Dedicado a Carlos Zacarias que, como poucos, sabe que não há viver sem lutar.
Por Betto della Santa |
«Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (…) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é um privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos nunca estarão a salvo enquanto o inimigo vencer. E esse inimigo até os dias de hoje não tem nunca cessado de vencer.»
(Walter Benjamin, In: Teses sobre a Concepção de História, 1940, v/e.)
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As palavras de Walter Benjamin soam tal qual aviso de incêndio. Uma advertência inicial.
Não se nasce um Muhammad Ali Haj. Torna-se. Não à-tôa o seu nome de baptismo – seu “slave name” ou nome escravo – fosse, de todo, inteiramente diverso. Originalmente Cassius Marcellus Clay, Ali optou por homenagear o profeta Maomé, em sua reconversão para o Islã, seguindo às trilhas de muitos outros militantes radicais negros, do “Civil Rights Movement” norteamericano. Porém, distintamente de muitos outros, Ali assumiu para si plena responsabilidade pela recusa frontal a engrossar fileiras das tropas do exército estadunidense à Guerra do Vietnã. O “Black Power” ia ganhar o peso-pesado de muito mais que um ícone do esporte global. Ainda Ali mal havia começado. Seus anos de formação, família humilde, foram coetâneos à segregação racial. Não foi nada fácil. Mas sobre-viveu.
Nascido sob o nome de seu pai em Louisville, Kentucky, a 17 de janeiro de 1942, Ali conheceu o boxe por obra do acaso. Após ter tido sua bicicleta roubada foi, colérico, ao oficial de polícia. Acontece que este tira – Joe Martin – treinava boxe no centro comunitário de sua vizinhança. Após o roubo de sua bicicleta o então adolescente, 12 anos, contou a tal policial que ia, em suas palavras, ‘descer o cacete’ no ladrão. O oficial então disse que melhor era aprender a lutar antes. A bicicleta se perdeu nas calendas, mas as luvas vieram pra ficar. Sua ascensão seria meteórica. O Latim e o Inglês deste nome foram herança verbal dum homônimo abolicionista republicano. Desdendente de negros escravizados – do Sul das “Plantations”; ascendência madagascarenha e angloirlandesa –, Cassius pai foi pintor de letreiros e cartazes e, sua esposa, Odessa Clay, empregada doméstica. Cassius filho e Rudolph – seu irmão caçula – foram criados enquanto cristãos de tradição baptista.
O debute, amador, foi em 1954. As Luvas de Ouro de Kentucky, mais dois títulos nacionais, a condecoração da União Atlética Amadora e uma Medalha de Ouro de Peso-Médio – das Olimpíadas de Roma – vieram antes dos 18. De volta ao país, cheio de orgulho, por bater os então “adversários do EUA”, Rússia e Polônia, medalha no peito, reza a lenda que teria ido a um restaurante, no Centro, pedir um café e um hot-dog. “Nós não servimos pretos” – disse a garçonete –, “Eu também não os como”, retrucou Clay, “Apenas me traga o maldito sanduíche.” Não se sabe até hoje o quanto desta história é verdadeira. Mas Ali gostava de recontá-la, uma e outra vez, sempre aos risos. Como dizia minha vecchia nonna, «se non è vero è bene trovato.» O raio e altura de sua autoconsciência de raça e classe, sobretudo a antiguidade de seu compromisso político com uma visão de mundo radical, são os móveis de ainda haver polêmica sobre o início de seu percurso no boxe e no mundo dos homens.
Louça suja
Desde o início da sua juvenil carreira, então Clay, os circunlóquios e grandiloquências – nomes feios e língua solta –, faziam parte de sua luta. O golpear de seus punhos, e bailar de seus pés, já vinham acompanhados de uma prosa bem afiada. O seu adversário já foi “um homenzinho feio” e o Madison Square Garden, meca do esporte no EUA, chegou a ser “pequeno demais” para ele. O exagero retórico lembra ao de longe um Vladimir Maikóvski negro em sua Nuvem de Calças. São aspectos de toda uma personalidade que se foram moldando ao largo do tempo e do espaço. Se o homem transformado é produto das circunstâncias e da educação modificadas, também o educador precisa ser educado. No caso, autoeducado. Não é demais afirmar que a possibilidade efetiva para tais alterações merecem ser chamadas – com já o fez um então bem jovem Marx – «práxis revolucionante».
É importante que se o diga: esta sua norma de conduta não contou pontos a seu favor, de chofre, no início de sua trajetória. Chegou até mesmo a causar a ira coletiva, de aficcionados do esporte, algo de rejeição; muita antipatia. A anedota pode ser bastante ilustrativa deste comportamento. Após voltar de Roma com a medalha de ouro, convencido da necessidade de profissionalização, Clay insistiu em participar do centro de treinamentos de seu maior ídolo à época, Archie Moore. Chegou a encher a boca para dizer que nenhum sacrifício seria grande demais para um tal feito. Pois bem. O arranjo não durou duas semanas. O juveníssimo boxeur recusou-se a cumprir com tarefas como lavar as louças ou esfregar o salão. “Eu queria aprender a lutar. A única coisa que aprendi foi como limpar pratos. Quem já ouviu falar de lutador com mãos de lavar louça?”. Boca grande. A alma nunca fora nanica.
Já em 1963, o nosso ferino anti-herói da classe trabalhadora enfrentar-se-ia a ninguém menos do que o campeão dos pesos-pesados, Sonny Liston. E Liston não era lá flor que se cheirasse. Um personagem intimidador, para dizer o menos, pugilista de poucos amigos – sangue nos olhos –, com ficha criminal e ligações com a máfia. O ambiente dos ringues e seus arredores nunca foi o ponto mais alto do espectro da humanidade. As almas mais inocentes sequer podem imaginar o que se passa em sua cozinha. Liston destruiu o oponente ex-campeão, Floyd Patterson. E Clay era um azarão. Apesar disso o ritual prévio à luta, que já era todo um espetáculo muito antes de haver ESPN ou BandTV, foi Clay fazendo o circo de Liston pegar fogo. Atormentar era pouco. O baptista de Kentucky azucrinou a vida deste cinturão. “O grande urso” – disse – “feio e sujo”. “Até fede como urso”. Depois de batê-lo seu destino seria, aloprou Clay, “o zoológico de Miami”. Esta tal lábia, aliana, superava-se.
Seu batimento cardíaco foi de 54 a 120bpm no encontro final. Seu maior oponente era o medo. Após a pesagem – confronto olho-no-olho –, o tocar de luvas e instruções do juiz finalizadas, Clay chegou a gritar: “alguém vai morrer no ringue hoje”. Liston veio quente, furioso, quando soou o gongo. Mas não esperava a velocidade e a intrepidez que encontrou. A arte da elusão, o estilo inimitável e a força de conjunto se mostraram em seu vigor. Foram seis rounds, de altos e baixos, incluindo-se um baixo bem baixo, com algum artifício – vindo das luvas de Liston – para, supostamente, cegar o oponente. Clay chegou a implorar pra que seu treinador, Angelo Dundee, tirasse às suas luvas. Nada feito. O suor e as lágrimas lavaram-lhe os olhos a Clay. E Liston não logrou se recompor para uma sexta volta. Triunfante, Clay correu até o corner, a gritar, a plenos pulmões, em direção à imprensa esportiva: “Engulam as suas palavras. Eu sou o maioral. E eu sou o mais bonito!”.
A crítica das armas e as armas da crítica
Logo após esse ponto de viragem, o jovem de vinte e poucos anos, agora campeão profissional, decidiu mudar o seu nome para Cassius X. A letra ‘X’ – em seu caso – emulava o exemplo de Malcom X, líder negro que atentou para o fato de que a herança africanoamericana era de todo desconhecida, e que seus respectivos sobrenomes europeus, cada negro estadunidense singular, remetia a algo duma incógnita ancestral. Um ‘X’. Malcom X tornou-se mais que um exemplo de mestre: amigo, irmão; companheiro. Mas a reconversão de fé ao islamismo, em tudo coincidente com a adesão à política radical, teria maiores planos para o lutador do que ser um seguidor de X. “Nós conversamos, expressamos nossas visões um ao outro, mas ele tem voz própria”, diria X. Assim renasceu Muhammad Ali Haj, punhos em riste, como um novo homem: e com um nome de combate.
Já foram muitos os esforços nucleares dedicados – pela teoria marxista – para desvelar a dialética realmente existente entre religião e política, como para jogar fora ao bebê junto com a água do banho. A linguagem histórica, a herança nacional, os mitos fundadores, a cultura, enfim, conta. E conta muito. Não é no espaço de um ensaio de homenagem, deste tipo, que teremos o tempo mais que necessário para falar a este respeito, em geral, ou sobre o Islã negro e o radicalismo político do Norte das Américas – em confluência durante os assim-chamados “street-fighting years” –, em particular. Mas o mínimo que nos cabe é dizer que assim como o maoísmo serviu ao Partido dos Panteras Negras para a Autodefesa na esplendorosa palavra-de-ordem “All power to all people” e o panafricanismo dominou o vocabulário negro de outrora, o Islã desempenhou, sim, um determinado papel na história das ideias e, mutatis mutandi, nas ideias de história. (No Brasil, em larga medida, a teologia da libertação deu forma à vocalização política do ABCD operário na escalada grevista de 79.)
Os anos das barricadas – que abalaram o mundo, nas muito rebeldes décadas de 60 e 70 – também ajudaram a moldar sua geração. Um rebelde. Subversivo. Insubordinado. Sua autoconfiança era inabalável. O talento inimitável com as palavras – de estilo tão destacado quanto seu boxeio – por vezes soa como a impostação radical do rythm’n’poetry político, algo de um rap engajado. Por outras sabe a soul melódico, mais para a balada romântica. A canção popular, o sermão de missa, o discurso político – e muitas outras matrizes –, formaram todo o espírito de uma época. Mas seria uma grosseira reificação contextual fundir suas notas, criativas e originais, à música de fundo. O orgulho selvagem com que bateu seus adversários deu origem a uma forma de arte: “Eu já lutei com um jacaré. Já bati numa baleia. Só na semana passada eu matei um rochedo; machuquei uma pedra; hospitalizei um tijolo. Eu sou mau. Eu sou capaz de fazer um remédio ficar doente.” Sua paleta de cores e máscara de texturas ia como que a cantar – de-cor’ – uma folia de reis ou a pintar – em aquarela – uma rosa amarela. Do registro lúdico ao insólito. Da voz de bardo à de pregador. Ora político, ora poético. Aqui. Ali. Sem lugar à monotonia. Nem hora ao tédio.
“Por qual razão deveria combater no Vietnã”, desafiou Ali, “se é aqui que me dizem crioulo?”. Foi a desobediência civil ativa à conscripção militar obrigatória o que elevou sua voz individual à escala continental de toda uma época histórica. A maior de suas lutas se deu fora dos ringues. Um longo e penoso processo uniu o Capitólio, o Pentágono e a Casa Branca numa santa cruzada contra a voz transcrescida, em quantidade/qualidade, a ameaçar engrossar-se em coro de muitos. “Dane-se o dinheiro do homem branco!”. “O boxe não é nada!”. O juiz Joe Ingraham conferiu a sentença máxima: 5 anos de prisão e multa de dez mil dólares por desacatar a força da lei. Com o fracasso da Ofensiva Tet e crescente mal-estar doméstico o establishment não poderia permitir ao movimento antiguerra qualquer trégua, quanto menos uma voz altiva e um nome de combate. Vencer o exílio, e contornar o processo, foi uma batalha de ideias ganha – nas ruas, nas praças, e nas cortes.
«Qual é meu nome, seu tolo?»
Foi com essa sentença que Ali nocauteou Floyd Patterson. Seu conteúdo diz muito mais do que expressa uma frase. Da mesma forma, o combatente se recusou a vergar a espinha. Cortejar os poderosos. Ou dar o seu braço a torcer. O seu nome, que a Justiça do EUA se negava a reconhecer, correu mundo sob sua voz. Em seu nome: protestos em Guiana, greve de fome no Paquistão, mobilização no Egito, atos em Ghana e um solitário piquete do exército de um homem só – o aficcionado torcedor angloirlandês, Paddy Monaghan – na Embaixada de Londres. E mais de 20 mil assinaturas, ao redor do mundo, pela restauração do título de campeão. A ‘guerra à guerra’ era o seu pano de fundo e, no plano mais geral, a sua razão-de-ser. Com esta atitude radical Ali deu lugar a uma grande recusa. Disse não a ser a voz para a forma-mercadoria. À coisificação dos homens. Ou à perdição do mundo. E rejeitou dar nome ao conformismo, ao consumismo e ao mais-do-mesmo. E pagou o preço.
É impossível descrever, em palavras – ou narrar, em prosa –, a beleza e dignidade próprias de um combate à la Ali. Sua forma de lutar é única. Irrepetível. Ali não levantava a guarda diante de seus oponentes. As defesas baixas iludiam o adversário. Seus pés ligeiros mal tocavam o chão. São já banais lugares comuns da imprensa especializada dizer sobre o flanar de Muhammed e a arte da esquiva. Aparentemente preso às cordas do ringue, Ali tinha o vigor de um leão africano. Mesmo quem deteste o esporte, este ou qualquer outro; ou abomine às lutas profissionais, esta ou qualquer outra; reconhece o valor intrínseco, a excepcionalidade incontestável, deste lutador. Por essa razão, dentro ou fora dos ringues, Ali foi um dos grandes. Em muitos aspectos, como se diz acima do Rio Grande, “maior que a vida”. Reavivou a aposta da estratégia. Animou o Fogo de Prometeus. E Ali foi um vencedor.
A luta por sua memória não há de ser fácil. Durante muitos anos Ali foi apresentado como uma espécie de Michael Jordan do boxe, isto é, tão-só “o melhor dos melhores”. O Mal de Parkinson e a perda da fala, o aspecto ecumênico de sua figura e o piedoso ideal de suas trêmulas mãos, já no final do Séc.20 e início do Séc.21, contribuíram para a cirúrgica operação iniciada pela mídia. O choque sceptical, que selou destino à falência pulmonar, contudo, não pode calar fundo um eco – bem para lá dos tempos: a sua confiança de carácter, a sua coragem política, o seu humor espirituoso, a sua astúcia intelectual, a sua firmeza de propósitos, o alcance de sua voz e a força do seu nome. Lucky charm. A imprensa internacional desejaria re-apresentá-lo via canonização no altar dos esportes. Mas Ali foi o incréu da guerra de deuses x monoteísmo de valores do mercado. Não é justo que Globo e Folha imiscuam a sua imagem à de um vendilhão do templo – tal qual o é um Pelé da vida.
Ali foi o responsável por fazer convergir às águas da militância dos campi universitários e de sectores médios a todo o caudal de radicalidade do black power e da classe trabalhadora norteamericana. Se esmerou em reunir o flutuar de beija-flores e borboletas à ferroada de vespas e abelhas. A velocidade e a resistência. Fez sínteses improváveis, travou batalhas impossíveis e escarneceu às próprias dificuldades. Riu, com fortaleza e candura, de si mesmo. E não cabe em palavras.1 Em 17 de Janeiro de 1942 nascia Cassius Marcellus Clay. A 3 de junho de 2016 morreu Muhammad Ali Haj. Ali nunca baixará a guarda e, por isso, permanecerá íntegro a si mesmo – one of a kind – por uma razão bastante simples: Ali nunca chegou a levantá-la. Mas isso não quer dizer que deporá as armas. A batalha de Ali faz parte de uma guerra que não acabou. Ali foi, mais que um homem, o nome e a voz de uma força política poderosa. E perigosa. Como cantou Caetano Veloso: Impávido Ali. E assim deve ser relembrado. Ali é dos nossos. Porém não estará a salvo enquanto os vencedores não cessarem de vencer. A nós, mais do que ser bons e justos cabe, outrossim, derrotar a quem deve ser derrotado. E, também nisso, reverberar e ressoar Ali que, além de “mais bonito” e “o maioral” – asas e ferrão –, bateu a seus inimigos. Golpe a golpe, e verso a verso.
Lembrou-me, Ali, às algo proféticas – e (des)armadas – palavras do velho Trotsky. Escuta só:
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«É difícil prever o espectro da autodeterminação a que o homem do futuro poderá alcançar (…). O homem se tornará incomensuravelmente mais forte, mais perspicaz, mais polido; seu corpo terá uma forma mais harmônica, seus movimentos serão mais dotados de ritmo, sua voz será mais musical.»
(Leon Trotsky, In: Literatura e Revolução, 1924, v/e.)
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Nota:
1 Dave Zirin é como nosso Juca Kfouri, um jornalista esportivo para além da máquina de moer gente. Tem belos livros, e muitos artigos por conferir, já seja a respeito de Ali, do esporte de combate ou até mesmo um todopoderoso volume, de-há dois anos, intitulado: O Brasil dança com o Diabo: Copa do Mundo, Olimpíadas e luta pela democracia. Vale a pena ver mais de perto. É ele quem nos aconselha a não comprar o peixe ao preço que se vende.
Ficha:
Editora Lazuli
272pp. total
R$ 39,90
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