Entrevista concedida pelo historiador Renato Lemos à Viviane Tavares (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz), e publicada no site da EPSJV em março deste ano.
O que caracteriza um estado ditatorial?
Essa discussão é muito forte hoje no balanço que se faz da ditadura. Tem a ver com a caracterização do que vivemos hoje. Porém, mais importante do que caracterizar o Estado, é caracterizar o regime político. O Estado capitalista, como conjunto de instituições que consagram a ordem político-social, decorre de um regime político, que é a forma de dominação de uma parte da sociedade sobre outra parte da sociedade. Essa dominação se faz através de recursos conhecidos pela maioria da sociedade, através de eleições principalmente, mas, também, através das leis, estas respaldadas por uma parte expressiva da sociedade. Você tem um regime político democrático. A democracia é um regime político. É uma das formas possíveis que uma parte da sociedade dispõe para impor a sua dominação sobre o conjunto desta sociedade. Para efetivar essa dominação social e administrar as questões da sociedade, você tem instituições do Estado, desde as instituições dos poderes republicanos, quando o estado é republicano, até instituições que regulam a nossa vida no dia a dia, como o Banco Central, o serviço de previdência, são todas instituições do Estado capitalista e podem servir a mais de um regime político.
O Golpe de 1964 não aboliu o Congresso nem o Judiciário e, até 1967, quando se fez a primeira constituição do regime ditatorial, o que nos regia era a Constituição de 1946, então, nós temos instituições de tipo democrático servindo a uma ditadura. As instituições do Estado podem ser moldadas a regimes políticos diferentes. Regimes políticos novos também criam instituições novas, como é o caso do Banco Central, que não existia antes de 1964. A ditadura, a partir de 1964, ao mesmo tempo em que preservou instituições do Estado democrático, criou novas estruturas estatais para servir às perspectivas dos grupos que tomaram o poder.
A partir de 1964, a gente tem uma caracterização ditatorial. Por que ditatorial? Porque, embora mantidas certas regras formais da Constituição de 1946, o que prevalece como forma de dominação social é a violência emanada a partir do controle do Executivo. É o ato institucional nº 1, que não é imediato ao Golpe, é de 9 de abril de 1964, e consagra os poderes ditatoriais do Executivo, retirando dos outros poderes uma série de atributos e também criando novos instrumentos de dominação.
Existiam outros respaldos jurídicos que sustentaram esse modelo também?
A ditadura brasileira criou muitas leis. Temos os atos institucionais e complementares que não são leis, mas tem força jurídica. E temos, ainda, por conta do componente militar, as leis de segurança nacional. Essa é um diploma legal fundamental que não é invenção da ditadura, a primeira é 1935 e a segunda, de 1953, ambas em regime democrático. Esta última ficou em vigor até 1967, quando temos a criação da primeira Lei de Segurança Nacional da ditadura. Depois vem ainda outras, em 1969, 1978 e a de 1983, que está em vigor até hoje. Como o regime pós 1964 tinha como principal vertente político-ideológica a doutrina da segurança nacional, a existência destas leis é fator fundamental na forma de dominação político-social e abre uma pista para que se perceba a sua continuidade na atual democracia e suas ligações com questões que a gente lê hoje em dia na internet.
Quais são os resquícios evidentes e os outros tácitos?
Nós temos um conjunto de instrumento jurídicos de alto conteúdo político que sobrevivem. O primeiro, como falamos, é a Lei de Segurança Nacional, baixada durante o governo de João Figueiredo, em 1983, ainda no regime ditatorial. Ela sofreu modificações, mas o espírito fundamental, que é a ideia de inimigo interno, prevalece. Tanto prevalece que a gente o encontra em estratégias do Ministério da Defesa, como o documento que foi divulgado recentemente, de Garantia da Lei e Ordem, dirigido diretamente aos movimentos sociais, no qual a gente encontra essa continuidade. É uma questão central para travar a luta social no Brasil.
Em outros planos existem evidências não tão evidentes como a total submissão da concepção de sociedade à lógica do capital internacional, em especial, do financeiro. Existem certos itens da vida da sociedade brasileira que são considerados assuntos de Estado, que não se discutem, como, por exemplo, a questão do superávit primário, a garantia dos investimentos, que foi um dos fatores que depuseram João Goulart em 1964, o Estado poder ou não garantir investimentos de longo prazo no país.
Uma das entidades que mais tem força sobre a vida da gente, nós brasileiros e as populações em todos os países, são as agências de risco, que classificam os riscos de investimento em cada país. Esse risco é, em grande parte, resultante da estabilidade política. E quando ele é considerado alto, implica em retirada de investimentos, o que causa desequilíbrios econômico-financeiros importantes em cada sociedade. Isso é também uma lógica que se implantou no Brasil em 1964.
De que forma isso foi implantado?
Por meio da importância que tiveram os setores tecnocráticos. Até 1964 prevalecia a lógica assumidamente política. A gente tinha um Estado, chamado por muitos Estado populista, que funcionava muito em decorrência da legitimação popular através de eleições. E isso era visto como fator de insegurança, porque não se podiam garantir as regras, elas poderiam ser mudadas por necessidade eleitoral, por exemplo. A partir de 1964, o Estado passa a ter uma preocupação de garantir essas regras, principalmente, aquelas destinadas a garantir o capital estrangeiro. O capital de todos os níveis, o de longo prazo que precisa remeter lucro às suas matrizes no exterior, e os capitais especulativos, que são fundamentais para manter as contas financeiras nacionais.
A partir deste momento, esses se tornam itens de Estado, que se justificam como razão de Estado, que não deveriam ser tratados de maneira política. Há uma despolitização de uma série de instâncias de matérias de Estado, na tentativa, de apresentá-las como não políticas, como a financeira, monetária, salarial, que são evidentemente políticas, e que são tratadas de maneira técnica.
A que interesses isso se deu?
Antes de tudo, aos interesses dessas coalizões que estão à frente desses regimes em cada momento histórico. A questão é, e essa é principal linha de continuidade, a que interesses sociais o regime serve? Do meu ponto de vista, são fundamentalmente os mesmos os interesses que hoje determinam o rumo da nossa sociedade. Há pequenas variações de um regime e outro, mas os interesses básicos são os mesmos, são os interesses das várias frações do capital: bancário, industrial, comercial, que dominam a estrutura de poder da sociedade brasileira e, com pequenas concessões aqui e ali, vão sendo impostos como se fossem interesses do conjunto da sociedade. O principal tema que deveria ser examinado, porque revela as vísceras do regime e também a sua continuidade, é a presença dos grandes grupos econômicos como elemento central dos regimes políticos. Tanto na ditadura, que foi um governo da burguesia de forma indireta, através da militarização, como no que temos agora.
Nesses momentos, temos grandes influências de grupos estrangeiros, mas um nacionalismo muito grande. Existe uma comparação em relação a 1964 e agora?
Isso é uma manobra ideológica para tentar consolidar as bases de apoio nesse regime político. São duas fases, principalmente, no governo Médici quanto aos governos do PT – e nunca esquecendo que o Lula sempre gostou da capacidade de racionalização dos governos militares – em que a presença do capital estrangeiro é fundamental para economia brasileira: o período Médici foi o período do “Milagre brasileiro”, quando as grandes empresas, as multi ou transnacionais, lideraram o dinamismo econômico, como a indústria automobilística. Como hoje. Enquanto o governo da Dilma proclama um ufanismo tupiniquim, ela concede todas as isenções para o mercado automobilístico lucrar. E quem é o mercado? As mesmas transnacionais do período do Médici. De um lado, o Estado brasileiro tem suas finanças totalmente dependentes dos impostos gerados pelo setor automobilístico; de outro, o efeito multiplicador dos setores da economia é decisivo para manter a economia funcionando. Ao mesmo tempo em que se fazem essas proclamações superficiais, rasteiras, de nacionalismo, naquilo que interessa de fato, a economia é totalmente internacionalizada e dependente dos mecanismos internacionais. A economia brasileira não tem autonomia nacional.
E como foi o papel da imprensa nesta época?
A imprensa tem pelo menos duas dimensões importantes. A primeira, como aparelho ideológico, e outra como grupo econômico. O Globo, Jornal do Brasil e Diários Associados, principalmente. Com exceção do jornal Última Hora, que apoiava o Jango, todos os jornais queriam o golpe, não necessariamente a ditadura.
O governo do João Goulart poderia abrir uma porta para a revolução social, o período de 1961 a 1964 foi de ascensão dos movimentos de massa no Brasil e um período de gravíssimas dissidências do aparato militar. Os setores mais conservadores tinham muito medo, até porque a sombra da Revolução Cubana estava sobre a América Latina, portanto, os jornais cumpriram seu papel de classe, que era veicular e, em parte, organizar as ações políticas contra o inimigo de classe, que, naquele momento, era o Jango e os grupos que o apoiavam. Para isso eles criaram a Rede da Democracia, uma organização que se articulou com o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais [IPES] para lutar contra o governo do João Goulart.
Durante a ditadura, o papel da imprensa permaneceu o mesmo: veicular o ponto de vista do regime, embora possa ter um atrito ou outro, mas os órgãos da imprensa cumpriram seu papel fundamental, que era veicular a visão classista dominante.
Mas há, também, uma expressão como grupo econômico fundamental. O que conhecemos hoje como Organizações Globo se construiu durante a ditadura, fazendo parcerias com grandes grupos internacionais, como o Time Life, que permitiu que ela fosse catapultada ao papel que a Globo tem hoje. A Globo deveria ser um dos alvos de investigação sociológica e histórica como um caso emblemático dos grupos que apoiam e se beneficiam do regime que constroem.
Ainda tem a participação operacional no golpe, que nem acho tão importante, mas sobre a qual se tem se descoberto muitas coisas hoje. O caso mais conhecido foi o da Folha de São Paulo, que ofereceu carros para operações repressivas, mas ainda está sendo pesquisado.
Tudo que há de comum entre a ditadura e a democracia de hoje é mais que um resquício, é uma linha de continuidade, é uma identidade que traduz o conteúdo social dos regimes políticos. O conteúdo de dominação de classe que vivemos hoje é o mesmo conteúdo básico do regime ditatorial. Agora, o inimigo de classe é o mesmo, a necessidade de manter a ordem é a mesma – não é por acaso que a repressão aos movimentos sociais vem aumentando no momento em que o Brasil tem recebido grandes investimentos ligados aos megaeventos.
Em outro aspecto, é a percepção militar no trato da questão social, que é associada na identificação de quem é o inimigo. Hoje, é secundariamente o comunismo, que não desapareceu, e os movimentos sociais são, em termos imediatos, um problema para os investimentos, e, em termos não imediatos, uma porta aberta para o ressurgimento da ameaça comunista. É assim que a ideologia do Estado brasileiro continua tratando, vendo e equacionando as questões sociais.
Dessa perspectiva, a imprensa veicula essa visão e tem uma função importante no ponto de vista de trabalhar setores da sociedade para internalizar essa visão. Os setores que são basicamente a sua audiência, as camadas médias, que tem dinheiro pra comprar jornal e ter televisão. Esses setores têm que ser trabalhados sempre, porque eles dão consistência ao regime político. Então, a imprensa tem a função não só de disseminar, mas atuar diariamente nos medos, nas incompreensões, nos vacilos, oferecendo aos leitores uma visão capitalista contrarrevolucionária.
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