Tariq Ali & Adolf Joffe | Trad. Betto della Santa |
Foto: Leon Trotsky e Adolf Joffe conversam em um automóvel seccional do Comitê Central bolchevique russo.
[O Blog CONVERGÊNCIA edita a seguir uma crônica de Tariq Ali sobre o bilhete suicida de Joffe, dirigente bolchevique, diplomata soviético e membro da Oposição de Esquerda, que foi endereçado a Trotsky, ainda e quando tenha sido interceptado e seqüestrado pela cúpula da burocracia moscovita. Seu tema fala de um passado não ultra-passado, e de uma memória que não se deve perder. Logo abaixo o bilhete de Joffe, traduzido e publicado pela secção brasileira da Oposição de Esquerda, no jornal Luta de Classe, em 1930. Desejamos uma boa leitura a todos.]
“Primeiro é preciso transformar a vida para cantá-la em seguida / […] Para o júbilo o planeta está imaturo / É preciso arrancar alegria ao futuro / Nesta vida morrer não é difícil / Difícil é viver e seu ofício.” (Por Vladimir Maiakóvski | Trad. Haroldo de Campos)
Há pouco tempo atrás Lucio Magri, um dos mais respeitados intelectuais de esquerda em toda a Itália, voou para a Suíça, entrou em uma clínica e bebeu de sua cicuta fatal. No seu caso isso significou engolir uma pílula mortal. Por mais de alguns dias a Itália esteve em choque. De repente, Magri estava por toda parte. O parlamento italiano observou um minuto de silêncio, o comentário jornalístico foi amplamente simpático, mas, dentre os seus amigos mais próximos, houve genuíno mal-estar.
Sua esposa, que morrera após uma longa doença, dois anos antes, desencorajara Magri de vestir o terno de madeira, insistindo em que ele terminasse seu livro sobre o destino do comunismo italiano. Com O Alfaiate de Ulm concluído e publicado, ele decidiu dizer adeus à vida. A perda de sua esposa foi o gatilho, mas havia outras razões por detrás. Ele não sentia-se mais contemporâneo de seu próprio tempo.
O comunismo italiano e aqueles à sua esquerda, eles sim, haviam cometido suicídio político. Uma camarilha financeira governava o país, com o apoio incondicional de um octogenário presidente ex-comunista, a intelligentsia de esquerda entrara em colapso – então, qual era o sentido em seguir vivo?
A maioria de seus amigos não ficaram convencidos – até mesmo sentiram raiva. Eles tentaram falar com ele sobre isso, mas Magri não se abalou. “Ser verdadeiro, simplesmente verdadeiro”, Stendhal escreveu uma vez, “é a única coisa que importa.” Para Magri, a verdade significava dar cabo da própria vida. Ele não foi nem o primeiro nem o último a sair de cena desta forma.
Isto me lembrou um pequeno panfleto que eu tinha lido quatro décadas atrás, As Últimas Palavras de Adolf Abramovich Joffe (editado pelo Lanka Sama Samaja, no Ceilão, em 1950). Era um bilhete suicida de 16 de Novembro de 1927, endereçado a Leon Trotsky. Depois de concluir o bilhete, Joffe, um dos mais confiáveis dos diplomatas soviéticos, pressionou a pistola à própria têmpora e apertou o gatilho. O que me impressionara à época não foi tanto o suicídio em si, mas as qualidades humanas demonstradas, visíveis logo nos primeiros parágrafos: “Caro Liev Davidovich: Por toda a minha vida eu acreditei que o homem político deve saber quando sair de cena no momento certo, como um ator deixa o palco, e que é melhor ir mais cedo do que tarde.”
“Por mais de 30 anos eu segui a filosofia de que a vida humana só tem sentido na medida em que, e enquanto, for vivida a serviço de algo infinito. E, para nós, a humanidade é o infinito.”
“O resto é finito, e trabalhar para o resto é, portanto, sem sentido. Mesmo que a humanidade mesma possa vir a conhecer o seu próprio fim, o mesmo advirá em um tão remoto futuro que, para nós, a humanidade pode ser considerada enquanto um infinito absoluto. É é nisto, e tão-somente nisto, em que eu sempre encontrei o sentido maior de minha vida.”
“E agora, debruçando o olhar para trás, sobre o meu passado, dos quais 27 anos foram vividos nas fileiras do nosso partido, parece-me que tenho o direito de dizer que durante toda a minha existência consciente eu tenho sido fiel a esta filosofia de vida. Eu vivi de acordo com este sentido vital: trabalhar e lutar para o Bem da humanidade. Eu creio que tenho o direito de dizer que não há um dia de minha vida que tenha sido sem sentido. Mas agora, ao que parece, chegou o momento em que a minha vida perdeu todo significado e, em consequência, sinto-me obrigado a abandoná-la, e levá-la a seu próprio fim.”
Uma razão pela qual Joffe – um médico por formação – tinha deixado o palco era sua doença. Seguindo as instruções de Stalin, os médicos do Kremlin recusaram-se a tratá-lo e o Politburo se recusou a sancionar a verba necessária para que fosse ao estrangeiro. Por quê? Porque naqueles tempos caóticos e desconcertantes Joffe foi um dissidente, um dos principais membros da Oposição de Esquerda, um grupo da velha guarda bolchevique-leninista – liderado por Trotsky, Zinoviev e Kamenev – que se uniu depois da morte de Lenin para combater as políticas e práticas stalinistas. Eles foram manipulados, derrotados e expulsos da direção e, em seguida, do próprio partido. Repelidos pela fúria de facção desencadeada contra eles, Joffe, ao contrário de muitos outros, recusou-se a olhar para o lado e seguir em frente. Para homens como ele o silêncio nunca foi uma opção. Era sinônimo de submissão, e a integridade da vida interior de alguém como ele não poderia permanecer imune às violentas tempestades lá de fora.
Joffe tinha visto como a Oposição de Esquerda fez negociar, aceitar concessões e capitular à decisão majoritária do partido, certa ou errada. Trotsky não tinha, até aquele momento, acatado à ideia avançada por alguns de seus partidários: uma ruptura total com a facção de Stalin e o anúncio de um novo partido. O oposicionista Karl Radek escreveu em uma carta a seus camaradas que na realidade o que tinham feito era ter se limitado a escolher “entre duas formas de suicídio político”: ou ser politicamente isolado do partido ou capitular e voltar a entrar nos termos de Stalin. Esta última seria, mais tarde, a própria escolha de Radek, e outros.
A carta de Joffe reprovava Trotsky, sobretudo, por seu conciliacionismo:
“Mas você muitas vezes renunciou a sua posição correta em favor de um acordo, uma concessão, cujo valor fora superestimado. Isso foi errado […] não tenha medo hoje se certas pessoas te abandonarem, e especialmente se muitos não vierem a assumir as posições corretas a seu lado tão rapidamente quanto desejaríamos. Você está do lado certo da história, mas a certeza da vitória de sua verdade reside precisamente em uma estricta intransigência, na rigidez mais austera, no repúdio a qualquer concessão, exatamente como sempre foi o segredo mais íntimo das vitórias de Ilich [Lenin]… Eu sempre quis dizer isso a você, mas só fui impelido a isso agora, no momento preciso de dizer adeus ao mundo…”.
No mundo de hoje as paixões políticas – e as generosas pulsões – reveladas na Carta de Joffe lêem-se como se fossem escritas desde uma submersa Atlântida. Mas é parte de uma história que dominou o século anterior, e, quando nos aproximamos do Centenário da Revolução Russa (1917-2017), esta merece ser lembrada. Sua viúva – Maria Joffe – sobreviveu aos campos, e depois da morte de Stalin, deixou a União Soviética. Mudou-se para Israel. Seu livro, Uma Longa Noite [A Tale of Truth], continua a ser uma das muitas memórias afetivas desta era.
Fonte: ALI, T. A suicide note to Trotsky… [Column]. The Guardian, 21th August, 2015, p.26.
Leia abaixo, na íntegra, o bilhete suicida de Joffe a Trotsky:
A Leon Trotsky
Caro Liev Davidovich:
Em toda minha vida sempre pensei que o homem político deve saber ir embora a tempo, como um ator deixa a cena, e que é melhor fazê-lo cedo demais do que tarde demais. Adolescente, ainda verde, defendi a correção da conduta de Paul Lafargue, e sua mulher Laura Marx, quando suicidaram-se, o que tanto barulho fez nos partidos políticos. E me lembro que repliquei asperamente a Augusto Bebel, muito revoltado por este suicido, que só é admissível discutir-se, a idade escolhida pelos Lafargue (pois não se trata aqui dos anos mas da utilidade possível do indivíduo), não se pode em caso nenhum contestar o princípio, para um homem público de deixar a vida no momento em que tem consciência de não poder ser mais útil à causa que seria. Há mais de trinta anos que fiz minha desta filosofia a minha, de que a vida humana só tem sentido na medida e enquanto está a serviço de um infinito que para nós é a humanidade, porque, sendo o resto limitado, trabalhar pelo resto é desprovisto de sentido.
Se mesmo a humanidade deve ter um fim, este sobrevirá então numa época tal que, para nós, a humanidade pode ser considerada um infinito absoluto. E se tem como eu, fé no progresso, pode-se muito bem conceber que, mesmo em caso de perdição de nosso planeta, a humanidade encontre os meios de habitar outros mais jovens, e prolongue por conseguinte sua existência; e então, tudo que for feito em seu bem, em nosso tempo, se refletirá também nos séculos longínquos, quer dizer, dará à nossa existência a única significação possível. É nisto, e nisto somente, que sempre vi o sentido da vida; e agora, abarcando com o olhar a minha vida passada, dos quais 27 anos nas fileiras do nosso Partido, parece que tenho o direito de dizer que durante toda a minha vida consciente, permaneci fiel a esta filosofia, isto é, vivi segundo este sentido vital; o trabalho e a luta pelo Bem de toda a humanidade.
Mesmo os anos de prisão e de cárcere quando o homem é afastado da participação direta na luta a serviço da humanidade, não podem ser riscados da vida com um sentido, pois, sendo anos de preparação cultural e de autodidática instrução, contribuíram para o melhoramento do trabalho ulterior; e por esta razão podem ser confundidos com os anos de trabalho a serviço da humanidade, tendo, portanto um sentido. Creio ter o direito de afirmar que nesta acepção, nem um só dia de minha vida foi desprovisto de sentido. Mas agora parece, chegou a hora, em que a minha vida perde o seu sentido e, por conseguinte, surge a obrigação de deixá-la, de lhe dar um termo. Há vários anos que a direção atual de nosso Partido, de conformidade com o seu método geral de não dar trabalho aos comunistas da Oposição, não me designa nem trabalho partidário nem trabalho soviético, cuja envergadura e caráter me permitissem ser útil no máximo de minhas forças.
No último ano, você o sabe, o Bureau Político me pôs, como oposicionista, completamente de lado de qualquer trabalho político. Por outro lado, provavelmente em parte devido a minha doença e em parte devido a razões melhor conhecidas de você do que de mim – não pude, este ano, participar praticamente do trabalho e da luta da oposição. Foi com um forte combate interior e, no começo, a contragosto, que me resignei a esta forma de atividade que só esperei suportar tornando-me completamente inválido: o trabalho literário, cultural e pedagógico. Embora no começo achasse penoso, me entreguei decididamente a esta tarefa, esperando que ela continuasse a dar a minha vida a necessidade e utilidade de que falei acima; só elas a meu juízo podem justificar minha existência. Porém minha saúde vem piorando cada vez mais.
Por volta de 20 de setembro, por motivo por mim desconhecidos, a Comissão Médica do Comitê Central me convocou para um exame de professores especialistas e estes diagnosticaram um processo tuberculoso ativo nos dois pulmões, uma miocardite, uma inflação crônica da vesícula biliar, uma colite crônica, apendicite e polinevrite crônica (inflamação múltipla dos nervos). Eles me disseram que meu estado de saúde era bem pior do que eu imaginava, e que nem devia pensar em prosseguir até o fim nos meus cursos nos estabelecimentos superiores (a Universidade de Moscou e o Instituto de Orientalismo). Acrescentaram que pelo contrário que pelo contrário seria mais razoável renunciar as estes planos e não ficar inutilmente nem um dia mais em Moscou e nem mais um hora sem tratamento e partir imediatamente para o estrangeiro, com destino a um sanatório apropriado.
Como esta viagem não podia ser preparada em dois dias, me prescreveram certos remédios e tratamento. Para obtê-los tinha que ir à Policlínica do Kremlin durante algum tempo, até a minha partida. A minha pergunta direta: “Que possibilidade tenho de cura no estrangeiro e posso me tratar aqui na Rússia sem abandonar meu trabalho?”, os professores e os assistentes, o médico do Com. Central, camarada Abrossov, um outro médico comunista e o deão do hospital do Kremlin, A. Konseil, responderam claramente os sanatórios russos não podiam de nenhum modo curar-me e que eu devia contar com um tratamento no Ocidente, pois até então nunca me tratara mais de 2 ou 3 meses no estrangeiro; mas que agora eles insistiam justamente para que eu fizesse uma estadia de seis meses no mínimo, sem fixar o máximo. Acrescentaram que, conformando-me as prescrições deles, não duvidavam que se não me curasse radicalmente, ao menos me seria dado trabalhador por um período maior.
Durante dois meses mais ou menos, nenhuma medida foi tomada pela Comissão médica do Comitê Central (foi ela entretanto que por sua própria iniciativa convocou a consulta em questão) relativo não somente a minha estadia no estrangeiro como do meu tratamento aqui. Ao contrário, a farmácia do Kremlin que sempre me fornecera remédios pelas receitas, ficou interdita de fazê-lo e eu fiquei, de fato, privado, de auxílio gratuito dos medicamentos que sempre usara. Fui obrigado a comprar os remédios indispensáveis nas farmácias da cidade (parece que isto se deu no momento em que o grupo dirigente do Partido começou a recorrer com os camaradas da oposição, à aplicação do método: “ferir a oposição no ventre”). Enquanto era suficientemente válido para trabalhar, quase não prestava atenção para isto, mas como o meu estado não parou de piorar, minha mulher começou a trabalhar junto à Comissão Médica do C. Central, pela minha ida para o estrangeiro, e pessoalmente junto a N. Semachko, que sempre publicamente quebrou lanças para realizar a sua fórmula “salvaguardar a velha guarda”.
A questão era entretanto constantemente protelada e tudo o que pode obter minha mulher foi um resumo da decisão do conselho dos médicos. Neste resumo, minhas doenças crônicas eram enumerados e ficava constatado que o Conselho insistia pela minha partida para o estrangeiro “num sanatorium do tipo prof. Friedlander” e por um prazo podendo se prolongar até um ano. No entanto, há nove dias me deitei definitivamente, devido à acuidade e à agravação (como é sempre o caso) de todas as minhas doenças crônicas e sobretudo, o mais terrível, da polinevrite inveterada que tomou de novo uma forma aguda, me constrangendo a autar um padecimento infernal, absolutamente intolerável e me tirando até a possibilidade de andar. Com efeito, há nove dias que estou privado de qualquer tratamento e a questão de minha viagem ao estrangeiro não foi examinada. Nem um só dos médicos do Com. Central me veio ver. O prof. Davidenko e o dr. Levine, chamados à minha cabeceira, me prescreveram algumas insignificâncias que não puderam me aliviar em coisa alguma; reconheceu-se então “que não se podia fazer nada” e que a viagem ao estrangeiro era indispensável e urgente.
O dr. Levine disse a minha mulher que o negócio não andava porque a Comissão Médica pensava naturalmente que minha mulher haveria de querer fazer a viagem comigo e que “assim ficava muito caro”. (Quando os camaradas que não são da oposição ficam doentes, são enviados ao estrangeiro, e muitas vezes até com a família, acompanhados de nossos médicos ou professores, eu mesmo sei de muitos destes caos e até reconheço que quando foi de minha primeira crise de polinevrite aguda, fui mandado ao estrangeiro, em companhia de minha família, mulher e filho, e do prof. Konabi; então ainda não existiam os costumes atualmente instaurados no Partido.) Minha mulher respondeu que apesar do triste estado em que me encontrava ela não pretendia absolutamente que eu devesse ser acompanhado por ela ou por alguém. Então o dr. Levine garantiu que nestas condições a questão seria resolvida rapidamente. Meu estado foi se agravando e meus sofrimentos se tornaram tão terríveis que reclamei enfim aos médicos que dessem ao menos um alívio qualquer.
O dr. Levine me repetiu hoje que os médicos nada podiam fazer e que a única porta de salvação era a partida imediata para o estrangeiro. Ora, à noite, o médico do C. Central, camarada Potiomkine, avisou à minha mulher que a Com. Médica decidira não me enviar ao estrangeiro e de me tratar mesmo na Rússia. A razão era que os professores especialistas insistiam por um tratamento prolongado no estrangeiro, julgando uma certa estadia inútil e que o Com. Central só consentia em me dar para a minha cura uma soma máxima de 1000 dólares (2000 rublos) dizendo ser impossível dar mais. Como você sabe, dei no passado a nosso Partido outra coisa que um milhar de dólares, em todo o caso, mais do que custei ao Partido, desde que a revolução me privou de todos os meios e que não posso mais me tratar às minhas custas. Mais de uma vez, editores anglo-americanos me propuseram, por pagamentos de “minhas memórias” (à minha escolha, com a única exigência que dissessem respeito ao período das negociações importantes) somas que subiam até a 20.000 dólares. O Bureau Político sabe perfeitamente que sou bastante experimentado como jornalista e como diplomata, para publicar uma só palavra sequer prejudicial ao nosso Partido e ao nosso Estado.
Ele não ignora tampouco que fui muitas vezes censor no Comissariado dos Negócios Estrangeiros e que na qualidade de embaixador também o fui para todas as obras russas editadas nos países onde servia. Há alguns anos pedia ao Bureau Político a permissão para editar esta memórias, tomando o compromisso de entregar ao Partido todos os honorários, pois me custa aceitar do Partido dinheiro para me tratar. Em resposta, fui prevenido por uma decisão do C. Central, nos termos da qual “é formalmente proibido aos diplomatas ou aos camaradas tendo tomado parte no estrangeiro publicar no estrangeiro suas reminiscências ou fragmentos de memórias sem exame prévio dos manuscritos pelo colégio do Comissariado dos Negócios Estrangeiros e o Bureau Político do Comitê Central”. Sabendo das irregularidades e dos atrasos que seriam ocasionados por esta dupla censura, resolvi em 1924 declinar de qualquer proposta. Encontrando-me recentemente no estrangeiro, recebi uma nova oferta garantindo-me 20.000 dólares de honorários. Sabendo, porém, como entre nós se falsifica a história de nosso Partido e da Revolução, não julguei possível emprestar o meu concurso a uma tal falsificação, não tendo dúvida de que toda a censura do Bureau Político (e os editores fazem questão do caráter pessoal das reminiscências, isto é sobre a caracterização dos personagens que nela desempenharam algum papel) consiste em não admitir uma justa apreciação dos personagens e de seus atos, nem destes nem daqueles, isto é nem dos chefes autênticos da Revolução, nem dos dirigentes atuais elevados a esta dignidade.
Eu não acho possível editar memórias sem chocar de frente o Bureau Político e por conseguinte não vejo meio de me tratar sem receber dinheiro do Com. Central que, por todo o meu trabalho revolucionário de vinte e sete anos, acha razoável calcular a minha vida e a minha saúde numa soma não passando de 2.000 rublos. No estado em que acho atualmente me é evidentemente impossível realizar um trabalho qualquer. Se, a despeito de sofrimentos infernais, tivesse a força de continuar a série de meus cursos, uma situação desta ordem exigiria sérios cuidados, seria preciso me transportar por toda parte em “padiola”, me ajudar a procurar nas bibliotecas e nos arquivos os livros e materiais necessários, etc… No decorrer de minha última doença, tive a minha disposição todo o pessoal de uma embaixada: agora, segundo minha “categoria”, não tenho nem mesmo o direito a um secretário particular. Além disso, a desatenção para comigo de que se tem dado provas nestes últimos tempos, por ocasião, das minhas doenças (como agora; em que estou há dias praticamente sem socorro e em que o tratamento elétrico prescrito pelo prof. Davidenko não me é aplicado), mostra que não posso contar nem mesmo com uma coisa tão elementar como um transporte em padiola.
Mesmo se fosse tratado, se fosse mandado ao estrangeiro, para a estadia indispensável, minha situação continuaria crítica no mais alto ponto: a última vez passei mais ou menos dois anos num estado de polinevrite aguda, sem fazer um movimento; não tinha então outra doença a não ser esta e no entanto todas as outras que contraí depois são conseqüências desta; agora já me descobriram seis. Mesmo se pudesse daqui por diante consagrar o tempo necessário ao tratamento, é duvidoso que possa contar com uma prolongação útil de minha vida. Agora então que se considera impossível tratar-me seriamente (pois o tratamento na Rússia e, segundo os médicos, sem esperança, e o tratamento no estrangeiro só por 2 meses também o sendo) minha vida perde todo o seu sentido, mesmo sem que se leve em conta minha filosofia esboçada acima. É duvidoso que se possa admitir como necessária uma vida passada em padecimentos incríveis, estando-se pregado numa cama sem movimento e sem possibilidade de realizar um trabalho qualquer. É por isto que digo que o momento chegou em que é indispensável por um termo a esta vida. Conheço a opinião geral do partido, contrária ao suicídio, mas suponho que todos aqueles que ficarem sabendo de minha situação não me condernarão por isto.
Além do mais, o professor Davidenko acha que a causa da repetição da minha polinevrite aguda é a emoção destes últimos tempos… Se estivesse com saúde teria achado em mim a força e a energia suficientes para lutar contra a situação criada no Partido, mas no meu estado atual, reputo insuportável uma situação em que o Partido tolera silenciosamente a sua exclusão de suas fileiras, apesar de estar absolutamente persuadido de que, cedo ou tarde, haverá no Partido uma crise que o obrigará a rejeitar aqueles que o conduziram a uma tal vergonha… Neste sentido, minha morte é um protesto contra aqueles que levaram o Partido a uma situação tal que ele não possa de nenhum modo reagir contra este opróbrio. Se me é permitido comparar o que é grande com o que é pequeno, direi que a importância do acontecimento histórico que é a sua exclusão e a de Zinoviev, expulsão que há de abrir inevitavelmente um período thermidoriano na nossa Revolução, e o fato que me reduzem depois de 27 anos de trabalho revolucionário nos postos responsáveis do Partido, a uma situação em que nada mais me resta a fazer do que me meter uma bala na cabeça, estes 2 fatos, torno a dizer, ilustram um só e único regime do Partido. Talvez que os dois acontecimentos, o pequeno e o grande juntos, produzirão o abalo que acordará o Partido e o fará parar no caminho que vai dar em Thermidor.
Sentir-me-ia feliz, se pudesse acreditar, que assim será, pois saberia então que não iria morrer em vão; entretanto, mesmo tendo a firme convicção de que a hora do despertar do Partido virá, não posso estar convencido de que ela já tenha soado agora… Entretanto, não duvido apesar de tudo de que a minha morte hoje seja mais útil que do que a prolongação de minha vida. Caro Liev Davidovitch, estamos ligados por dez anos de trabalho comum e, ouso, esperá-lo de amizade pessoal, e isso me dá direito de lhe dizer no momento do adeus, o que em você me parece ser uma fraqueza. Nunca duvidei da justeza do caminho traçado por você, que sabe que durante mais de 20 anos marchei com você, desde a “revolução permanente”. Mas sempre pensei que faltavam a inflexibilidade, a intransigência de Lenin, sua resolução de ficar, sendo preciso, sozinho no caminho que reconheceu como certo, na previsão da maioria futura, no reconhecimento futuro, por parte de todos, da exatidão desse caminho. Você sempre teve razão politicamente, a começar por 1905, e muitas vezes lhe contei ter ouvido, com os meus próprios ouvidos, Lenin reconhecer que em 1905 não fora ele mas você que tivera razão. Defronte da morte não se mente e o repito, agora, de novo…
No entanto muitas vezes você renunciou a sua retidão em favor de um acordo, de um compromisso, que sobreestimava. É um erro. Eu o repito, politicamente, você sempre teve razão e, agora, mais do que nunca. Um dia, o Partido o compreenderá e a História há de reconhecê-lo. Assim, não receie hoje se alguém se separar de você, nem sobretudo se muitos não vêm para o seu lado tão depressa quanto nós todos o desejávamos. Você tem razão, mas a condição da vitória de sua verdade está precisamente numa estreita intransigência, na mais severa rigidez, no repúdio de todo compromisso, exatamente como isto foi sempre o segredo da vitória de Illich [Lenin]. Por diversas vezes tive vontade de lhe dizer isto, mas só agora me decide a fazê-lo, na hora do adeus final. Duas palavras pessoais. Atrás de mim ficam uma mulher, uma filha doente e um rapazola mal-adaptados a uma vida independente. Sei que nada pode você fazer agora por eles. Sob este ponto não posso contar em cousa nenhuma com a direção atual do Partido. Mas não tenho dúvidas de que o dia não está longe em que você há de retomar o lugar que lhe é devido. Então, não se esqueça dos meus. Eu lhe desejo energia, uma valentia iguais às de que tem dado provas até o presente, e a mais rápida vitória. Eu o abraço. Fortemente. Adeus.
Moscou, 16 de novembro de 1927.
A. Joffe.
=
Nota:
A carta que se lê foi escrita pelo camarada A. Joffe, na noite do 15 para 16 de novembro de 1927 e dirigida a Trotsky. A vida de Joffe foi toda, até o seu último minuto, consagrada à causa da libertação da humanidade. Morreu aos 44 anos de idade. Ocupou no Partido e no Governo Soviético os postos de maior responsabilidade. Bolchevista desde 1900, foi depois de uma deportação na Sibéria, Presidente do Conselho Militar Revolucionário em 1917, depois tomou parte com Trotsky nas negociações de Brest-Litovsk. Em 1918 foi nomeado Embaixador dos Soviets em Berlim, dirigiu, com Tchitcherine, a comissão para as negociações com a Polônia e em seguida a delegação soviética na Conferência de Gênova. Foi o primeiro embaixador soviético em Pequim e depois no Japão. Foi quem assinou o tratado de paz entre o Japão e a União Soviética, quem dirigiu em Xangai (China) as negociações com Sun-Yat-Sen (o fundador do Kuomitang) e participou das negociações entre a Inglaterra e a URSS. Reduzido por uma polinevrite a uma invalidez quase completa, impossibilitando-o de tomar parte ativa nas lutas políticas de então Joffe não viu outro meio de ainda servir à causa da revolução – do que se matar, dando a sua morte uma significação precisa de protesto contra a exclusão de Trotsky do Partido e o regime de perseguição pessoal, adotado pela direção, na sua campanha contra a Oposição. A sua carta foi encontrada logo após sua morte sobre sua mesa. Não chegou, porém, às mãos de seu destinatário. Os seus funerais em Moscou, no dia 19 de Novembro, tiveram um caráter comovedor. Apesar de realizados nas horas de trabalho, compareceram milhares e milhares de operários, camaradas do Partido, delegações do Exército Vermelho. Tchitcherine falou oficialmente em nome do governo. Depois falaram diversos camaradas da Oposição, Rakovsky, entre outros, disse sobre seu túmulo, “ele partiu, quando compreendeu que era esta sua suprema maneira de servir ao Partido”. Por último, falou Trotsky, que, no meio de uma emoção brutal e dum silêncio indizíveis terminou o seu adeus dizendo: “Como tu o fez, juramos ir até o final – sem fraquejar – sob as mesmas bandeiras de Karl Marx e de Vladimir Lenin.”
=
Fonte: JOFFE, A. Última Carta para Leon Trotsky | 15 de Novembro de 1927 | Jornal Luta de Classe, Órgão Central da Oposição da Esquerda no Brasil, N.º 2, Ano 1, 2 de Junho de 1930.
Comentários