Suely Corvacho
A José Maria de Almeida, torturado em 1977.
Em sua vida republicana, o Brasil enfrentou sucessivos momentos ditatoriais, em que a voz da imprensa e de boa parte da população foi calada. Nesses períodos, vários escritores não se intimidaram e revelaram os bastidores do regime, por intermédio de suas obras, como Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma; Graciliano Ramos em Memórias do cárcere, Jorge Amado em Subterrâneos da liberdade, entre outros.
Contudo, quando a situação se tornava mais tensa e o livre curso da pena era vigiado mais de perto pela polícia política, alguns escritores recorriam a estratégias para revelar os horrores de seu tempo. Uma delas, bastante usual, era retomar cenas passadas para tratar do momento presente, quer episódios históricos, como Cecília Meirelles em Romanceiro da Inconfidência, quer episódios pessoais, como Graciliano Ramos em alguns contos de Infância. Diante desses textos, o leitor apreende, por detrás do episódio passado, a clara transfiguração do presente.
A análise do conto “O cinturão” permite perceber que, além de um texto memorialista, é possível ler uma mensagem cifrada do momento histórico vivido pelo autor. Trata-se de uma arquitetura microscópica em cujo interior estão contidas as arbitrariedades presentes da situação macroscópica – o contexto sociopolítico da ditadura de Vargas. Essa leitura não esgota as possibilidades do conto, que já foi interpretado como expressão do tratamento das crianças no início do século XX, como os maus tratos podem afetar o futuro de uma pessoa, entre outras.
Publicado em 1945, Infância traz, em “O cinturão”, um protagonista que relata suas “primeiras relações com a justiça”. A criança, com quatro ou cinco anos, é acusada pelo pai do sumiço de um cinturão. Dominada pelo medo, esconde-se atrás de uns caixões, porém o pai a persegue, questionando insistentemente onde está o objeto. Sem resposta, o genitor furioso passa a espancar o filho brutalmente, sem que ninguém intervenha. Como resultado das pancadas, o menino começa a adormecer, porém, momentos antes, vê o pai encontrar o cinturão na rede onde tirara a sesta. Espera então que o adulto reconheça o engano e se desculpe pela injustiça cometida; no entanto, o pai contraria a expectativa e permanece mudo, “longe, rondando, inquieto”. A experiência reforça o sentimento de insignificância do protagonista, que, conclui: “Foi esse o primeiro contacto que tive com a justiça”.
A síntese, no entanto, estaria incompleta se não chamássemos atenção para o segundo parágrafo do conto, em que, a título de ilustração, o protagonista narra uma situação análoga. Sua mãe surrara-o com “uma corda nodosa” que lhe deixara tantas marcas no corpo que fora necessário enrolarem-no em panos molhados com água e sal para aliviar as dores. O caso provocara reações da família, especialmente da avó, que condenara o procedimento da filha. Diante da pressão, a mãe arrependera-se e o menino não lhe guardara ressentimento, pois concluía que afinal “o culpado era o nó”. (RAMOS, 1977, p. 31).
Acreditamos que a arquitetura do conto, composto por duas histórias análogas – as duas surras infringidas pelos pais – para refletir sobre a justiça exige que o leitor a examine minuciosamente. Os elementos apresentados na primeira narrativa repetem-se na segunda, de forma especular. A primeira história é protagonizada pela mãe; a segunda, pelo pai. Omite-se o motivo da surra dada pela mãe; enquanto o do pai é amplamente explorado – o cinturão. O “discurso indireto livre”[1] é adotado para a mãe justificar sua ação; para o pai, para pressionar o filho: “Onde estava o cinturão?”; a mãe ataca o filho com tamanha violência que a família fica indignada; enquanto não fica claro se o ataque do pai é violento ou se o pânico da criança assim o considera: “Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois…” “Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram menos um sinal de dor que a explosão de medo reprimido” (RAMOS, 1977, p.34).
Diante de oposições tão minuciosamente construídas, uma questão salta de pronto: por que, entre duas experiências cujas estruturas são análogas, o protagonista escolhe a do pai para ilustrar suas primeiras relações com a justiça e não a da mãe? A questão ganha força se examinarmos que a narrativa da mãe apresenta mais elementos para associar à justiça do que a do pai. A avó, por exemplo, assume as dores da criança e recrimina a filha, que, por sua vez, reconhece ser sua irritação a responsável por sua violência. Comparada à narrativa maior, vemos que a avó parece encarnar o conceito ideal de justiça. Entre a filha e o neto, não titubeia e vai ao encontro do injustiçado, ainda que sua experiência como mãe favorecesse a empatia com a filha. Sua atitude restabelece a “verdade” (a irritação da mulher causara o desastre e não a atitude da criança) e favorece, ainda, a expressão da generosidade infantil: “o culpado era o nó”.
A escolha que, à luz da representação da justiça, parece incoerente, esclarece–se se a examinarmos como expressão do presente do narrador, ou seja, da ditadura de Vargas. Para tanto, deve-se sublinhar a relação dos dois tempos existentes na narrativa. O primeiro refere-se ao presente do protagonista, em que, já adulto, recorda o primeiro contato com a justiça; outro é o tempo passado, o infantil. Convém notar que a voz do adulto abre e fecha o conto: “As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão” e “Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça”. As duas frases usam o termo “primeiro (as)”, classificação que só pode ser realizada a posteriori, indicam que o narrador é o adulto. Convém perceber também que as duas orações formam uma moldura argumentativa cujo objetivo é expor a arbitrariedade da justiça, portanto nesse quadro, o que parece central – a história do cinturão – é na verdade ilustração de uma ideia.
O conto explicita outro aspecto fundamental na análise das lembranças, ou seja, o seu caráter afetivo. As marcas que ficam na memória da criança são as da frustração e não do castigo físico propriamente dito. Há indícios de que a surra imposta pela mãe foi até pior do que a do pai, uma vez que a criança precisou ser embrulhada em panos molhados com água e sal, no entanto bastou que a mãe esboçasse “arrependimento” para que a relação amorosa se reconstituísse e o culpado fosse deslocado para os nós. Com relação ao pai, o destino não seria diferente, já que o menino aguardou ansiosamente a manifestação do genitor: “Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu” (RAMOS, 1977, p. 35). Contudo a inflexibilidade do pai frustra a expectativa da criança, cala fundo na experiência infantil, e, mais tarde, é interpretada como exemplo de justiça.
Esses e outros elementos vão deixando clara o funcionamento da memória, pois mostra que o emissor evoca suas lembranças com vistas a explicar seu presente, escolhe uma ou outra cena, bem como interpreta uma ou outra passagem segundo sua necessidade atual. Ele descarta a história da surra materna, porque está mais próxima da representação da justiça no Estado de direito, e privilegia a do pai, que permite a representação da ditadura: condena antes mesmo de verificar se houve delito, pune sem provas e é incapaz de reconhecer o erro cometido.
Sem dúvida, o episódio escolhido oferece mais elementos para estabelecer o paralelo com a ditadura de Vargas (1937-1945). Em primeiro lugar, no conto não há motivo real para a surra, o cinturão não saiu da rede, o que o pai procurou, na verdade, foi um motivo para extravasar seu mau humor. O golpe de 1937 de forma análoga alegava o fantasma de um novo golpe, como fora a “Intentona Comunista” de novembro de 1935, mas os estudos provam que seu objetivo estava longe de temer os comunistas, sua intenção era impedir as eleições diretas para presidente, para que Vargas permanecesse no poder. Logo, a justificativa do pai e do Estado ocultava a real motivação.
Além disso, o menino percebe que o escolhe para descarregar sua raiva aleatoriamente, daí deseja ardentemente que alguém entre em cena para desviar a atenção, chama mentalmente a mãe, José Baía, Amaro, Sinha Leopoldina, o moleque e até os cachorros da fazenda. A passagem permite evocar o caráter aleatório das prisões ocorridas no período ditatorial, em que alguns foram acusados de comunistas, como Jorge Amado, que foi preso e teve seus livros queimados em praça pública; outros foram detidos segundo a Lei de Segurança Nacional, conforme Dênis de Moraes: “Valdemar Cavalcanti e Alberto Passos Guimarães – seriam processados com base na Lei de Segurança Nacional. E Rachel de Queiroz ficaria incomunicável, de outubro de 1936 a janeiro de 1937, num quartel do Corpo de Bombeiros do Ceará”. E permite também evocar aqueles que foram presos sem qualquer acusação, como Graciliano Ramos, que permaneceu detido por onze meses sem qualquer processo. Segundo o historiador Nélson Werneck Sodré:
“- Não foram os problemas locais que determinaram a prisão de Graciliano; foram questões de ordem ideológica. Na Instrução Pública, ele seguia à risca os seus princípios, era igual para todos, premiava os que mereciam, defendia os professores – era um homem de primeira ordem. Havia desgostosos, pessoas que foram feridas em seus interesses (…)”. (MORAES, 1993, p. 112)
Em suma, assim como Graciliano supõe que foi preso arbitrariamente porque não atendeu ao pedido de um capitão que solicitava o ingresso sem concurso público de sua sobrinha no quadro de professores de Maceió; de forma análoga o garoto do conto sofre a escolha arbitrária do pai e desconhece o verdadeiro motivo de tamanha violência.
Outro aspecto que choca e emociona o leitor é a forma como o pai interroga o filho com relação ao cinturão, a pergunta é repetida diversas vezes, sem que o menino tenha condições de se defender. Na verdade, o pressuposto estava dado, a criança não era suspeito, mas responsável pelo sumiço do objeto. Ainda que se evite associar biografia e ficção, a situação encontra analogia a cenas protagonizadas pelo próprio Graciliano Ramos no interior da cadeia. Um exemplo é sua apresentação a um general, conforme se lê em Memórias do cárcere:
“Finda a apresentação, o homem alto pregou-me um olho irritado:
– Comunista, hem?
Atrapalhei-me e respondi:
– Não.
– Não? Comunista confesso.
– De forma nenhuma. Não confessei nada.
Espiou-me um instante, carrancudo, manifestou-se:
– Eu queria que o governo me desse permissão para mandar fuzilá-lo.
– Oh! General! Murmurei. Pois não estou preso?
E calei-me prudente: o diabo da frase podia ser interpretada como um desafio, que eu não estava em condições de lançar. Felizmente o homem não ligou importância a ela, deu-me as costas, voltou-se para o meu companheiro e interrogou-o com dureza” (RAMOS, 1956, p. 88).
Convém esclarecer que, nesse período, Graciliano Ramos realmente não integra o Partido Comunista, ainda que fosse simpático às ideias socialistas. Por sua vez, o general não identificado em Memórias do cárcere é, na verdade, segundo Dênis de Moraes, Newton Cavalcanti, que “fora designado para a 7ª Região Militar, sediada em Recife, no bojo do remanejamento no alto escalão do Exército”. Ligado aos integralistas, anticomunista convicto, Cavalcanti foi responsável por inúmeras atitudes arbitrárias, dentre as quais a prisão de pessoas soltas por habeas-corpus concedidos por juízes de Natal e Maceió, sob a alegação de:“são elementos perniciosos à ordem pública e à estabilidade do regime” (MORAES, 1993, p. 112). Em suma, assim como o pai de “O cinturão”, o general ignorava qualquer preceito legal e partia do pressuposto de que todos eram culpados.
Por fim, os depoimentos de torturados frisam como o período de prisão deixa marcas indeléveis assim como, no conto, o castigo da criança a marcaram para o resto da vida:
“Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.” (RAMOS, 1977, p.33)
Portanto, acreditamos que a estratégia de o autor escolher o trabalho com a memória para denunciar os desmandos do presente permite que associemos não só à situação do Estado Novo, como também à representação de qualquer Estado em que os direitos são subtraídos. E provavelmente o desejo de Graciliano Ramos era o de, ao escolher a história pessoal para mimetizar os desmandos de sua história social presente, evitar que novas pessoas sofressem o processo de tortura ali transfigurado. Infelizmente, seu desejo não se realizou como pudemos vivenciar na ditadura de 1964 no Brasil, na de 1973 no Chile, na de 1976 na Argentina, só para citar algumas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Gilberto de. Uma análise bakhtiniana do discurso citado em Infância e São Bernardo de Graciliano Ramos. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
FREUD, Sigmund. “Lembranças da infância e lembranças encobridoras” In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. – Vol. VI.
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000.
MORAES, Dênis de. O velho Graça. 2ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
RAMOS, Graciliano. Infância. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1977.
________________. Memórias do cárcere. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. (1º volume)
[1] . Quando o narrador afirma: “Irritada, ferira-me à toa, sem querer”, a rigor não se pode falar em discurso indireto livre, uma vez que a narrativa se processa em primeira pessoa. Castro prefere denominá-lo de “discurso indireto elíptico” (CASTRO, 2001, p. 89-90); nós, no entanto, adotamos a denominação tradicional entre aspas, uma vez que o trecho não deixa dúvidas de que há sobreposição de vozes, em que a do menino assimila o tom da voz da mãe, interpretação que fortalece a tese aqui defendida.
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