever um parágrafo’, ‘como escrever um artigo’, ‘como escrever uma notícia’ e as características indispensáveis a um escritor cuidadoso. Conhecido como experiente jornalista socialista, o estilo do Fryer e suas dicas são úteis para qualquer um que precisa escrever para ser compreendido, particularmente no que se refere à prática do jornalismo e da reportagem”.

Peter Fryer: presente!

Seu último trabalho – Rhythms of Resistance (2000) que, como a maioria de sua vasta obra, continua inédito em português – trata da herança musical africana na formação do Brasil. Dando continuidade a seus estudos sobre negros e negras, o interesse de Fryer em ouvir e tocar música surgiu por conta de suas recorrentes viagens ao Brasil, junto a seu genro brasileiro. Assim como alta autoridade na história do blues e da música negra da África e das Américas, era também notório pianista de blues, tendo se apresentado constantemente até sua recente morte. Pouco antes de morrer estava trabalhando em um estudo sobre o modo de vida no Mississippi (Sul do EUA) nos séculos XIX e XX, sob o título provisório de Por Detrás do Blues. Sua intenção era revisar a história negra da América do Norte, com o que pretendia estabelecer um novo cânone a este respeito, tal como fizera com o livro Staying Power no Reino Unido.

Fryer, apesar da saúde precária do último período, continuou seu trabalho de pesquisador socialista e escritor operário, e certamente teria muito a contribuir para o 50º aniversário da Revolução de 1956 – inclusive nos desdobramentos da Conferência do Grupo de Historiadores Socialistas de Londres, da qual participou, em fevereiro de 2006. Peter Fryer, revolucionário marxista, deu uma incomensurável contribuição à história da esquerda e do movimento operário internacional durante mais de 50 anos a fio.

Se é bem verdade que a Revolução Húngara sofreu uma severa derrota também o é que foi graças à fiel reportagem de Fryer que ficou demonstrado, de maneira definitiva – e com evidências irrefutáveis –, que longe de ter sido uma contra-revolução reacionária visando a restauração capitalista, o que se viu na Budapeste de 1956 foi uma verdadeira revolução dos operários, camponeses e da maioria da população húngara, para tomar em suas mãos o controle de seu próprio destino. O compromisso histórico com a causa da revolução socialista, seus incríveis dotes literários e a excelência do rigor investigativo que trazia em si são qualidades inelidíveis de Fryer, para além de suas opções políticas ao largo de sua vida. Será sempre lembrado pelo proletariado húngaro, pelo povo negro e por todos/as aqueles e aquelas que odeiam a injustiça e a desigualdade social. A perda de Fryer é uma lástima para o movimento operário e o marxismo revolucionário de todo o mundo, e a maior homenagem que lhe pode ser prestada é o seguimento consequente do sentido impresso à sua vida e à sua obra, integralmente dedicadas ao soterramento da Ordem do Capital e à inauguração da verdadeira história da humanidade: livre e universal.

Referência bibliográfica

FRYER, Peter: BROUÉ, Pierre; NAGY, Balász e YANG, Elizabeth Ingrid. Hungria del ’56: revoluciones obreras contra el stalinismo. Buenos Aires: IPS, 2006.