Beto della Santa
No dia 8 de março de 1857, trabalhadoras fabris de uma indústria têxtil de Nova Iorque, em greve e ocupação pela diminuição da jornada de trabalho, foram trancadas. A fábrica foi incendiada pelos patrões, provocando-se assim a morte de 129 operárias. No II Congresso Internacional das Mulheres Socialistas (Copenhague, Dinamarca, 1910), Clara Zetkin – principal delegada alemã e editora do jornal socialista A Igualdade –, propõe essa data como referencial para todas as mulheres comemorarem suas lutas e homenagearem suas martíres, em todo o mundo.
Invariavelmente esta é a versão, hegemônica, adotada para narrar e descrever a origem do que se conhece genericamente como o Dia Internacional da Mulher – reproduzida anualmente, com algumas alterações, em folhetos, boletins e publicações das mais diferentes organizações afins ao movimento de mulheres –, celebrado ao dia 8 de março de cada ano. Nada obstante, não há quaisquer evidências documentais – seja na imprensa burguesa ou mesmo nas numerosas publicações socialistas da respectiva época – sobre o suposto incêndio de 1857 (ou 1908, segundo outros). Mais ainda: no artigo mesmo em que Clara Zetkin propõe a criação do Dia Internacional da Mulher Trabalhadora – publicado no jornal socialista A Igualdade; ainda sem qualquer data preestabelecida para a dita celebração – tampouco há qualquer menção ao suposto incêndio de Nova Iorque. A “versão nova-iorquina” (sobre a origem do 8 de março) teria sido resultado involuntário de uma malha causal de sucessivas justaposições entre datas, locais e fatos diversos – oriunda simultaneamente de abundantes registros de lutas operárias, do final do século XIX ao início do século XX, que nos EUA e Europa tiveram significativa expressão feminina –, que trataremos de analisar mais adiante. De qualquer forma, em um primeiro momento, suspendamos brevemente o juízo.
Seria admissível – ou mesmo razoável – supor que uma greve operária com ocupação de fábrica, um subseqüente incêndio criminal, além das tantas mulheres sacrificadas, enfim, não fossem rememoradas justamente por Clara Zetkin – dirigente internacional das mulheres socialistas – na ocasião mesma em que se fez proposta de tamanha envergadura? Parece-nos, evidentemente, que não. De qualquer forma, tratar-se-ia de (a objeção à versão nova-iorquina) uma polêmica historiográfica menor – controvérsia restrita a especialistas, irrelevante mal-entendido ou até mesmo inofensivo mito fundacional – caso não ocultasse detrás de si um outro 8 de março. O calendário russo juliano registrava o dia 23 de fevereiro – equivalente ao 8 de março, em nosso calendário ocidental gregoriano – quando dezenas de milhares de mulheres operárias de Petrogrado lançaram-se em greve espontânea contra a guerra imperialista e, desta forma, deram início à Revolução Russa, em 1917. Não é por acaso que Alexandra Kollontai – proeminente líder revolucionária russa – escreve: “O dia das operárias, 8 de março de 1917, foi uma data memorável na História (…) as mulheres russas levantaram a tocha revolucionária. A Revolução de Fevereiro acabara de começar”.
I.
A concepção marxista da história, na “própria tentativa de se aproximar de uma verdade geral da época”, envolveria a superação de “cegueiras e obstáculos cognitivos” e a identificação de “avanços [teóricos] e [novas] descobertas” (Anderson, 2004) no percurso da história da teoria. Por outro lado, sua respectiva teoria da história estaria indissoluvelmente imbricada, caso aspirasse a ser real, em complexa trama de lutas sociais. Ainda segundo Anderson, a historiografia marxista teria como pressuposto a documentação segundo as “normas clássicas de controle de evidências concretas” (idem, ibidem). Não se trata aqui, sem embargo, de questionar tão-somente a configuração última de um objeto de significação social sobre o passado remoto, mas sim de evidenciar as múltiplas determinações – e as mediações equivalentes – que condicionaram o processo através do qual a “versão nova-iorquina”, mítica, se impôs perante a memória coletiva, silenciando historicamente o real protagonismo social das mulheres operárias na Revolução Russa. A dissipação do nevoeiro ideológico que condicionou o predomínio dessa versão – amplamente legitimada tanto pelo imperialismo hegemônico quanto pela burocracia moscovita, em plena Guerra Fria –, permitir-nos-á buscar, a partir de um momento decisivo de sua constituição, a relação “realmente existente” entre o marxismo revolucionário e a luta anti-opressão ao largo da gênese histórica do Dia Internacional da Mulher Trabalhadora.
Para além da recuperação historicista do passado (o “como”) – autolimitada estruturalmente à aferição de seu efetivo compromisso com os fatos –, buscar-se-á a causalidade profunda (o “porquê”) que operou sobre o processo cujo ponto de chegada é o esquecimento histórico. Desta maneira, pretende-se enriquecer a memória histórica, mediante o devir concreto, da experiência coletiva (de sangue, suor e lágrimas) de gerações inteiras de combativas mulheres socialistas. Mulheres estas que, seja na Europa ou nos EUA, deram suas vidas pelo ideal da extinção de toda forma histórica da opressão social. O ofício de “escovar a história a contrapelo” (Benjamim, 1940) – a partir da negação da historiografia oficial de “todos aqueles que venceram antes” (idem, ibidem) – produz a substância que deve iluminar as trilhas futuras e, desta forma, transforma todos/as aqueles/as comprometidos/as com a construção do novo em defensores da memória. Afinal, “há coisas que não podem se perder” (Arcary, 2002). Senão, vejamos.
II.
Em meados do século XIX e início do XX, o nascente capitalismo industrial reservava o trabalho fabril indiscriminadamente a homens, mulheres e crianças; em jornadas de 12, 14 e 16 horas; em semanas de seis dias inteiros e, freqüentemente, incluindo as manhãs de domingo. Marx (1867; 1999), em O Capital, descreveu o trabalho de mulheres e crianças como “a primeira palavra de aplicação capitalista da maquinaria”, submetendo-se todos os membros da família operária – sem distinção de sexo ou idade – ao domínio direto da Ordem do Capital. Os salários eram horríveis, havia insuportáveis condições de trabalho e os proprietários tratavam as reivindicações dos trabalhadores como verdadeiros casos de polícia. Os operários eram considerados como pertencentes às “classes perigosas” e, no interior deste vasto contingente proletário, as mulheres trabalhadoras – em especial, as operárias têxteis – certamente faziam parte do setor mais explorado e oprimido. Nesse contexto, sucediam-se inúmeras lutas sociais de trabalhadores/as: por salários dignos, pela redução das jornadas laborais, pela melhoria das relações de trabalho, pela proibição do trabalho infantil etc.
Assim como na Europa, fazia-se intenso o movimento operário nos EUA – já desde a segunda metade do século XIX –, sobretudo nos setores da produção mineira e ferroviária; além de tecelagem e vestuário. No umbral do século XX, abundam os registros de combates travados por mulheres trabalhadoras dos EUA. A emergente economia industrial norte-americana, ainda muito instável, era marcada por sucessivas crises. Assim sendo, em 1903 formou-se, por ação de mulheres sufragistas e profissionais liberais, a Women’s Trade Union League (“Liga Sindical das Mulheres”), com o objetivo de organizar as trabalhadoras assalariadas. Com as crises industriais de 1907 e 1909, reduziu-se o salário dos/as operários/as. A oferta de mão-de-obra, por outro lado, era imensa, devido também à numerosa imigração proveniente da Europa. A imensa maioria dos operários e operárias era de imigrantes judeus e/ou italianos, muitos com um histórico de práticas político-sindicais de esquerda. No último domingo de fevereiro de 1908, as mulheres socialistas dos EUA fizeram uma manifestação a que chamaram “Dia das Mulheres”, reivindicando o direito ao voto e melhores condições de trabalho. No ano seguinte, em Manhatan, o Dia das Mulheres reuniu 2 mil pessoas. A unidade dos/as operários/as têxteis, porém, enfrentava uma forte tirania patronal, exercida através de métodos que incluíam o trancamento dos trabalhadores em pleno expediente, o ocultamento do relógio e o controle rígido sobre o uso dos banheiros.
Não é de se estranhar que, em função da abastança de relatos, a origem da versão nova-iorquina articule aspectos de eventos diferentes e combinados. Em particular, mesclam-se dois casos. O primeiro é uma longa greve de trabalhadores fabris – que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910 –, mais de 50 anos depois da suposta greve operária. O segundo envolve uma outra greve – entre tantas outras – também em Nova Iorque, em 1911. Após o fim da segunda greve registrou-se – ao final de março de 1911 – a morte de 146 pessoas durante um incêndio causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma companhia têxtil especialmente opressiva, a Triangle Shirtwaist Company (“Companhia de Blusas Triângulo”). As operárias mortas eram, em sua maioria, mulheres imigrantes, judias e italianas. Esse incêndio foi, evidentemente, descrito pelos jornais socialistas – numerosos nos EUA daqueles anos – como um crime dos patrões, enfim, um “crime capitalista” (1) . Aí está a evidência empírica que nos leva ao equívoco. Não há qualquer registro sobre fato histórico com essas características em 1857 ou 1908 – anos indicados nas diferentes “versões nova-iorquinas” do 8 de março –, mas sim em 1911, um ano após o Congresso no qual Zetkin teria-o mencionado como marco de homenagem à luta das mulheres socialistas. Zetkin teria proposto que o Dia das Mulheres se tornasse “uma jornada especial, uma comemoração anual de mulheres, seguindo o exemplo das companheiras americanas”. O final da intervenção é nebuloso. No entanto, num artigo do jornal alemão Diegleichheit (28/ago./1910), “o exemplo das companheiras americanas” – citado por Zetkin – que nada tinha a ver com o ocorrido na Triangle (o qual ainda tardaria um ano por ocorrer), evidenciar-se-ia na forma de seu eixo reivindicatório central: a propaganda do sufrágio feminino, em especial, através da instituição de um Dia das Mulheres.
III.
A suposta greve seguida de incêndio – ocorrida em Nova Iorque, em 1857, na qual 129 operárias teriam morrido depois de os patrões terem tocado fogo na fábrica sob plena ocupação operária – trata-se de construção mítica em torno a um 8 de março fictício ou, mais simplesmente, o que viemos denominando a “versão nova-iorquina”. A primeira menção a essa greve imaginária – sem nenhum dos detalhes que serão acrescentados posteriormente – aparece no jornal do Partido Comunista Francês (PCF), nas vésperas do 8 de Março de 1955. Mas a fixação da data do 8 de março, devido a esta pretensa greve, ocorre em publicação da Federação Internacional Democrática das Mulheres, em Berlim, na então República Democrática Alemã (Alemanha Ocidental). O boletim data de 1966 e versa, de forma bastante abreviada, sobre o tal incêndio que teria ocorrido em 8 de março de 1857.
Depois se afirma que em 1910, durante a II Conferência da Mulher Socialista, a dirigente do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), Clara Zetkin, em lembrança à data da suposta greve das tecelãs norte-americanas (53 anos antes), teria proposto o 8 de março como data do Dia Internacional da Mulher. O engano cometido pelo jornal L’Humanité não menciona nada sobre 129 mulheres calcinadas. Começa-se a imiscuir estas mulheres carbonizadas à versão nova-iorquina, em publicação da Federação Alemã das Mulheres.
Desta maneira, constatamos que houve inúmeras greves e repressões de trabalhadores e trabalhadoras no período que vai do final do século XIX até o início do século XX, mas nenhum desses eventos dizem respeito à morte de mulheres em Nova Iorque, a qual teria dado origem ao Dia das Mulheres. Tais buscas revelam, para Coté (citada por Vasconcelos, 1996), que não houve uma “greve heróica” – seja em 1857 ou em 1908 –, mas antes de tudo um feminismo heróico, de forte influência socialista, que lutava por se afirmar entre as trabalhadoras norte-americanas. Em busca das origens do 8 de março, Coté (idem, ibidem) tratou de tecer os fios da memória da luta das mulheres socialistas norte-americanas. Vejamos então: (i) Em 1908 há registro da celebração do Dia das Mulheres – documentado pelo jornal The Socialist Woman (“A Mulher Socialista”) – com a participação de 1500 mulheres que “aplaudiram as reivindicações por igualdade econômica e política das mulheres, no dia consagrado à causa das trabalhadoras”. (ii) No ano seguinte, o Dia das Mulheres foi atividade oficial do Partido Socialista dos EUA, organizado pelo Comitê Nacional de Mulheres e comemorado em 28 de fevereiro de 1909, sob convocatória do Woman Suffrage Meeting (“Encontro do Sufrágio Feminino”). (iii) Em 27 de fevereiro de 1910 ocorre o Women’s Day (“Dia das Mulheres”) no Carnegie Hall, com cerca de 3 mil mulheres, onde se reuniram as principais associações em favor do sufrágio feminino, convocadas pelas mulheres socialistas. Até então a proposta restringia-se ao voto feminino, em alcance somente nacional e sem data fixa.
O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora foi proposto por Clara Zetkin em 1910, no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhage, Dinamarca. Clara Zetkin propôs, neste congresso, uma resolução para instaurar oficialmente um dia internacional das mulheres. Nessa resolução, não se faz nenhuma alusão ao dia 8 de março. Clara apenas menciona, tal como vimos, seguir o exemplo das socialistas norte-americanas. Na verdade, a proposta é endossada em torno à iniciativa da própria delegação norte-americana. A partir daí as comemorações começaram a ter um caráter internacional, expandindo-se pela Europa, a partir da organização e iniciativa das mulheres socialistas. O dia fica, contudo, ainda indefinido. A escolha do dia resta a cargo de cada delegação, de cada país, segundo critérios próprios. A resolução aprovada será publicada logo em seguida no jornal A Igualdade de 29 de agosto. “As mulheres socialistas de todas as nações organizarão um Dia das Mulheres específico, cujo primeiro objetivo será promover o direito de voto das mulheres. É preciso discutir esta proposta, ligando-a à questão mais ampla das mulheres, numa perspectiva socialista”. A outra proposta, de comemorar o Dia da Mulher junto à data já tradicional da causa operária, o 1º de Maio – defendida por Clara e várias outras delegadas –, fora derrotada. O Dia das Mulheres deveria ser comemorado num dia específico.
Em 1913, Kollontai escreve ao jornal russo Pravda sobre o significado do Dia das Mulheres para as mulheres socialistas: “No Dia das Mulheres, as mulheres organizadas se manifestam contra sua falta de direitos. Mas alguns dizem: Por que esta separação das lutas das mulheres? Por que há um Dia das Mulheres, panfletos especiais, conferências e encontros? Não é, enfim, uma concessão às sufragistas burguesas? Somente aqueles que não compreendem a diferença radical entre o movimento de mulheres socialistas e as feministas burguesas podem pensar dessa maneira. (…) Cada distinção especial em relação às mulheres no trabalho de uma organização operária é uma forma de elevar a consciência das trabalhadoras e aproximá-las às fileiras daqueles que estão lutando por um futuro melhor. O Dia das Mulheres e o lento, meticuloso, trabalho levado para elevar a autoconsciência da mulher trabalhadora estão servindo à causa não da divisão, mas sim da unidade, da classe trabalhadora. (…) Qual é o objetivo das feministas burguesas? Conseguir as mesmas vantagens (…) que possuem agora seus maridos, pais e irmãos. Qual é o objetivo das operárias socialistas? Abolir todo tipo de privilégios que derivem do nascimento ou da riqueza”.
IV.
Na Europa, a primeira celebração do Dia das Mulheres aconteceu em 19 de março de 1911, por decisão da Secretaria da Mulher Socialista, órgão da II Internacional. Kollontai, que propôs a data, afirma que objetivava lembrar um levante de mulheres proletárias, na Prússia, em 19 de março de 1848. Nesse dia, escreveu Kollontai, as mulheres conseguiram do Rei da Prússia a promessa, depois não-cumprida, de obter o direito ao voto. Nos EUA, a tradição de realizar o Dia das Mulheres no último domingo de fevereiro se repetiu até 1913. Em 1914, será comemorado em 19 de março, seguindo a indicação da Kollontai. Nos vários países da Europa, após a decisão da II Conferência – onde havia um partido socialista –, começou-se a comemorar o Dia das Mulheres. Na Suécia, a primeira comemoração foi em 1º de março de 1911; o mesmo aconteceu na Itália. Na França, o começo do Dia das Mulheres foi em 1914, comemorado ao dia 9 de março, próximo ao Dia das Mulheres na Alemanha. Em 1914, pela primeira vez na Alemanha, Clara Zetkin e as mulheres socialistas marcam data do Dia da Mulher para 8 de março. Não se explicou o porquê dessa data, e tampouco era necessário. Tratava-se de um detalhe menor, absolutamente irrelevante: o importante era a realização do evento. Na Rússia, sob o secular jugo da opressão do Czár, o primeiro Dia das Mulheres só foi comemorado em 3 de março de 1913. Em 1914, todas as principais organizadoras do Dia das Mulheres foram presas – a repressão do absolutismo czarista era brutal – e com isso não houve celebração alguma.
Em plena guerra mundial interimperialista – em 1917, na Rússia –, as mulheres socialistas realizaram seu Dia das Mulheres ao dia 23 de fevereiro (8 de março). Era o mesmo dia que, na Alemanha, tinha sido escolhido no ano de 1914. Foi nesse dia que explodiu a greve espontânea das tecelãs e costureiras de Petrogrado. As mulheres operárias desencadearam uma greve geral, saindo corajosamente às ruas de Petrogrado, no dia internacional das mulheres: contra a fome, a guerra e o czarismo. Desta forma, multitudinários contingentes de mulheres operárias do bairro de Viborg – em sua maioria trabalhadoras têxteis – lançaram-se espontaneamente em greve política insurreicional de massas e, subseqüentemente, tomaram as ruas em torno à palavra-de-ordem fundamental da reivindicação por “Pão, Paz e Liberdade”. Em plena guerra, amotinaram-se principalmente ante a escassez de alimentos e contra a participação de tropas russas. Fartas que estavam da horrível situação de guerra, miséria e inanição; milhares de mulheres anônimas insurgiram-se contra o regime czarista. A ação direta das mulheres operárias – como atesta Lev Davidovich Bronstein, o Trotsky, no primeiro tomo de sua clássica obra História da Revolução Russa –, supera as direções revolucionárias tanto do Comitê dos Tecelões de Rayon quanto do próprio Partido Bolchevique, desencadeia a Revolução de Fevereiro iniciando, desta forma, a primeira fase da Revolução Russa. A maior revolução social do século XX, que desembocara na conquista do poder pelo proletariado em outubro de 1917 – pela primeira vez na história da humanidade, após a breve experiência da Comuna de Paris –, tivera início dessa forma, com jovens mulheres russas à frente de seu primeiro e decisivo passo. Conforme a narração de Trotsky:
“O 23 de fevereiro era o Dia Nacional das Mulheres. Programava-se, nos círculos da socialdemocracia, mostrar o seu significado com os meios tradicionais: reuniões, discursos, boletins. Na véspera, ninguém teria imaginado que este Dia das Mulheres pudesse ter inaugurado a revolução. Nenhuma organização planejava alguma greve para aquele dia. Ainda por cima, uma das mais combativas organizações bolcheviques, o Comitê dos Tecelões de Rayon, formado essencialmente por operários, desaconselhava qualquer greve. O estado de espírito da massa, segundo Kaiurov, um dos chefes operários deste setor, era muito tenso e cada greve ameaçava tornar-se um confronto aberto. O Comitê julgava que o momento de começar hostilidades ainda não tinha chegado, que o Partido ainda não tinha forças suficientes e, ao mesmo tempo, a união entre soldados e operários ainda era insuficiente. Por isso, tinha decidido não chamar a greve, mas a se preparar para a ação revolucionária, num futuro ainda não definido. Esta era a linha de conduta preconizada pelo Comitê, na véspera do dia 23, e parecia que todos a tinham aceitado. Mas na manhã seguinte, contra todas as orientações, as operárias têxteis abandonaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegadas aos metalúrgicos para pedir-lhes que apoiassem a greve. Foi a contra-gosto, escreve Kaiurov, que os bolcheviques, seguidos pelos operários mencheviques e pelos socialistas de esquerda, juntaram-se à marcha. Como se tratava de uma greve de massas, era necessário comprometer todo mundo para sair às ruas e estar à frente do movimento. Esta foi a resolução proposta por Kaiurov e o Comitê de Vyborov se sentiu forçado a aprová-la. Pelos fatos, é então certo que a Revolução de Fevereiro foi iniciada por elementos da base que passaram por cima da oposição das suas organizações revolucionárias, e que a iniciativa foi tomada espontaneamente por um contingente do proletariado, explorado e oprimido mais que todos os outros, as operárias têxteis. (…) O empurrão final veio das enormes filas de espera em frente às padarias”. (TROTSKY, 1933; 1985)
V.
Em 1921 realizou-se – em Moscou, na então União das Repúblicas Soviéticas Socialistas (URSS) – a Conferência das Mulheres Comunistas que adota o dia 8 de março como data unificada para o Dia Internacional das Mulheres Socialistas. A partir dessa Conferência, a recém-criada III Internacional divulgará a data do 8 de março como efeméride de celebração e homenagem à luta das mulheres contra a opressão em todo o mundo. Segundo Coté, “uma camarada búlgara propõe o 8 de março como data oficial para a jornada, lembrando a iniciativa das mulheres russas [de 1917]”. É a partir de 1922, portanto, que o Dia Internacional da Mulher Socialista é celebrado oficialmente ao dia 8 de março. Essa história se perdeu das “metanarrativas históricas” – como costumam dizer os pós-modernistas –, seja do movimento socialista, seja dos historiadores profissionais do período supracitado. Nada obstante, é parte fundamental da história social e política das mulheres trabalhadoras e, em especial, do movimento de mulheres socialistas do começo do século XX. Na Rússia pós-revolucionária, nos anos subseqüentes à Vitória de Outubro, o dia 8 de março era diligentemente celebrado.
O que explica, então, o progressivo esquecimento histórico da celebração em si e, tão ou mais importante, de seu significado original? As circunstâncias através das quais opera este deslocamento político-ideológico sintetizam-se em um quadrante histórico aberto após o isolamento da Revolução Russa: (i) a derrota da insurgência proletária no Velho Continente (Alemanha, Áustria, Hungria e Itália) no pós-guerra, entre 1918 e 1922; (ii) a constituição de frentes populares (colaboracionismo de classe), abrindo passo à ascensão do fascismo e configurando nova derrota operária nos anos 30; (iii) o crescente processo de stalinização com afastamento de intelectuais dos partidos comunistas e, por fim, (iv) a subordinação do Trabalho ao Capital, mediante o boom econômico do segundo pós-guerra, sob as democracias parlamentares na Europa Ocidental. O período pós-45 marca, enfim, a adesão ativa dos partidos social-democratas e comunistas à Ordem do Capital. Trata-se de um produto eminentemente histórico. É uma angustiante e no mínimo dupla derrota do movimento operário: o triunfo fascista no Ocidente e a consolidação stalinista no Oriente. Os acordos contra-revolucionários de Ialta e Potsdam – firmados entre a burocracia moscovita e o imperialismo hegemônico – dividem o mundo, então, em áreas de influência entre os EUA e a ex-URSS. No afã de dar mostras de comprometimento “democrático” com a “coexistência pacífica”, o neoczár Stálin dissolve a estrutura político-organizativa da Internacional Comunista em 1943 – já com severas degenerescências burocráticas –, negando a perspectiva internacionalista da Revolução de Outubro com a qual foi fundada a União Soviética e a própria III Internacional. O objetivo era, sob o signo da “teoria do socialismo em um só país”, tranqüilizar os novos aliados imperialistas – à petição direta de Churchill e Roosevelt, em especial – sobre a inexistência de qualquer horizonte pró-revolucionário em seus respectivos satélites: os partidos comunistas do ocidente capitalista.
VI.
A pressão histórica – a lógica campista da chamada Guerra Fria (“Cold War”) – fez com que o dia gradativamente perdesse o atrativo inicial. O adjetivo socialista caiu à medida que o arrojo revolucionário da União Soviética começou a se desvanecer. Nos últimos anos da década de 1920 e, sobretudo nos anos 30, o Dia Internacional da Mulher Socialista foi varrido pelo vendaval contra-revolucionário que se abatera sobre o mundo. A ascensão do nazi-fascismo na Europa Ocidental e o crescimento do stalinismo, na URSS e Leste Europeu, enterram as manifestações do Dia das Mulheres. O marco do 8 de Março, data de greve das operárias têxteis da Petrogrado revolucionária de 1917, fora esquecido. O marco da vitória das rebeldes russas, que impôs a derrota do czarismo e abriu passo para a Revolução Russa, já não interessava aos stalinistas (como tampouco agradava à social-democracia). O que dizer então do imperialismo norte-americano, em plena Era MacCarthista de cruzada anticomunista? O contexto ideológico propiciou amplamente o esquecimento da verdadeira história do Dia das Mulheres, possibilitando sua respectiva reconfiguração eclética, arbitrária e, ainda assim, casual.
Assim que, na década de 1950 – nas publicações do PCF – começou-se a aludir sobre uma pretensa luta das operárias norte-americanas, datada de 8 de março de 1857. Talvez a célebre greve do 1º de Maio, na Chicago de 1886; as numerosas greves nas tecelagens norte-americanas e quiçá a fatídica história das operárias da empresa Triangle tenham estimulado os exercícios de historicização contra-factual, deixando terreno fértil para a fantasiosa ênfase dos EUA na luta social das mulheres operárias. Desta maneira, o deslocamento espaço-temporal para a data de 1857, em Nova Iorque, se sobrepôs. Em sucessivas vagas de narradores e narrativas, chegou-se à reconstrução mítica do que aqui intitulamos a “versão nova-iorquina”. No dia 1º de março de 1964, o jornal Antoinette – do sindicato CGT francês – afirma: “Foram as americanas que começaram. Era 8 de março de 1857. Para exigir as 10 horas, elas ocuparam as ruas de Nova Iorque”. Trata-se da continuação do que já tinha aparecido no jornal do PCF, em anos anteriores. E, finalmente, foi assim, sem qualquer forma de objetivo pré-determinado, ideação teleológica ou maligna conspiração que – na Alemanha Oriental, em 1966 – a Federação das Mulheres Comunistas historicizou o Dia das Mulheres, acrescida pela versão do martírio das 129 mulheres calcinadas. A fôrma estava, então, completa. Desta maneira, propagou-se o mito da versão nova-iorquina sobre o 8 de março às diferentes latitudes do globo. E o mundo, sabe-se, a aceitou de bom grado.
As décadas de 1960 e 1970, em plena Guerra Fria – que polarizou política, econômica e militarmente o planeta entre as zonas de influência de Washington e Moscou –, trouxeram, contraditoriamente, novas alternativas emancipatórias. A primavera social dos chamados novos movimentos – ecologista, anti-racista e feminista etc. – foram coetaneamente subproduto da esterilização contra-revolucionária do marxismo promovida pelo stalinismo e da ascensão da hegemonia burguesa em sua ofensiva imperialista. Desta forma – apesar de apresentarem críticas pontuais à Ordem do Capital – passaram ao largo de qualquer perspectiva de totalidade, afastando-se do horizonte da luta revolucionária. A cor lilás – símbolo aristocrático das sufragistas burguesas (2) – substituiu as bandeiras vermelhas do movimento de mulheres trabalhadoras e, conseqüentemente, a proposta de unir o combate à opressão das mulheres ao caudal da luta operária, contra a exploração dos despossuídos, finalmente se diluiu enquanto movimento de massas. A subseqüente institucionalização e burocratização do movimento de mulheres, deslocado material e ideologicamente de sua origem social e política, abriu as portas para a entrada em cena da Organização das Nações Unidas (ONU). À ocasião da celebração em 1975 do Ano Internacional da Mulher, no relatório da ONU, faz-se um breve histórico do 8 de março no qual se silencia – da maneira mais absoluta – os acontecimentos ocorridos na Rússia em 1917; precisamente os que fariam este dia ser escolhido para se celebrar o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora (não só das Mulheres, como se diz).
VII.
A construção mítica do 8 de março não constitui valor utópico na luta contra a opressão das mulheres. Significa, ipso facto, a omissão da verdade histórica – suficientemente plena de sentido – que impregna toda a luta da mulher no caminho por sua libertação. A comemoração dessa jornada de lutas só tem a ganhar com a retomada de sua significação histórico-identitária. Implica a reconstrução das origens do ideal socialista da maioria das mulheres que lutaram por uma nova ordem, sem exploração ou opressão do homem pelo homem e, especificamente, da mulher pelo homem. A medida mesma da superação das velhas contradições históricas em cada ordenação societal sempre será – como sabiamente afirmavam Fourier e Marx – a situação das mulheres. Um dia que quer retomar a tradição histórica das lutas de um outrora 8 de março precisa avançar – sem medo ou embaraço pelas derrotas sofridas nas revoluções sociais do século XX – rumo à conquista da real libertação feminina. Tal qual as revoluções proletárias, a luta anti-opressão deve saber sempre superar-se a si mesma.
Só assim poderemos enunciar a problemática que realmente interessa. Qual é, afinal, a real conexão entre a abolição das relações de poder entre os sexos e a luta por uma futura sociedade sem classes? Ou, por extensão, quais são as afinidades entre feminismo e marxismo? Em última instância, a resposta a estas perguntas deve ser encontrada no terreno fértil da História e – a sua vez – fecundada pela práxis. Se é verdade que a Ordem do Capital e a libertação das mulheres são irreconciliáveis entre si, também o é que um movimento social que encarne valores para além da opressão do homem sobre a mulher precisa ancorar-se, firmemente, entre aquelas e aqueles que produzem (e reproduzem) as condições materiais da existência humana na sociedade capitalista. Daí que a libertação da mulher não represente tão-só um problema de gênero mas, sobretudo, uma questão de classe. O resgate das origens socialistas e revolucionárias da luta contra a opressão das mulheres não se trata de um olhar perdido no passado. Muito pelo contrário. Trata-se de construir o futuro, hoje, sonhando o sonho juntos/as.
NOTAS
(*) Este ensaio baseia-se em ANA ISABEL ÁLVAREZ GONZÁLEZ. Los orígenes y la celebración del día internacional de la mujer, KRK-Ediciones: Oviedo, 1999.
(1) “À medida que as grandes empresas cederam algumas reivindicações, a greve foi se esvaziando e se encerrou em 15 de fevereiro de 1910 depois de 13 semanas. Pouco tinha sido alterado, sobretudo nas fábricas de pequeno e médio porte, e os movimentos reivindicatórios retornaram. A reação dos proprietários repetia-se: portas fechadas durante o expediente, relógios cobertos, controle total, baixíssimos salários, longas jornadas de trabalho. O dia 25 de março de 1911 era um sábado, e às 5 horas da tarde, quando todos trabalhavam, irrompeu um grande incêndio na Triangle Shirtwaist Company, que se localizava na esquina da Rua Greene com a Washington Place. A Triangle ocupava os três últimos de um prédio de dez andares. O chão e as divisórias eram de madeira, havia grande quantidade de tecidos e retalhos, e a instalação elétrica era precária. Na hora do incêndio, algumas portas da fábrica estavam fechadas. Tudo contribuía para que o fogo se propagasse rapidamente. A Triangle empregava 600 trabalhadores e trabalhadoras, a maioria mulheres imigrantes judias e italianas, jovens de 13 a 23 anos. Fugindo do fogo, parte das trabalhadoras conseguiu alcançar as escadas e desceu para a rua ou subiu para o telhado. Outras desceram pelo elevador. Mas a fumaça e o fogo se expandiram e trabalhadores/as pularam pelas janelas, para a morte. Outras morreram nas próprias máquinas. O Forward publicou terríveis depoimentos de testemunhas e muitas fotos. Morreram 146 pessoas, 125 mulheres e 21 homens, na maioria judeus. A comoção foi imensa. No dia 5 de abril houve um grande funeral coletivo que se transformou numa demonstração trabalhadora. Apesar da chuva, cerca de 100 mil pessoas acompanharam o enterro pelas ruas do Lower East Side. No Cooper Union falou Morris Hillquit e no Metropolitan Opera House, o rabino reformista Stephen Wise. A tragédia teve conseqüências para as condições de segurança no trabalho e sobretudo serviu para fortalecer o ILGWU. Para autores como Sanders, todo o processo, desde a greve de 1909, mais o drama do incêndio da Triangle, acabou fortalecendo o reconhecimento dos sindicatos. O ILGWU, de conotação socialista e um dos braços mais ‘radicais’ do American Federation of Labour (AFL), se tornou o maior e mais forte dos Estados Unidos naquele momento. Atualmente no local onde se deu o incêndio foi construída a Universidade de Nova Iorque. Uma placa, lembrando o terrível episódio, foi lá colocada: ‘Neste lugar, em 25 de março de 1911, 146 trabalhadores perderam suas vidas no incêndio da Companhia de Blusas Triangle. Deste martírio resultaram novos conceitos de responsabilidade social e legislação do trabalho que ajudaram a tornar as condições de trabalho as melhores do mundo (ILGWU)’” (Blay, 2004).
(2) “A reivindicação feminista mais radical – a extensão do sufrágio às mulheres no marco do parlamentarismo burguês – não resolve a questão da igualdade real para as mulheres, especialmente as que pertencem às classes despossuídas. A experiência das trabalhadoras dos países capitalistas nos quais nos últimos anos a burguesia introduziu a igualdade formal entre os sexos é bastante clara. O voto não acaba com a primeira causa da escravidão da mulher na família ou na sociedade. Alguns Estados burgueses substituíram o matrimônio civil pelo matrimônio indissolúvel. Mas enquanto as mulheres proletárias dependerem do empresário capitalista e de seus maridos, o sustento familiar e a ausência de medidas gerais que protejam a maternidade e a infância, que socializem a educação e o trato infantil, não se igualará a situação da mulher no casamento nem se resolverá a questão da relação entre os sexos” (Teses e Resoluções dos Quatro Primeiros Congressos da III Internacional).
Comentários