Pular para o conteúdo
TEORIA

Junho 2013, um ano depois: os três campos em que se dividiu a esquerda

Valerio Arcary

“A desordem que produz um atentado terrorista nas fileiras da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? Se um pouco de pólvora e um pedaço de chumbo bastam para perfurar a cabeça de um inimigo, que necessidade há de organizar a classe? Se tem sentido aterrorizar os altos funcionários com o ruído das explosões, que necessidade há de um partido? Para que fazer passeatas, agitação de massas, eleições, se é tão fácil alvejar um ministro desde a galeria do parlamento? Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão. Os profetas anarquistas da “propaganda pelos fatos” podem falar até pelos cotovelos sobre a influência estimulante que exercem os atos terroristas sobre as massas. As considerações teóricas e a experiência política demonstram o contrário. Quanto mais “efetivos” forem os atos terroristas, quanto maior for seu impacto, quanto mais se concentra a atenção das massas sobre eles, mais se reduz o interesse das massas por eles , mais se reduz o interesse das massas em organizar-se e educar-se. Porém a fumaça da explosão se dissipa, o pânico desaparece, um sucessor ocupa o lugar do ministro assassinado, a vida volta à sua velha rotina, a roda da exploração capitalista gira como antes: só a repressão policial se torna mais selvagem e aberta. O resultado é que o lugar das esperanças renovadas e da excitação artificialmente provocada vem a ser ocupado pela desilusão e a apatia.” (Leon Trotsky. Por que os Marxistas se Opõem ao Terrorismo Individual?)

Foi no dia 6 de junho que tudo começou com a convocação pelo Movimento pelo Passe Livre de uma manifestação contra o aumento de tarifa dos ônibus em São Paulo. Um ano depois de junho de 2013 podemos ter uma percepção retrospectiva do que fez a grandeza, mas, também, a fraqueza das manifestações. E podemos avaliar melhor as diferenças que apareceram na esquerda no calor dos acontecimentos.   Três campos se definiram: (a) de um lado, as forças que defendiam o caminho da continuidade das mobilizações de Junho com dois desdobramentos, o fortalecimento da auto-organização juvenil-popular, e a união com o movimento operário organizado, e trabalharam pela proposta de um dia de greve geral em 11 de julho e 30 de agosto; (b) de outro lado, os que se alinharam com a fórmula da Constituinte Exclusiva pela Reforma Política, formulada pelo governo Dilma; (c) por último, mas não menos importante, aqueles que se entusiasmaram com as iniciativas da tática dos Black Blocs e a agitação por atos de destruição simbólica.

Não fosse bastante o balanço demolidor da experiência ao longo do último ano, o argumento de Trotsky na epígrafe é suficiente para ajudar a compreender o perigo da tática dos Black Blocs. A obcessão pela destruição de vitrines e ataques contra os caixas automáticos dos bancos foram o pretexto usado pelos governos para uma repressão cada vez mais violenta que teve consequências para a continuidade do movimento. Nunca saberemos em que medida exata, mas teve. Já as sequelas deixadas pela aventura substitucionista ficaram escancaradas depois do episódio da morte do cinegrafista no Rio de Janeiro em fevereiro que, se não foram irreparáveis, foram muito graves.

Desde fevereiro, felizmente, uma onda de lutas se iniciou com enormes ocupações como as do MTST em São Paulo, greves como a dos garis e do COMPERJ no Rio de Janeiro, rodoviários em Porto Alegre, protestos de populações indígenas diante do Congresso Nacional e, finalmente, as greve dos motoristas, professores municipais, e dos metroviários em São Paulo, entre outras. Veremos nas próximas semanas se ocorrerão ou não manifestações de massa importante durante a Copa.

Ao longo deste ano, o período aberto por Junho conheceu, portanto, diferentes conjunturas. O governo conseguiu uma recuperação relativa entre setembro e janeiro de 2014. Não seria justo dizer que esta recuperação deve ser atribuída, essencialmente, às forças que defendem a campanha pela Constituinte Exclusiva. Muitos outros fatores explicam variações na relação de forças entre as classes e as flutuações de humor entre os trabalhadores. Entretanto o que sim podemos dizer é que a campanha pela Constituinte não acumulou forças para lutar.

Isso não deveria nos surpreender. Independentemente das intenções, o destino da campanha pela Constituinte foi desviar do governo o mal estar social. E além de poupar o governo, chocou com a dinâmica de auto-organização que nasceu de Junho.  A premissa de que a delegação das decisões a “especialistas” da política escolhidos nas urnas é mais democrática do que a decisão em assembleias com participação popular é, a cada dia, mais indefensável. A política para profissionais da política agoniza em graus variados na maioria dos regimes democráticos liberais. Uma crescente abstenção demonstra de forma devastadora o mal estar da maioria com as instituições do regime de democracia para os monopólios.

Da grandeza de Junho, muito já foi escrito. Pelo menos dois milhões de pessoas, a partir do dia 17 de junho, em quatro centenas de cidades com manifestações de rua de exuberante radicalidade, foi algo magnífico e, totalmente, inusitado no Brasil.

Em primeiro lugar, pela espontaneidade autêntica que só as mobilizações que encontram eco profundo na consciência de milhões pode alcançar. Mas sobre as debilidades de junho não surgiu um consenso na vanguarda ampla que esteve à frente da convocação através das redes sociais na internet. A maior fragilidade de junho é que não deu origem a novas organizações, superiores às existentes. Fortaleceu as existentes, é verdade. Mas não aconteceu um processo qualitativo na reorganização dos movimentos que vem desde 2003/04. O que a história das lutas populares sugere é que sem organização não é possível avançar na luta por um programa.

As Diretas em 1984 tinham os três maiores governos estaduais do Brasil, liderados por Franco Montoro, Leonel Brizola e Tancredo Neves impulsionando a preparação dos comícios, além do PT e uma parcela da Igreja Católica. O Fora Collor foi articulado pela UNE, mas após a explosão da manifestação em São Paulo, dia 11 de agosto de 1992, conseguiu convencer a direção do PT de que era incontornável a saída às ruas, que Lula e Mercadante temiam, porque receosos de serem acusados de golpistas. Quércia, o padrinho de Fleury, esteve no comício do Anhangabaú em setembro de 1992.

Em ambos os processos, os maiores da história política do país, além da esquerda, frações burguesas dissidentes que tinham presença importante no aparelho de Estado, convocaram às ruas. Claro que existiu, também, tanto nas Diretas como no Fora Collor, intensa espontaneidade que correspondia a uma vontade política. Nenhum aparelho político pode colocar, se depender somente de sua influência, milhões de pessoas às ruas. Se não estiver apoiado em um processo objetivo de experiência política que tenha deslocado a consciência média dos trabalhadores e do povo. Tanto em 1984, quanto em 1992 a espontaneidade foi em escala inferior às Jornadas de Junho de 2013. E o peso dos aparatos nas Diretas e no Fora Collor foi, incomparavelmente, maior. Junho, em comparação, foi acéfalo.

Esta acefalia relativa foi expressão da força de Junho, mas também da sua fraqueza. Não existiu organização à altura da mobilização durante as semanas de lutas que Junho abriu. Tampouco depois se conseguiu avançar em organização independente. Se refletirmos em perspectiva histórica, esta debilidade parece significativa. As principais mobilizações políticas do século XX em escala mundial, especialmente as urbanas, conheceram as mais variadas formas de auto-organização desde o início. Em junho nasceram experiências fantásticas de assembleias de ativistas no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e Porto Alegre, mas foram fugazes. Os obstáculos que foram colocados no caminho destas experiências remetem ao debate de estratégia: qual é o caminho para transformar pó Brasil? Como abrir uma via para a revolução brasileira?

O tema da auto-organização sempre foi muito polêmico na esquerda mundial, em função da perspectiva estratégica que as suas diversas componentes alimentavam em relação à democracia e à revolução. Claro que, se as principais forças políticas que são reconhecidas pelas massas como seus porta-vozes, e nas quais os trabalhadores depositam a sua confiança, como o PT, e a CUT, convocam o povo a confiar nas instituições do regime, seja porque elogiam a lisura das eleições, e recomendam paciência até ao próximo sufrágio, seja porque defendem as instituições, os parlamentos, os tribunais, etc… o processo é mais difícil.

A proposta de uma Constituinte Exclusiva por uma reforma política aprovada pelo MST e pelas organizações que se articulam em torno de iniciativas da Consulta Popular, inclusive a esquerda do PT, embora pareça crítica ao governo Dilma, se inscreve, infelizmente, nessa perspectiva diversionista. Diz-se que uma proposta é diversionista, ou seja, cria uma diversão, quando o seu conteúdo desvia a onda de choque da mobilização popular do confronto que ela, originalmente, tinha. Em poucas palavras, o objetivo deste projeto foi, desde o início, afastar o confronto de junho do choque com os governos liderados pelo PT, para poupar Dilma e Hadadd do desgaste.

Não por acaso essa proposta foi articulada, na raiz, dentro do PT e, depois, no Palácio do Planalto. Sua intenção clara era desviar para um beco sem saída um processo de luta que tinha como motor um questionamento que possuía, potencialmente, um conteúdo de classe: para onde deve ir o dinheiro público? Um beco sem saída porque um processo eleitoral para uma Constituinte Exclusiva – uma reforma do regime realizada por dentro do regime – não pode ser feita pelas forças que defendem a atual ordem política e social. Nasceu, portanto, estéril, condenada.

Nessas condições de luta política pós-junho, a desconfiança das massas em relação ao governo avançou muito mais lentamente do que seria possível. Os trabalhadores e a juventude ficaram dependendo, em grande medida, de sua própria experiência para retirar lições sobre as possibilidades de conquistar as mudanças que desejam pelas lutas. Isso porque, não tem sido incomum no Brasil como no Egito da Praça Tahrir, ou na Espanha da Puerta del Sol, uma perda relativa da governabilidade sem que, simultaneamente, tenham sido construídos órgãos de unidade na ação que expressem a nova correlação de forças.

Não obstante, quando as esperanças desmoronam, quando não lhes resta outro caminho senão a sua mobilização, quando se descobrem exasperadas pela impossibilidade de que as instituições resolvam as suas demandas, as massas avançam na construção dos organismos independentes, ou atribuem novas funções às suas organizações pré-existentes.

Esses organismos nascem da urgência de tarefas que não podem ser mais adiadas. Impulsionados pela força das reivindicações mais sentidas, correspondem à necessidade de resolver problemas inadiáveis (desde o abastecimento nos cordões industriais chilenos, por exemplo, até o controle da produção contra o lockout na revolução portuguesa). Por isso, a experiência com a democracia direta, surge como uma resposta das massas ao fracasso da democracia representativa e indireta, e de uma vontade de controlar elas mesmas as decisões que as afetam, assim como de um aprendizado de que é necessário controlar os seus líderes. As massas não procuram a democracia direta e os organismos de auto-organização porque gostem do exercício da política. Só o fazem quando perderam a esperança de que, por alguma outra forma, possam mudar as suas vidas e conquistar as suas reivindicações. Junho de 2013 foi só um ensaio geral do que ainda está por vir.