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TEORIA

Uma nota sobre ideologia no marxismo

Valerio Arcary

“Principalmente, todos nós atribuímos e tivemos de atribuir o máximo da importância à dedução das concepções políticas, jurídicas e outras concepções ideológicas, bem como aos atos que delas derivam, a partir dos fatos econômicos fundamentais. Ao fazermos isso, descuramos o lado formal em troca do conteúdo – a maneira como surgem essas concepções, etc.(…) A ideologia é um processo que o presumível pensador segue, sem dúvida conscientemente, mas com uma consciência falsa. As verdadeiras forças motrizes que o impelem são-lhe desconhecidas, pois, se assim não fosse, não se trataria de um processo ideológico (…) Quando Lutero e Calvino ‘ultrapassam’ a religião católica oficial, quando Hegel ‘ultrapassa’ Fichte e Kant e quando Rousseau “ultrapassa’ indiretamente, com o seu Contrato Social republicano, Montesquieu, o constitucional, esses acontecimentos permanecem no interior da teologia, da filosofia, da ciência política, constituem fases na história desses setores do pensamento e deles não saem.”  (Friedrich Engels)[1]

“Mas a máxima contribuição para a vitória final será feita pelos próprios operários alemães, tomando consciência dos seus interesses de classe, ocupando o quanto antes uma posição independente de partido e impedindo que as frases hipócritas dos democratas pequeno-burgueses os afastem por um instante sequer da tarefa de organizar com toda independência o partido do proletariado. Seu grito de guerra há de ser: a revolução permanente.”  (Karl Marx) [2]

A defesa apaixonada da candidatura de Dilma Roussef que foi abraçada pela maioria dos ativistas de esquerda nos convida a pensar sobre o tema da força das ideologias. Dois dias depois da apuração, a revelação de que uma consulta ao presidente do Bradesco para assumir o cargo de ministro da Fazenda foi como uma ducha de água fria na embriaguês. Como explicar que, depois de doze anos de governos de coalizão liderados pelo PT, com tudo que aconteceu, a maioria esmagadora dos ativistas mais conscientes não tivessem memória política e reservas teóricas para resistir à pressão do discurso ideológico da campanha de Dilma?Porque, entre muitos outros fatores, entre 1995 e Junho de 2013, vivemos uma etapa política de estabilidade da dominação burguesa e, em consequência, em função de uma relação social de forças desfavorável, de redução de expectativas. Já em 1985, pouco mais de seis meses depois das Diretas Já, quando o PT decidiu boicotar o Colégio Eleitoral, recusando-se a depositar um só voto em Tancredo Neves contra Maluf, a maioria da vanguarda não só não tremeu, como apoiou.

Acontece que a ideia campista que admite a necessidade de sempre termos de escolher o mal menor entre dois campos político-sociais burgueses em eleições foi sempre muito poderosa, e nos remete às origens do movimento socialista.

Bernstein defendia na Alemanha do final do XIX a perspectiva das coligações eleitorais do SPD, então o maior partido de esquerda da Segunda Internacional, com os liberais em torno de uma plataforma de defesa da democracia. Millerand defendia na França no início do século XX, quando do affaire Dreyfuss, a participação do Partido Socialista em um governo de coligação com os republicanos contra o perigo de um golpe de estado das Forças Armadas. Há cem anos, quando da deflagração da I Guerra Mundial, tanto o SPD alemão como o PS francês assumiram a votação dos créditos de guerra de seus respectivos Estados Nacionais, com a avaliação de que a guerra seria defensiva, e justificava o apoio, ainda que condicionado aos seus governos, destruindo o internacionalismo. Os campos burgueses “progressivos” foram teorizados, também, pelo estalinismo que não hesitou em realizar acordos e até apoiar os governos burgueses mais esdrúxulos, pelo mundo afora, sempre de acordo com as oscilações dos interesses da diplomacia do Kremlin, sendo o mais absurdo, até hoje, o acordo Ribbentrop-Molotov de 1939.

O elemento comum a todos estes diversos posicionamentos estratégicos foi sempre a desvalorização da ação independente dos trabalhadores, ou seja, a sobrevalorização do significado das divisões burguesas, e a incapacidade de resistir às pressões que os setores médios da sociedade moderna exercem sobre as organizações marxistas.

Somos convidados, portanto, pela realidade do 2º turno das eleições presidenciais de 2014 a entrar em um terreno delicado ou até minado da discussão sobre o conceito de ideologia no marxismo. Talvez o melhor caminho seja tentar colocar o foco em uma perspectiva histórica de como o marxismo evoluiu sobre esta questão.

A segunda geração marxista desconhecia A Ideologia Alemã, que permaneceu inédito até 1920: assim Plekanov, Rosa Luxemburgo, Lênin, Trotsky, Gramsci, entre outros, não conheciam os vários e diferentes sentidos que Marx atribuía ao conceito, em função de graus distintos de abstração.

Generalizaram-se sobre A Ideologia Alemã duas apreciações ou leituras aparentadas que podemos resumidamente simplificar como:

(a)   ideologia como a totalidade das formas de consciência social, que voltou a estar muito em voga com a chamada crise dos paradigmas, inclusive a crítica pós-moderna à racionalidade, e às excessivas pretensões do método científico;

(b)   ideologia como as ideias filosófico-histórico-politicas que expressam a visão do mundo e os interesses de uma classe social.

Edouard Bernstein, o líder do SPD alemão que encabeçou o revisionismo que passou para a história como socialdemocracia, parece ter sido o primeiro a caracterizar o próprio marxismo como uma ideologia, isto é, como uma expressão da visão do proletariado. E ainda assim uma tentativa de apreensão parcial, com resíduos, na opinião de Bernstein, idealistas-hegelianos, sem que essa crítica tivesse tido a ressonância de uma “boutade”, ou seja, uma provocação inconsequente. O que indicaria que seus interlocutores, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo e George Plekanov, por exemplo, não consideraram esta questão importante, e menos ainda um escândalo.

Afinal no famoso Prefácio à Crítica da Economia Política, de 1859, o próprio Marx se refere “às formas jurídicas, político, filosóficas, em suma, formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o solucionam pela luta”, o que autorizaria o uso do conceito despido de uma coloração mais crítica, ou restrita e somente negativa.

Numa outra dimensão, foi comum, também, a utilização do conceito como expressão de falsa consciência. Este uso foi muito frequente nas décadas de sessenta e setenta do século XX, quando da maior influência do estruturalismo de Althusser. Na verdade, justiça seja feita, uma leitura mais próxima ao sentido, ou aos vários sentidos, com que o conceito parece ter sido utilizado por Marx, sobretudo depois dos anos sessenta do XIX.

Nas obras de juventude o conceito de ideologia parece se restringir à qualificação dos elos entre consciência e existência. Resume a análise das relações invertidas entre essas duas esferas. As ideologias expressariam tanto uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais, quanto a própria distorção da realidade que encontra compensações no mundo do pensamento, seja ele religioso ou laico.

Assim, neste sentido, a ideologia tanto oculta como explica, tanto mascara quanto revela. Porque ela nasce de uma dupla inversão, na realidade e no pensamento que tenta explicar a realidade. Esta ideia da dupla inversão continuou a ser usada por Marx quando analisou nos Grundisse as formas fenomenológicas do Capital, as aparências do seu movimento, e insiste na crítica do mercado como uma forma de regulação transitória e efêmera, anterior ao capitalismo, porém, também, histórica. Assim, por exemplo, a religião, é definida, metaforicamente, como o ópio do povo, como a moral em um mundo imoral, como o sentimento em um mundo sem sentimentos: o que contém os elementos da dupla inversão.

Mas na Ideologia Alemã, a definição de ideologia era mais restrita: as ideologias seriam a expressão do atraso histórico material, encoberto pelos antagonismos sociais, em que os homens sendo incapazes de encontrar uma solução para essas contradições na prática histórica, tenderiam a buscar compensações teóricas, que ocultavam e disfarçavam as contradições da realidade, e nesse sentido, ajudariam a preservá-las.

O tema adquiriu de novo centralidade teórica pela crítica pós-moderna ao marxismo. Como nos recorda Perry Anderson:

“Para Lyotard, a chegada da pós-modernidade ligava-se ao surgimento de uma sociedade pós-industriaI – teorizada por Daniel Bell e Alain Touraine – na qual o conhecimentotornara-se a principal força econômica de produção numa corrente desviada dos Estados nacionais, embora ao mesmo tempo, tendo perdido suas legitimações tradicionais. Porque, se a sociedade era agora melhor concebida, não como um todo orgânico nem como um campo de conflito dualista (Parsons ou Marx), mas como uma rede de comunicações linguísticas, a própria linguagem – ‘todo o vínculo social’ – compunha-se de uma multiplicidade de jogos diferentes, cujas regras não se podem medir (…) Nessas condições, a ciência virou apenas um jogo de linguagem dentre outros: já não podia reivindicar o privilégio imperial sobre outras formas de conhecimento, que pretendera nos tempos modernos. Na verdade, sua pretensão a superioridade como verdade denotativa em relação aos estilos narrativos do conhecimento comum escondia a base de sua própria legitimação, que classicamente residiu em duas formas grandiosas de narrativa. A primeira, derivada da Revolução Francesa, colocava a humanidade como agente heroico de sua própria libertação através do avanço do conhecimento; a segunda, descendente do idealismo alemão, via o espírito como progressiva revelação da verdade. Esses foram os grandes mitos justificadores da modernidade. O traço definidor da condição pós-moderna, ao contrario, é a perda da credibilidade dessas metanarrativas.” (grifo nosso) [3]

A definição é, portanto, negativa e restrita: negativa porque compreende a ideologia como um ocultamento da realidade, uma distorção das contradições sociais, uma representação parcial, mas que se pretende universal, e tem a intenção de apreender a totalidade para sempre; restrita porque Marx não está identificando ideologia com todo tipo de falsa consciência.

Se não desenvolvermos a capacidade de resistência às pressões ideológicas inimigas não será possível avançar na reorganização da esquerda no Brasil.



[1]Vale a pena ler esta outra passagem da mesma carta: “Por isso, é levado a imaginar, para si próprio, forças motrizes falsas ou aparentes. Como se trata de um processo intelectual, deduz-lhe o conteúdo, bem como a forma, do pensamento puro, quer do próprio pensamento, quer do dos seus predecessores. Trabalha exclusivamente com materiais de ordem intelectual (…) O ideólogo histórico (histórico deve ser tomado aqui em um sentido coletivo, por político, jurídico, filosófico, teológico, em resumo, por todos os domínios que pertencem à sociedade e não apenas à natureza) – o ideólogo histórico, dizíamos, encontra em cada domínio científico uma matéria que se formou de maneira independente no pensamento das gerações anteriores e que passou, no cérebro dessas gerações sucessivas, pela sua própria série independente de desenvolvimentos.(…)É esta aparência de história, independente das constituições de Estado, dos sistemas jurídicos, das concepções ideológicas em cada campo particular que, mais do que qualquer outra coisa, cega a maioria das pessoas. ENGELS, Friedrich. “Carta a Mehring de 14 de julho de 1893” In MARX-ENGELS. Sobre a literatura e a arte. Lisboa, Estampa, 1974. [Coleção teoria 7] p.45.

[2] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.Mensagem do Comité Central à Liga dos comunistas” In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, p.92.

[3] ANDERSON, Perry, As Origens da Pós-Modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p.32.