Ou o «espectro da autodeterminação» no marxismo-mundo de Perry Anderson* (1 de 3)
“Ensina uma antiga sabedoria grega que Zeus enviara a Pandora para castigar Prometeus, o qual teria roubado o fogo para ofertar vida aos seres humanos. Tendo, por isso, contrariado os desígnios dos deuses do Olimpo – e desafiado as teias do destino –, fora condenado a sofrer todas as maldições mais atrozes, até que Zeus, tomado de piedade, decidiu fechar a Caixa de Pandora, quando em seu interior só restava a derradeira, porém, a mais terrível de todas as maldições. A humanidade fora assim poupada do pior dos males, o mais invisível e o mais assustador: a perda da esperança. Se os marxistas, como já se disse, são filhos de Prometeus, os historiadores fizeram – com Clio – um pacto eterno: a defesa intransigente da memória coletiva. Há coisas que não se pode deixar perder.” (Valério Arcary)
São os homens que fazem a sua própria história. Ainda e quando não o façam sob condições de seu livre arbítrio. Mas nem sempre foi assim. O homem como demiurgo de seu próprio destino coletivo – a possibilidade efetiva de transformar o curso dos acontecimentos – e, assim, fazer a diferença é, tal qual todo o mais no mundo dos homens, uma produção historicamente datada e socialmente situada. É “o fazimento da” história [“the making of” history] um tópico central para o materialismo histórico, em geral, e para a historiografia inglesa, em particular. A contribuição dos marxismos de fala inglesa para essa questão é uma conquista político-intelectual cujo valor é reconhecido amplamente por toda a esquerda mundial. Nessa afinada canção coral, uma voz forte ressôa, e reverbera, vívidamente. O que Perry R. Anderson (*) chamou de «espectro da autodeterminação» será tratado nessa série de textos em seus aspectos político, teórico e histórico. O assunto, do começo ao fim, é um só: como e por que se muda o mundo?
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Eric J. Hobsbawm já afirmou de modo lapidar – ao concluir um vibrante relato autobiográfico inelutavelmente iluminado pelo seu ofício de historiador – que “o mundo não vai melhorar sozinho”. Isso é verdade. Ou transformamos o mundo ou seremos, por ele, transformados. Mas não é menos verdadeiro que o quê de fato tem galvanizado às pessoas – em termos de ação política coletiva – é, historicamente, muito raramente uma razão ou vontade de tornar o mundo melhor mas, antes que isso, precaver de que se reconverta num lugar ainda pior. O verdadeiro detonador que engatilha à explosão política é, quiçá muito mais freqüentemente, alguma percepção coletiva de injustiça autoevidente ou absolutamente intolerável. A prevenção daquilo que representa o Mal, o pior, e não a busca do que seria o Bem, o melhor, é que coloca a maior parte das pessoas em movimento antes mesmo de sequer sonhar com alguma alternativa. O que tem lugar e hora – aqui e agora – é, em linguagem dialética, “a negação de uma negação.”
A força inexorável da indignação política, que se produz em acontecimentos de vulto – e se nos coloca um imperativo moral, o dever intelectual, de empenhar nossos atos e palavras –, não é mais que um começo. Mas é, para todos os efeitos, um bom começo. Mesmo ignorando o que poderia vir a ser a justiça de algo justo resta-nos uma irredutível dignidade: a recusa da injustiça do que é injusto. A indignação por uma injustiça não deixa de ser uma maneira de se levantar, de tomar a palavra, de entrar em ação. É necessário que nos indignemos apaixonadamente antes mesmo de reconhecermos os móveis de tal paixão. No princípio era, então – não o verbo nem a ação –, mas, sobretudo, a relação. É a partir da relação com o outro que podemos identificar àquilo que somos. E nós somos aquilo que fazemos. Mais que tudo, o que fazemos para mudar o que somos. Até mesmo quando nós não sabemos que o fazemos. O saber e o fazer nem sempre caminham de mãos dadas.
Da Primavera Árabe à Revolta de Junho há vários exemplos de incidentes singulares que, depois, deram lugar a alguma ira generalizada. O início da primeira se deu a partir de um vendedor de frutas – sistematicamente perseguido, e maltratado, pelas autoridades locais – que, ao atear fogo a si mesmo, de alguma forma e em alguma medida, incendiou à imaginação política de países inteiros. Já em relação à segunda, a brutalidade policial com que uma passeata do Movimento Passe Livre foi reprimida enfureceu o ânimo de multidões, de Norte a Sul, nas principais cidades de todo o país. Obviamente, não é possível compreender a estrutura e a dinâmica de movimentos de massas tão complexos e significativos – quanto foram os casos árabe e brasileiro – desde um só evento da história. Há nexos causais a exigir uma contextualização mais efetiva, de situações em concreto. Mas todo grande incêndio já foi uma pequena centelha. Não à-tôa a linha fina do jornal bolchevique Iskra (ou Fagulha, em russo) remarcava justamente isso.
Todo militante sabe recontar como se deu o início de sua paixão política. E todo amante deve poder dizer o que deu origem a sua história amorosa. O amor verdadeiro, assim como a paixão política, nunca é desprovisto de razão. Quando se ama alguém de verdade deve-se saber dizer o porquê ou, então, isso não significa nada. Mas a convicção comunista numa futura humanidade autoemancipada – a mais alta de todas elas no tempo/espaço que nos tocou sermos e estarmos – se baseia não só na razão como, também, na fé. Não há como predizer ou comprovar a efetiva possibilidade histórico-política de que um mundo melhor venha a ser a alternativa vitoriosa entre as mais distintas probabilidades. (A ficção científica, aliás, é pródiga em demonstrar o contrário.) A imaginação utópica (o ‘sonhador’) tanto quanto a racionalidade crítica (o ‘realista’) – i.e., o sentir + o pensar –, são as partes de uma só aposta. Uma aposta coletiva. (E todos nós estamos embarcados em alguma aposta, diga-se de passagem.)
A necessidade humana pelo sentido de pertença a alguma coletividade maior do que o próprio “eu” é, sem sombra de dúvidas, um valor histórico-universal. Mas a differentia specifica, do pertencimento efetivamente encontrado na ação política coletiva, tem natureza/limitações muito mais ativas, sociais e históricas do que em qualquer outro e, também, é muito mais disruptivo do que, por exemplo, tão-só formar parte de dada comunidade, uma família ou até mesmo determinado círculo de amizades. É, também, algo mais contingente. E enfim, ver-se-á a seguir, muito mais recente do ponto de vista histórico. Os laços de parentesco e o caráter gregário que acompanham a aventura humana na história do globo são objetivações duradouras – de muito mais antiguidade – na experiência vivida de bilhões de indivíduos. Todavia, a constituição de clãs e/ou o sistema de vizinhança dificilmente sóem transformar o mundo. O associativismo deste tipo é aquele que se propõe a, justamente através da política, “fazer história.”
O pertencimento que advém da pira do militantismo, nascido do fogo do ativismo, é quando a paixão, a centelha inicial, se transforma em amor, todo um incêndio. A indignação, como dissemos, pode ser um bom começo. Mas não é mais do que isso, ou seja, um começo. A primavera política do batismo de fogo de cada um de nós é o momento decisivo desde o qual nunca mais fomos os mesmos. O primeiro piquete? Essa mobilização? Aquela greve? É o ato que mudou tudo e, principalmente, a nós mesmos. Contudo, nada garante por si só que o movimento espontâneo de luta o qual gerou àquela chispa dê lugar à permanente incandescência de uma inteira direção consciente de vida. Há muitos fogos bobos que não iluminam nem aquecem. São fogos de palha. A maioria de nós conhece aquele poema épico que anuncia como são bons e ótimos, aqueles que lutam um dia ou anos a fio, e imprescindível, quem arde a vida tôda. (As mais diversas línguas reservam a expressão política, “ir para casa”, para dar nome ao quê – no futebol – se chama “pendurar a chuteira”, isto é, o apagar da chama.)
O que ocorre a esse tipo de associativismo em particular – i.e., especificamente ativo, histórico e social –, quando perdura, é que produz um tremendo efeito desde o qual as pessoas se apercebem do poder real de sua própria autoatividade política face às esquinas perigosas da história. Sozinhos nós não podemos sequer sonhar em mudar qualquer coisa maior do que nossos próprios umbigos, mas, com os nossos, e mais algumas pessoas – que, talvez, simpatizem conosco –, percebemos que, juntos, aí sim, é possível. A faísca que se produz, daí, é uma fabulosa liberação de energia vital, disposição-para-a-ação e, ao fim e ao cabo, as pessoas não só mudam o curso dos acontecimentos como transformam a si mesmas. Esse salto de consciência social, que acompanha o arco da organização coletiva, não deixa de ser um estalo político que prefigura tudo aquilo somos capazes de fazer e não, necessariamente, sabíamos. Faz-se, então, um antes e um depois. Nada mais será como já foi.
A narração mais vigorosa – e tocante – desse tipo de autotransformação pode ser encontrada em meio à obra de ninguém menos do que o próprio Leon Trotsky. O dirigente político do Exército Vermelho dedicou muitos parágrafos para recontar, de forma lúcida e arrebatadora, não só propriamente o que acontecia lá fora, nas praças e as avenidas, mas já bem dentro, nas mentes e os corações de seus companheiros de jornada, a partir do princípio educativo da práxis revolucionária. Não o significado exterior dessa zona de engajamento, mas o sentido interno que assumiu a forma e o conteúdo de fazer história – e política –, a partir da organização coletiva, para cada um de seus camaradas em armas. Tudo quanto existe se transforma: os estudantes iniciam a ditar programas de história da civilização aos seus professores; os soldados começam a dirigir as ações de seus generais; quem nada tinha tudo passa a possuir. “Minha vida“, o seu livro, fala a língua da clareza e da urgência. A sua melhor prosa possui qualidade literária inigualável.
Há muitas barreiras para que as pessoas venham a fazer parte de movimentos e/ou agrupamentos políticos. Não só a história recente – o “breve século XX” – demonstra a falência da socialdemocracia e o colapso do stalinismo – ligados a Washington e Moscou – mas, também, quão poderosa é a pressão do conformismo. Não obstante, um dos motivos pouco discutidos para a gênese e devir da atividade militante é que todos desejam transcender à rotina da vida cotidiana. Todo ser humano guarda em si a resistência à mesmice do dia-a-dia, todos, de uma forma ou de outra – ora mais latente, ora mais atuante –, debatem-se pelo elemento de novo em suas vidas. Charles Fourier, entre outros socialistas utópicos, entendeu isso muito bem. Até mesmo as pessoas não-tão-infelizes com suas próprias vidas pessoais podem se defrontar com a necessidade sentida de “sacudir a poeira”. A válvula de escape do enfadonho – o «status quo» –, através da ação política coletiva, não deve ser desprezada quando se trata de mudar o mundo. “O novo mundo amoroso“, do mesmo Fourier, dá conta justamente do que há de amor na política e viceversa. Na política, já como no amor, apenas começamos.∞
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Nessa breve nota acompanhamos o argumento do pensador angloirlandês a partir de um registro mais descontraído, em fluida conversação, por ocasião da visita do autor ao Brasil pouco tempo após as assim-chamadas “jornadas de junho”, em 2013. A nova primavera social e política que se descortinou a partir de finais dos anos 2000 e inícios dos anos 2010, com toda uma nova onda de movimentos antissistêmicos que tiveram lugar da Plaza del Sol à Plateya Syntagmatos e de Wall Street à praça Tahir, é o que se coloca como o motivo de fundo para abordar a tal questão. A forma com que Anderson nos apresenta o tema facilita uma primeira aproximação, de teor introdutório, sem necessariamente descuidar da profundidade do problema, ora em tela. Como continuação da série, veremos o tratamento teórico que o “espectro da autodeterminação” adquiriu na polêmica de Perry R. Anderson com Edward P. Thompson e, depois, a autonarrativa histórica de Anderson sobre como, afinal, se deu a sua própria politização.
Referências:
Entrevistas, lectures e palestras de Perry Anderson, Outubro de 2013, Campinas e Porto Alegre.
Ali, Tariq. Street fighting years. Verso, London, 2005.
Arcary, Valerio. As esquinas perigosas da história. Xamã, São Paulo, 2004.
Bensaïd, Daniel. Os irredutíveis. Boitempo, São Paulo, 2008.
Fourier, Charles. Le nouveau monde amoureux. Les Presses du Réel, Dijon, 2009.
Nai͏̈r, Sami et Löwy, Michael. Lucien Goldmann ou la dialectique de la totalité. Paris, Seghers, 1973.
Marx, Karl. O dezoito brumário de Luis Bonaparte. Boitempo, São Paulo, 2011.
Hobsbawm, Eric. Interesting times. Knopf Doubleday, New York, 2007.
Trotsky, Leon. Mi vida. Ediciones IPS-Ceip, Buenos Aires, 2012.
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(*) Perry Anderson é um marxista angloirlandês cuja obra, no interior da historiografia teórico-política de fala inglesa, se destaca pela perspectiva de análise internacional comparativa e de longa duração histórica. É autor de livros como Considerações sobre o Marxismo Ocidental, Linhagens do Estado Absolutista e O Fim da História (Boitempo, Brasiliense e Zahar). Por mais de cinqüenta anos é membro do conselho editorial da reputada revista de ideias New Left Review (NLR, London City) e nos últimos vinte e cinco anos leciona no campus de Berkeley, University of California. Os textos mais jornalísticos de Anderson podem ser acompanhados nos editoriais da NLR, Revista Piauí, London Review of Books, Jacobin Magazine e, mais recentemente, no próprio Blog CONVERGÊNCIA.
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