Fábio José Cavalcanti de Queiroz
Para Marx (1997), quando Luís Bonaparte despojou “do seu halo toda a máquina do Estado”, profanando-a e tornando-a, “ao mesmo tempo desprezível e ridícula”, em larga medida, esse personagem obscuro da história estava levando a termo um projeto contrarrevolucionário da burguesia francesa, ainda que quisesse aparecer “como benfeitor patriarcal de todas as classes”. Mas o ponto culminante do que o revolucionário alemão nomeou como idées napoléoniennes não era outra coisa senão “a preponderância do exército”.
Em 1964, a burguesia (no Brasil) reafirmou a sua ordem social e econômica sob o signo da “preponderância do exército”. Esse foi o ponto culminante da sua ação conspirativa que preparou as condições para derrubada contrarrevolucionária do governo de João Goulart e o ambiente para que as demais instituições do Estado se subordinassem à supremacia de uma delas: as FFAA.
Noutros termos, a classe dominante brasileira colocou nas mãos do seu braço armado a tarefa de salvaguardar a sua própria ordem. Nestas condições, a máquina burocrático-militar ascendeu a uma função proeminente na dinâmica institucional. Essa perspectiva mudou de modo brusco o caráter do regime político que assumiu uma fisionomia dolorosamente bonapartista.
Sob determinados aspectos, o golpe de Estado, no Brasil, antecipou um catálogo de ações com esse caráter em quase toda América Latina. De certa forma, as acerbas controvérsias políticas que, em termos gerais, atravessavam o coração do continente, foram resolvidas, não por uma saída contemporizadora ou algo do gênero, mas por meio de um colossal golpe de esgrima.
Os fatos demonstraram que é quase fora de dúvida que, em circunstâncias de agravamento acentuado das turbulências entre as classes e frações de classe, os estratos mais influentes e possantes da classe social e economicamente dominante não se esquivam de acelerar as condições que incutam uma saída política de tipo autocrático e/ou militarista.
Praticamente começando pelo Brasil, os golpes de força dos anos 1960 foram se espalhando pelo território latino-americano como se o dominó de número maior se lançasse sobre os de numeração menor e terminasse por derrubá-los a quase todos, um a um, desconsiderando as pretensões moribundas de democracias transformadas em fantasmas sem túmulos.
Passados mais de cinquenta anos, em alguns casos, as frágeis democracias latino-americanas se assemelham quase que a protagonistas sem rosto, como se olhassem para o espelho do passado e se assustassem com a visão excepcionalmente traumática com que se depararam.
A “nossa” besta de Balazote, tal como no imaginário espanhol, tem corpo de touro e cabeça humana. Mas a ditadura empresarial-militar tinha não só a aparência de Balazote, o seu aspecto assustador, mas a sua força, além de uma sede de carnificina e de um desejo ardente de catástrofe. O “nosso” Minotauro uniu o pior da força do touro com o pior da “imaginação do ser humano”. Quando se olham no espelho, as frágeis democracias latino-americanas, e a brasileira, em particular, parecem enxergar num fundo recôndito a figura assombrosa da besta de Balazote.[1]
Mas não há como se libertar de uma imagem tenebrosa que a tudo persegue sem que se acertem as contas com o que a determinou; sem que as bases que a geraram e as suas resultantes mais bárbaras possam ser confrontadas e superadas historicamente. Ao se aceder as luzes, os fantasmas desaparecem e só restam cadeiras, cortinas e lençóis; ao se acertar as contas com o passado, o seu espectro tende a sumir na longa noite de um tempo devidamente enfrentado e cruciantemente vencido. De modo inapelável, isso compreende a punição rigorosa aos que conduziram e aplicaram a repressão mais brutal nos anos de chumbo, particularmente militares e empresários.
Não há outro remédio para confrontar uma ditadura semifascista como a que se implantou no Brasil. Diga-se, de passagem, que esse caráter semifascista que a marcou serviu igualmente de âncora para os regimes ditatoriais que manchariam países como Uruguai, Chile e Argentina, no decênio seguinte. Sobre esse traço do regime político no Brasil, decorrente do golpe de força de 1964, tem razão Nahuel Moreno, ao compará-lo ao seu coetâneo argentino, não o de 1976, mas precisamente o que aconteceria dois anos depois da tragédia brasileira.[2] Acerca dessa analogia, assim ele se pronuncia:
“Nosotros definimos al gobierno de la Revolución Argentina como un régimen bonapartista clássico, es decir, un gobierno basado em fuerzas armadas con un árbitro supremo, Onganía, entre los distintos sectores de la burguesia y el imperialismo. No llegó a tener características semifacistas, como en el Brasil, ya que no gobernó com el estado de sitio, ni poderes ni reglamentaciones especiales, ni con campos de concentración” (MORENO, 1997:121).[3]
Essa citação de Nahuel Moreno sugere um elenco razoável de questões: 1ª) um regime bonapartista pode se distinguir por características semifascistas ou não; 2ª) aconteceu na Argentina, tal como no Brasil, o fenômeno ideológico em que as categorias são invertidas e, nesse torvelinho histórico, a categoria de revolução é galgada pela burguesia que lhe confere outro significado. Apesar das inúmeras lendas contadas, de feito, a contrarrevolução esconde a sua imagem de Balazote por trás da ideia de uma revolução; 3ª) e ainda mais importante, em ambos os casos, o regime político, em última análise, se define pela supremacia das Forças Armadas.
Alusivamente às controvérsias entre os limites do fascismo e do bonapartismo, Trotsky consignou este último como “um regime de ditadura militar-policial”, em que os generais avançam “para o primeiro lugar”, enunciando o seu “punho policial”. Sem volta, Hitler demonstrou que o nazifascimo é um regime em que se encarreira e se dissolve a burocracia, a justiça, a política e o exército no fascismo (TROTSKY, 1979: 284). Logo, os traços semifascistas do regime militar-empresarial brasileiro não o elide do seu aspecto essencial: o caráter bonapartista.
Com um resto de prudência histórica, é excessivamente preciso fazer voltar à memória que o regime político decorrente do golpe de 1º de abril era desprovido de componentes elementares do fascismo, dentre os quais “base de massa” e “estratégia mobilizadora”. As ações de rua que marcaram o advento do regime militar no Brasil estão ligadas ao cenário que o engendrou e não a sua existência e desenvolvimento. Implantada a ditadura, já nos meses seguintes, a desmobilização foi a sua marca inextinguível.
Aqui, tomando por referência o critério adotado por Marx, Trotsky e Moreno, o caráter bonapartista da institucionalidade derivada da contrarrevolução triunfante na América Latina se delibera e se elucida pelo predomínio das FFAA. Esse critério geral me parece suficientemente válido para demarcar o quadro político-institucional brasileiro no período de ascensão e afirmação das forças militares.
A robusta presença do clero (em particular da igreja católica, muito mais hegemônica à época do que se apresenta hoje) não rescinde ao impulso e a potência da caracterização acima. Até porque, nas palavras de Marx, um traço do bonapartismo (“Outra ídée napoléonienne”) é o do “domínio dos padres como instrumento de governo”. Disso decorre que “o padre aparece então como mero mastim ungido da polícia terrena” (MARX, 1997:133/134). No Brasil, no momento em que a igreja mudou a sua perspectiva em relação aos governos militares, estes últimos inclinaram-se a enfrentar dificuldades de asserção junto a certos estratos sociais.
Mas o elemento capital de toda a análise é reconhecer que coube a burguesia a tarefa basilar de congregar as mais distintas instituições em torno do seu projeto de salvaguardar a ordem do capital, não apelando a anjos aplacados, mas a missionários armados elevados à categoria de “autoridade executiva”.
Ao longo dos 21 anos de regime militar-empresarial, à dianteira do executivo estiveram não protagonistas sem rosto, mas de fronte e de nome bem marcados, começando com Castelo Branco e finalizando com o general Figueiredo. A missão de cada um deles, no essencial, nunca deixou de ser a de preservar a ordem social e econômica burguesa. Seguindo esse raciocínio, a categoria de regime militar-empresarial se revela um trunfo contra o silêncio demasiado prolongado que, no decurso de toda trajetória autoritária, tentou anular o discurso histórico que imputava a burguesia uma missão em nada desprezível em todo esse processo.
No outono hemisférico austral de 1964, a burguesia no Brasil não se fez de rogada em relação aos seus próprios interesses históricos e viveu (sem qualquer remorso cristão) o seu próprio Dezoito de Brumário. Cinquenta anos depois, esse fato se mostra incisivo e definitivo e, desta maneira, desempenha o papel de uma peça acusatória contra os que, agora, rabiscam em um quadro manchado uma espécie de desenho dialogal. Com efeito, há momentos em que essa classe julga ser necessário rasgar esse singelo desenho. Num primeiro de abril distraído e ligeiramente afastado, esse gesto jogou o país em um abismo e o submeteu a um autêntico ad arbitrium. Meio século depois, é disso que se trata. Os balanços em contrário parecem tomados por um único sentimento: o de nostalgia do arbítrio.
Referências bibliográficas
FUENTES, Carlos. O espelho enterrado, Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
MARX, Karl. O 18 brumário e cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MORENO, Nahuel. Después del Cordobazo, S/L: Editorial Antídoto, 1977.
TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução na Alemanha, São Paulo: Livraria das Ciências Humanas, 1979.
[1] Sobre a presença desse elemento na cultura taurófila da Espanha, veja Fuentes (2001).
[2] Depois de passar pelo golpe de Estado de 1955, que conduziu à deposição de Juan Perón, a Argentina experimentou um golpe militar, 11 anos depois (o putsch de 1966), que fez ascender ao poder o líder do levante contrarrevolucionário, o general Juan Carlos Onganía. Essa experiência, contudo, preparou outra incomparavelmente mais brutal: a de 1976. Aqui, não incluo a de 1962, uma vez que o levante militar conduziu ao poder não um general ou algo assim, mas Arturo Frondizi – um membro União Cívica Radical (UCV).
[3] Moreno contrasta com o episódio brasileiro, não o regime de junta militar (e seus elementos despudoradamente semifascistas) nascido do golpe de 1976, mas o que se expressou na figura de Juan Carlos Onganía, derivado do Coup d’État de 1966. Não que neste não houvesse violência e bruteza. Não é disso que se trata. Do que se trata é que nem todo regime político marcado pela violência e bruteza é necessariamente semifascista, fascista ou coisa do gênero. Em suma, no ano de 1976, a pátria argentina sofreria um novo revés, agora por meio de um golpe de Estado e de um novo regime bonapartista ainda mais dantescos, sobressaindo aí os traços semifascistas que Moreno não havia identificado nos acontecimentos de 10 anos para trás.
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