Elementos fundamentais da crise capitalista e do retorno a Marx

Fábio José Cavalcanti de Queiroz

O ano de 2013 é um ano muito especial para Marx e o marxismo. Começo pelas efemérides. Nem todas são felizes. Algumas são até trágicas. No próximo dia 05 de maio, vão ser lembrados os 195 anos do nascimento de Marx e, antes disso, foram recordados os 130 da sua morte (18 de março). Além de que, faz 160 anos do primeiro contato de Marx com a Liga dos Justos e165 do lançamento do Manifesto comunista.

Mais: recentemente, foram lembrados 75 anos do passamento de Riazanov, ainda como parte dos processos de Moscou. Foi executado, enterrado em uma vala comum, depois de sofrer o confisco de seus bens pessoais. A sua execução ocorreu em uma triste e fria noite do inverno russo de 1838. Foi ele que comandou a organização do Instituto Marx e Engels com uma biblioteca composta de cerca de 450.000 volumes. Couberam a Riazanov os primeiros esforços para publicação das obras completas de Marx e Engels. Previa o lançamento de 42 volumes (CERQUEIRA: 2010). Esse projeto naufragou nos expurgos stalinistas. Nesse átimo, não há como não se lembrar da gloriosa memória de Riazanov, executado há ¾ de século.

Por fim, lembraria ainda de duas efemérides.

Recordo que este é o ano em que se celebram os 115 anos do nascimento do professor e militante político marxista Roman Rosdolsky (autor do clássico Gênese e estrutura de O capital), prisioneiro de três “campos da morte” do nazifascimo. Só uma pulsação interna do seu caráter, revelada em um simples e sugestivo episódio, já seria mais do que o suficiente para celebrá-lo. Não custa lembrar: quando começou a perseguição da burocracia stalinista a Leon Trotsky e todos foram chamados a dizer sim e sim senhor, Rosdolsky disse não!

Dito isso, aproveito a deixa para recordar que no segundo semestre de 2013, completam-se 75 anos de um evento ocorrido na periferia de Paris: a conferência que deu origem a IV internacional cujo propósito era salvaguardar o programa e os princípios marxistas ameaçados por uma dupla barbárie que nascia de regimes sociais distintos e antagônicos. Refiro-me evidentemente ao nazismo e ao stalinismo. Essa monumental tarefa teve o seu germe em Leon Trotsky, que dois anos depois seria assassinado, no México, por um agente da GPU.

Presumo que somente essas acontecências já seriam o bastante para tomarmos o ano em curso em toda a sua riquíssima singularidade. Acontece que tudo isso é evocado no momento em que a recente crise cíclica do capitalismo adentra o seu quinto ano sem encontrar uma solução. Toda essa discussão remete de algum modo a Hegel, particularmente quando o mestre do idealismo alemão, certa vez, escreveu que “os fatos não se elegem a si próprios”. De feito, a evocação do marxismo – na presente quadra histórica – responde a motivações reais e surge sob o influxo de uma nova catástrofe econômica e social de viés estritamente capitalista. Não é o marxismo que elege a si próprio; é a realidade da luta de classes que o impõe.

Aos que acreditam que é um exagero falar de catástrofe ou guerra social, é suficiente olhar por algum tempo e refletir sobre o que acontece na Grécia, Portugal e na pequena ilha de Chipre. Imaginem essa calamidade estendida às porções mais pauperizadas do planeta (a maior parte da África, o Haiti e outros exemplos menos suscitados pela seletiva memória)!

Sendo assim, no presente artigo tento elucidar a real e frutífera relação entre crise capitalista, lento fim da escassez de luta de classes e o retorno ao velho Marx (bem como ao instrumental do marxismo). Em última hipótese: trata-se de pesquisar, mapear e medir a extensão desses elos que constituem essa complexa cadeia. Em outras palavras, a intenção é esclarecer quais são os elementos fundamentais em que se amparam os sujeitos e os ambientes da realidade abertos aos novos fluxos, nomeadamente da práxis marxista, em meio a essa longa fase de distúrbio na ordem do capital.

Marx e o marxismo frente uma nova crise capitalista

A crise em que se enredou o capitalismo é o mote. Nesse percurso, apenas em seu primeiro e dramático capítulo, ela consumiu aproximadamente 25 trilhões de dólares. O capitalismo – devorado por esse furacão – exige mais. O seu consumo exagerado de dólares (euros, libras, ienes, reais etc.) não extirpa a sua fome; senão a multiplica.

Obviamente, que a ligeira recuperação de 2009, uma recuperação anêmica, permitiu aos ideólogos do capital a deslanchar uma campanha cujo desenho panorâmico se expressou num singelo bordão: “o pior já passou”. Mas qualquer que fossem as vantagens que essa campanha garantisse, era limitado o seu alcance. Nesse caso, a certeza retumbante não demorou a cair do cavalo

Alguns dias de bonança acontecem e se mostram aos olhos de quem não se recusa a enxergar as pausas que surgem, ainda que somente como quem preparasse o instante seguinte de um novo patamar da velha crise. É certo que se desejava uma chuva de verão (“uma marolinha”), mas o inverno do capital se prolonga além do estimado.

Sobre as crises capitalistas, Marx e Engels eram bastante peremptórios:

“As relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa” (MARX; ENGELS, s/d: 26).

É impossível negar: a crise que vem se estendendo há cinco anos não apenas faz lembrar outras tantas crises, mas é a maior desde a de 1929. Diferentemente da sua antecessora, esta, contudo, encontrou os capitalistas e os seus governos mais preparados para levar a cabo um enfrentamento dos seus efeitos mais severos. Os trilhões injetados na economia ajudaram a salvar fábricas e bancos e os governos – mais do que nunca – atuaram como birôs para gerir os negócios da burguesia.

De fato, o capitalismo não caiará de maduro. Marx sabia disso. Deste ângulo, permanece atual o entendimento de Marx de que o capitalismo não cairá de podre ou em decorrência das suas crises de superprodução. Nenhum modo de produção desaparece sem não antes imprimir uma resistência demasiado ampla às forças que pretendem ultrapassá-lo.

Tal afirmação exige que seja aberto um parêntese cuja função seja definir o objeto em questão: a crise.

E a crise, o que é, afinal, a crise? Para Marx “é precisamente a fase de distúrbio e interrupção do processo de reprodução” (2009:36/37). Se a lógica do capitalismo tem a ver com a reprodução de valor e essa, a cada nova crise, sofre uma interrupção, entende-se por que as crises cíclicas representam uma ameaça à sociedade capitalista.

Karl Marx refere-se às relações entre as fases de produção e circulação, e ao contrário dos economistas burgueses, ele destaca não a inelutável unidade entre elas, mas traz ao primeiro plano a dialética entre a fase de produção e a de circulação, sublinhando não apenas o seu caráter unitário, mas, concomitantemente, o momento da sua separação violenta. Nasce dessa contradição o que chamei aqui de ameaça. Uma ameaça, contudo, não tem a significação de um grand finale absolutamente natural. Insisto: para Marx, e para o marxismo, o capitalismo não ruirá sozinho.

Fechado o parêntese, é preciso retomar o caso mais específico: a deblaque atual do sistema capitalista. Nesse aspecto, o fato mais decisivo é que a recuperação iniciada em 2009 revelou-se insuficiente, anêmica, decididamente frágil. Doutro lado, se os EUA deixaram de ser o epicentro da crise, esta girou, girou, girou e despencou todo o peso do seu destino sobre os ombros da velha Europa. O velho continente, hoje, é o epicentro dessa crise. Os efeitos são visíveis. A instabilidade política é um traço dessa nova quadra no cenário europeu. Governos caíram e novos governos subiram em Portugal, na Grécia, na França e na Itália. No pequeno Chipre, tudo que é sólido se desmancha no ar, inclusive as economias guardadas nos bancos. Greves gerais se sucedem e movimentos em escala de todo continente começam a ganhar corpo.

O resumo da ópera na U.E, em termos econômicos, é uma combinação de três peças – que têm mais de drama do que de epopéia: desaceleração, estagnação e recessão. Cada país escolhe uma das peças para brincar. Nessa inelutável situação, viceja no plano político-social um movimento que é duplo: de um lado, uma pouco usual fermentação política, de outro, um autêntico processo de reaquecimento das lutas de classes. Depois da queda abrupta, que marcou o ano de 2008; depois da recuperação anêmica de 2009, entre 2012 e 2013 estamos vivendo um processo de duradoura e inescapável agonia que se expressa – do ponto de vista dos assalariados do mundo inteiro – em uma queda tendencial do salário médio do trabalhador, vítima de uma nivelação universal por baixo, ainda que esse processo seja desigual e contenha mil e uma mediações. Já do ponto de vista dos senhores do capital, esse aperto em difusão se manifesta na queda da taxa média de lucro, esfera da vida que insiste em uma recusa inodora de alçar voos, salvo o voar pouco alentoso de uma galinha gravemente adoecida.

Mesmo os ditos emergentes, acompanham o padrão de desaceleração da Europa (onde esse processo é mais vigoroso) e dos EUA (onde esse processo é mais mediado). Entre os tais emergentes, o Brasil tem feito bastante esforço para segurar a lanterna dos afogados (crescimento de 0,9% do PIB em 2012). Aqui, a desaceleração é um fato (em que pesem as desigualdades setoriais e regionais)!

Nas voltas que a vida dá, repetidamente, as classes dominantes já não podem esconder de maneira absoluta as erosões que, volta e meia, dilaceram a economia capitalista, mas não se pode subestimar a propaganda, o engodo e a força ideológica da burguesia.

É preciso prestar bem atenção a como a burguesia trabalha o problema das crises. Como se vê: ela o trabalha politicamente. Ao mesmo tempo em que procura rolar o peso da crise para os ombros dos agentes mais débeis da ordem do capital tanto internamente quanto no plano internacional (Chipre, Grécia, Portugal etc.), não se furta em reforçar a exploração que cotidianamente sobrepõe ao proletariado. Exige, finalmente, que os governos de plantão se esforcem em conter essa descida que a tudo arrasta no marco daquilo que Marx, ironicamente, nomeou de políticas da “Arca de Noé”. No arco do tempo, contudo, há se registrar que na arca talvez não seja possível salvar um casal de cada espécie. Certamente, algumas espécies hão de desaparecer. Farão, decerto, companhia aos queridos e extintos mamutes e dinossauros, bem como poderão servir de tema para os futuros Spielbergs.

Neste passo, porém, a classe burguesa não se furta em aprender com as novas crises. Estuda as diferentes combinações e, partindo das suas conexões cruciais, procura as soluções para o que antes parecia irredutível à racionalidade do capital. Nestas condições, todas as classes aprendem com as crises. É como se os múltiplos aprendizados das classes anulassem uns aos outros e aos se anularem não causassem as transformações que, mecanicamente, se poderia julgar como redutível ao próprio devir da crise. Marx advertiu que as “ideias dominantes de cada época são as ideias da classe dominante” e, consequentemente, nesse jogo de soma nula, em que todas as classes aprendem com as crises, a tendência é que o modo de produção dominante não apenas seja mantido, mas, do mesmo modo, volte o mais brevemente à ofensiva contra o nível de vida do proletariado.

Para Marx, sem uma revolução social vitoriosa, algo que exige o amadurecimento político-organizativo do proletariado, a ordem do capital seguirá dominante.

As crises são um problema estrutural desse modo de produção, embora não signifique que delas derivem inelutavelmente a morte desse regime social. Os trabalhadores, contudo, devem aproveitar esses momentos para alcançar esse intento. Em instantes como esses, as condições são mais favoráveis ao proletariado em sua luta histórica contra a dominação do capital. As crises cíclicas podem despertar milhões de homens e mulheres explorados e brutalizados pelo domínio do capital, ainda que as crises econômicas não produzam forçosamente revoluções sociais. Pior do que isso: às vezes, tais crises têm o condão de colocar a classe trabalhadora em uma total defensiva. Não há leis absolutas sobre isso, mas apenas tendências.

Para Marx, as crises são oportunidades para que os proletários – aqueles que nada têm a perder – venham a repelir as suas próprias ilusões no sistema do capital, se organizem e lutem para derrotá-lo. Essa é uma ideia-chave de Marx e do marxismo.

É com bases nessas observações que devemos estar atentos para acompanhar o meticuloso movimento da história. Essa não deu ainda a sua última palavra. Ela se move arisca como uma raposa que evita com a sua astúcia produzir algum barulho entre os gravetos.

Estamos somente no início de um processo. É apenas o indicador de mudança. Talvez ainda não seja a mudança.

O contexto é de uma crise clássica de superprodução acentuada pelo colapso financeiro. E é nesse contexto que se volta a falar de Marx e do marxismo. Para Enrique Dussel (2011) estamos vivendo o segundo século de Marx. E nesse seu segundo século ele tem muito ainda a dizer.

Nos anos 1990, assentando-se na profecia de Fukuyama do “fim da história”, que tinha o sentido de assinalar o paradoxo da eternidade histórica do modo de produção especificamente capitalista, uma vez mais ganhou relevo o prognóstico da “morte do marxismo”. Com efeito, parecia que a produção de Marx e dos seus seguidores estaria definitivamente enterrada ou, na melhor das hipóteses, refém de uma espécie de “cativeiro ideológico”. Na última década ainda do século XX, a glutonaria intelectual decidiu fartar a sua fome epistemológica em outras mesas; em geral, demolidoramente antimarxistas.

Discussões à parte, a crise do chamado neoliberalismo, em fins dos anos 1990 e começo do século XXI, levou a que essa avalanche tivesse de enfrentar alguns diques que vieram a fortalecer àqueles poucos que seguiram resistindo à força das águas a fluir à montante de uma conjuntura terminantemente reacionária. Metaforicamente, os mortos tornaram à vida: o marxismo saiu do calabouço eterno a que fora condenado. Ou, em termos mais concretos: cada vez mais, as pessoas voltaram a falar de Marx e do Marxismo.

Ao lado disso, tem crescido a produção de obras cuja abordagem é decididamente marxista. Editoras como Boitempo, Expressão Popular e Sundermann têm se pautado essencialmente pela publicação de trabalhos de Marx, Engels e de uma plêiade de autores cuja fonte primária é o marxismo. Há um esforço de republicação de livros clássicos de Lukács, Trotsky e Rosa Luxemburgo e um verdadeiro boom de autores marxistas contemporâneos, caso do filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek. No Brasil, em 2008, nada menos que o site globo.com se sentiu compungido a informar que, na Alemanha, as vendas de O capital, opus magnum de Karl Marx, foram triplicadas desde o início do novo ciclo de crise capitalista.

Tomando de empréstimo uma frase predileta de Bloch (2001), dir-se-ia que “somos os vencidos provisórios de um injusto destino”.

A crise econômica mundial – e a guerra social dela decorrente – trouxe, uma vez mais, à cena pública uma reflexão acerca da obra do maior opositor do regime social capitalista, mais exatamente: Karl Marx.

Em uma quadra histórica em que o capitalismo se vê envolto em uma crise que começada nos EUA tem hoje o seu epicentro na Europa, a necessidade de um pensamento crítico que se renova permanentemente parece-me um convite a que a intelectualidade, que procura entender o que se passa, se volte com atenção ao método e a teoria de Marx.

É particularmente significativo que a luta de classes tem sido o instrumento de aceleração de mudanças.

Nesse sentido, o importante a fixar é que a incompatibilidade dos novos tempos com o marxismo, conforme assinalou Novais (2005), é apenas algo suposto, e não alguma coisa historicamente necessária; quando não, mero fraseado. Efetivamente, o marxismo operou uma revolução que, partindo de meados do século XIX, ainda permanece não apenas viva, mas incandescendo a cada momento, atualizando-se no calor e na riqueza de uma realidade social decidida e incontinentemente histórica.

A crise capitalista, por si só, já exigiria revisitar o velho bruxo do proletariado a quem a inquisição do capital nunca deixou de ameaçá-lo com as chamas de uma fogueira letal. Aos legatários de Torquemada, não basta excomungá-lo; é preciso destruí-lo. A tristeza dos inquisidores é a de constatar a capacidade do mouro em ressuscitar a cada dia.

Por fim, não poderia me furtar de dizer que a figura de Marx vai além do intelectual inquieto e altivo. Marx era um militante revolucionário arrastado por uma obsessão: a de ajudar no processo de organização independente da classe trabalhadora. É isso o que se esconde por trás do seu encontro com a Liga dos Justos (1843). É isso que se revela na transformação da Liga dos Justos em Liga Comunista. É o que se desprende da formação da I Internacional (AIT), em 1864, que desempenhou papel fundamental na primeira experiência de um governo proletário: a Comuna de Paris (1871). No momento em que a América Latina procura uma direção; no momento em que mobilizações de massas comovem e sacodem o velho continente; no átimo em que a Primavera dos Povos ressurge na região do Levante, nada como entender que se os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, diferentemente cabe transformá-lo. Para que esse desiderato não se constituísse em uma abstração oca, Marx não se contentou com pouco. Fez da militância política e do anelo da organização independente dos trabalhadores aspectos insuperáveis e inseparáveis de uma biografia irredutivelmente fulgurante, luminosa e tão atual como é atual a crise sempre renovada do regime social capitalista. As resoluções da AIT, em geral, nascidas da sua pena, carecem de ser revisitadas.

A crise exige um enfrentamento político e estratégico.

Ela não é igual em todos os continentes, em todos os países e mesmo dentro de cada país e cada região. O fato, no entanto, é que estamos diante de uma crise longa, que sempre nos dá a impressão de está apenas no seu começo. Esse é o terreno em que se está pisando. Diferentemente das últimas (1997, 2001 etc.), essa é uma crise que tem o seu epicentro nas economias imperialistas.

Como decorrência da sua amplitude e extensão, o certo é que “a capacidade de compra do mundo afundou”, tal como na crise histórica de oito décadas passadas. Isso elucida a queda das exportações brasileiras. O Brasil, como não se encontra fora das “conexões e contradições da economia mundial”, também adentrou no torvelinho (TROTSKY: 2008). Tem conseguido estabelecer mediações, partindo sobremaneira do mercado interno. Resistirá? Independente da resposta dada, é hora de voltar a Marx, é a hora do marxismo, é a hora da velha toupeira. Voltar a Marx no marco das três dimensões de que nos falava Engels: econômica, política e teórica.

Mas, voltar a Marx, e, por extensão, ao marxismo, tal escreve Bianchi (2011), não pode ser copiar e colar; mais do que nunca, o nosso marxismo, para ser crítico, deve ser “criação heróica”.

Concluo destacando uma derradeira lembrança. Há 40 anos, morria Pablo Picasso, o revolucionário dos traços e das cores, inclusive da cor vermelha. Recentemente, Zizek provocou os ativistas do movimento “Ocuppy Wall Street”, dizendo-lhes da falta que fazia a tinta vermelha. De fato, faz falta a tinta vermelha. Creio que é preciso, mais do que nunca, pintar a nossa estratégia com essa tinta. Foi por ela que Marx fez a sua opção preferencial pela revolução proletária. O resto… Precisamos escrever. O primeiro esboço dessa escrita já se desenha pelas ruas antigas da Europa, nas barricadas que se erguem no norte da África e Oriente Médio, pelas mãos calosas dos operários da Usina de Belo Monte. Marx certamente diria: “Cava, toupeira! Cava, toupeira!” Há, no entanto, de se admitir: ainda há muito a se cavado!

Considerações finais ou do que me faz lembrar Terry Eagleton

Para quem imagina que o marxismo era relevante em um mundo de fábricas, de escassez de comida e de limpadores de chaminés do século XIX, como brilhantemente provoca Terry Eagleton, carece de conhecer a situação em que vivem os operários na usina de Belo Monte; como trabalha o proletariado precarizado nas obras sem fim de Suape; como vivem pedreiros e serventes que sobem e descem nas construções de Fortaleza; qual o destino de mulheres e homens trabalhadores nas fábricas de confecção espalhadas pelo Nordeste do Brasil. Aí entenderá que o marxismo “não é o credo dos teimosos e iludidos”, mas a única arma de que dispõe aqueles que, efetivamente, lutam por um mundo melhor.

Lá atrás está dito que as classes dominantes já não podem esconder de maneira absoluta as erosões que, volta e meia, dilaceram a economia capitalista, mas não se pode subestimar a propaganda, o engodo e a força ideológica da burguesia.

Não se deve esquecer que Marx “considerava a sociedade capitalista impregnada de fantasia e fetichismo, mito e idolatria” (EAGLETON, 2012:11). Aqui quero retomar a relevância de Marx para os temas da crise e do capitalismo. Eagleton (2012) lembra que “o marxismo é uma crítica do capitalismo – a crítica mais investigativa, rigorosa e abrangente já feita” (p. 5). Aos que insistem na ideia de que o capitalismo, desde Marx, se transformou radicalmente, o próprio Eagleton lembra que “Marx tinha total consciência da natureza mutante do sistema que desafiou” (p. 5). Nessa direção, indagava: “por que, então, o fato de o capitalismo ter mudado sua forma nas últimas décadas deveria desqualificar uma teoria que encara a mudança como a própria essência desse sistema?” (idem). Com isso, ele não pretendia fazer uma leitura do marxismo como se estivesse a fazer a leitura da escritura sagrada. Anversamente, Marx definia o seu método como “o princípio de investigação orientador” e não como “padrão pronto pelo qual alguém molda os fatos da história como lhe convém” (apud Eagleton, p. 45).

Estando isso esclarecido, para o intelectual britânico o que é fundamental é superar a “sensação arrepiante de impotência política” que hoje domina franjas inteiras da intelectualidade. É preciso que a intelectualidade se junte aos operários no que Marx chamou de “movimento real que abole o presente estado de coisas”. Eagleton diz que “o marxismo é uma teoria e uma prática da mudança histórica de longo prazo”, mas, penso que deveria completar: a luta por essa mudança não está colocada para amanhã ou depois. Ela começa hoje, ainda que o “presente mais (pareça) um obstáculo para tal mudança do que uma ocasião para empreendê-la”. Paradoxalmente, para romper com o presente, é preciso começar dele. Em contrário, o capitalismo seguirá atuando – como Marx bem o definiu – como “um deus horripilante que bebe néctar dos crânios dos assassinados”.

Sob essa perspectiva, Trotsky afirmou que “a revolução não é tão dócil, nem tão domesticada para ser levada em uma coleira” (2008:55), mas estabeleceu que “Enquanto o capitalismo não for derrubado pela revolução proletária, ele continuará a viver por ciclos, subindo e descendo” (2008: 36). Tais questões colocam – em vermelho vivo – a necessidade de se levar em conta a importância da luta política, da organização política, das táticas políticas, justamente porque os processos revolucionários não são dóceis, mas carecem de ser considerados “com engenho e arte”.

Dizia-se que a época das revoluções, que Marx e Engels, em seu tempo, e Lênin e Trotsky, também em seu tempo, viveram, não como “figurantes mudos”, mas como protagonistas, estava morte e sepultada. Quem não se lembra das insurreições populares na Bolívia contra a privatização da água e do gás, no começo dos anos 2000, e quem não tem acompanhado a chamada “Primavera Árabe” com os seus piquetes armados, organização comunal e barricadas? Como fechar aos olhos às mobilizações multitudinárias – promovidas por jovens, funcionários públicos, operários e desempregados – que cortam o continente europeu de uma ponta a outra? Haverá oscilações nessas lutas, mas é dever dos marxistas não se posicionar ao largo delas, separados delas, dando de ombros aos seus irrefutáveis limites e contradições. Eis um desafio para os marxistas do tempo presente.

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Notas:

Sobre a lembrança de Rosdosky, inspiro-me no excelente artigo de João Antônio de Paula (2010) “Roman Rosdosky: um intelectual em tempos extremos”.