Romulo Mattos
A reação popular à morte de Margaret Thatcher foi reveladora. Grupos de ingleses saíram às ruas para comemorar o desaparecimento da mulher que implantou um dos governos neoliberais mais ortodoxos de que se tem notícia, tendo observado com atenção a experiência pioneira desenvolvida por seu companheiro político Pinochet, nos anos 1970. Maggie – apelido recorrentemente citado nos cantos dos trabalhadores – contraiu as emissões bancárias, elevou as taxas de juro, baixou drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliu o controle sobre os fluxos financeiros, criou níveis de desemprego massivos, aplastou greves, impôs uma nova legislação antissindical e cortou gastos sociais. Se não bastasse, promoveu um amplo programa de privatização, que atingiu a habitação pública e as indústrias básicas. No entender de Perry Anderson, “o pacote de medidas mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado”.[1]
A direita ideológica, “comprometida com uma forma extrema de egoísmo comercial e laissez-faire”[2], teve em Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, os seus principais sacerdotes, que chegaram ao poder por volta de 1980. Essa direita via o Estado de bem estar social iniciado na década de 1950 (e sem sucesso econômico desde 1973) como uma subvariedade do socialismo. Assim, aqueles dois políticos foram peças-chave no processo mais amplo, que chega aos dias de hoje com apetite renovado, de tentativa de “destruição de uma civilização”[3] associada ao serviço público, à igualdade republicana dos direitos, ao direito à educação, à saúde, à cultura, à pesquisa, à arte e, é claro, ao trabalho.
Um grande feito de Thatcher foi quebrar a espinha dorsal do sindicalismo inglês, ao derrotar o sindicato dos mineiros, que fora fundamental na conquista da legislação trabalhista no século XIX. A então primeira-ministra desencadeou uma violenta repressão à greve dos mineiros (de 5 de março de 1984 a 3 de março de 1985), tendo contado com a ajuda do serviço secreto britânico (que se utilizou da contrainformação) e de Reagan – que enviou quantidades extras de carvão e petróleo, enquanto o governo importava o primeiro minério da Polônia. Maggie entendia que o sindicato dos mineiros, por um lado, tentava implantar um regime marxista[4]; por outro, acabava por favorecer a inflação e a diminuição da competitividade da industrial. A derrota dos mineiros foi decisiva para o refluxo do sindicalismo inglês. Ainda em 1985, Thatcher conseguiu aprovar a legislação antissindicatos . Ao comentar a morte da ex-premier, David Hopper, dirigente do Sindicato Nacional dos Mineiros, mostrou compreender o sentido histórico dessa luta empreendida pela “Dama de Ferro”, ao dizer que “Ela se esforçou para nos destruir”. De fato, os sindicatos eram vistos como um empecilho ao projeto thatcheriano de privatizações e redução do Estado (social).
Esse breve resumo do governo antipopular de Thatcher nos ajuda a entender o entusiasmo de parte da sociedade inglesa com a sua morte. Em Brixton, Sul de Londres, além de quebrarem lojas e carregarem cartazes com caricaturas e mensagens como “Alegrai-vos”, os manifestantes trocaram os letreiros de um cinema, para anunciar de forma jocosa a morte da ex-Primeira-Ministra: “Margaret Thatcher’s Dead – LOL” (“Margaret Thatcher Está Morta – Rindo Muito Alto”). Não obstante, uma faixa com a inscrição “The Bitch is Dead” (“A Cadela está Morta”) foi pendurada na entrada do cinema, reproduzindo um lema que tem aparecido em várias partes do país – assim como a pichação “Apodreça no inferno”. Em Liverpool, fogos de artifícios foram lançados por grupos festivos, enquanto em Bristol, seis oficiais ficaram feridos. As comemorações também foram intensas em Derry e Belfast, na Irlanda do Norte. Novos festejos são esperados no funeral de Thatcher, na próxima quarta-feira. Em resumo, 30 anos de aversão à Baronesa explodiram em celebrações populares.
Canções contra Thatcher ressurgiram com força na Inglaterra. “Ding Dong! The Witch is Dead” (“A Bruxa está Morta”), gravada originalmente por Judy Garland para o filme O Mágico de Oz (1939), chegou aos primeiros lugares das paradas de sucesso, para o constrangimento dos diretores da BBC, que vêm sofrendo pressão (pelas autoridades e por parte do público) para não tocar a música na íntegra. Artistas que haviam criticado Thatcher nos anos 1980 reafirmaram o seu ponto de vista. Esse foi o caso de Morrissey, ex-The Smiths, que gravara em 1988 a composição “Margaret on the Guillotine” (“Margaret na Guilhotina”), por meio da qual faz a seguinte pergunta: “When will you die?” (“Quando você vai morrer?”). Em comunicado público, no dia 9 de abril de 2013, o cantor afirmou que “Thatcher era um horror sem um átomo da humanidade”.
Morrissey – Margaret on the Guillotine
Nos estádios também foram realizados protestos, como no clássico entre Manchester United e Manchester City, realizado no dia da morte da ex-primeira-ministra. Antes do jogo, os mandatários do futebol inglês anunciaram que não haveria um minuto de silêncio para Thatcher. O interessante é que ela está ligada às reformas operadas no futebol do país. A tragédia ocorrida no Estádio de Hillsborough, em abril de 1989 – quando 96 pessoas morreram em uma partida entre o Liverpool e o Nothingan Forest –, foi instrumentalizada para a elitização do esporte. Enquanto os torcedores do Liverpool foram responsabilizados pelo massacre, uma manipulação grosseira escondia as verdadeiras causas: as condições precárias do estádio e a clara negligência da polícia. Além de ter assinado as medidas que afastaram os trabalhadores das arenas esportivas, a primeira-ministra estourou as firms (agrupamentos de hooligans), com a mesma truculência com que tratava os sindicatos.
A partir de então, a torcida do Liverpool passou a cantar: “Quando Maggie morrer, vamos todos festejar! Vamos todos festejar quando Maggie morrer pela justiça dos 96!”. No empate entre Liverpool e Reading, em 13 de abril de 2013, o primeiro jogo dos reds após a morte de Thatcher, os seus torcedores levaram faixas que se referiam à grande tragédia do esporte na Inglaterra: “Justiça para os 96 Nunca Esquecidos”. Jogadores de futebol, inclusive, manifestaram-se contra o legado da “Dama de Ferro”. Joey Barton, meia britânico que atua no Olympique de Marselha, utilizou a sua conta no Twitter para sentenciar: “A história vai olhar para ela com distanciamento. O que ela fez com a classe trabalhadora vai viver bastante depois que for jogada para baixo da terra”. Até o correspondente esportivo da BBC no Brasil, Tim Vickery, reforçou as críticas em na televisão brasileira, sem esquecer o famoso humor inglês: “Estou de luto pelo dia em que ela nasceu”.
torcida do Liverpool canta contra Tatcher
A proibição de homenagens oficiais à memória de Thatcher pelos dirigentes esportivos ingleses traz uma questão interessante. Se a classe trabalhadora está significativamente afastada dos estádios da Inglaterra, como explicar esse receio quanto à possibilidade de reações negativas por parte dos torcedores? Pesquisas mostram que a política thatcheriana provocou insegurança e sensação de abatimento primeiro entre os trabalhadores braçais, mas também na pequena burguesia. De fato, a faxina neoliberal atua de forma múltipla: se por um lado, a precarização e a flexibilização acarretam a perda de insignificantes vantagens que podiam compensar os salários baixos (emprego duradouro, garantias de saúde e aposentadoria), por outro, a privatização leva à perda de conquistas coletivas.[5]
Concluindo, a repercussão da morte de Thatcher está relacionada com o tamanho de seu legado. O desmonte do Estado social é um tema especialmente relevante nos dias de hoje. Toda essa festa nas ruas e nos estádios ingleses para comemorar o desaparecimento da ex-primeira-ministra – comparável à de grupos que sofreram com a presença de ditadores sanguinários no poder – mostra que o tempo passou e a classe trabalhadora não esqueceu a barbárie neoliberal promovida por Maggie. Mas vale lembrar que Thatcher morreu em um momento notadamente inoportuno para a sua memória: em plena ditadura da Troika, que tenta apagar todos vestígios do Estado social, tidos como obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados. Aquilo contra o que a classe trabalhadora atualmente se levanta – a Troika – é o ápice da aplicação de uma fórmula consagrada por Thatcher. Portanto, mais do que nunca para os trabalhadores, “A bruxa está morta”.
[1] ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo”. In SADER, Emir, GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9.
[2] HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX : 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 245.
[3] BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 37.
[4] Ver a autobiografia: THATCHER, Margaret. The Downing Street Years. London: Harper Collins Publishers, 1993.
[5] BOURDIEU, Pierre. op. cit. pp. 51-2.
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