Leonardo M. Leite e Patrick Galba de Paula |
Publicado em 2015, o novo livro de Lucia Pradella, Globalisation and the Critique of Political Economy, tem uma proposta original e abrangente: mostrar que o projeto teórico de Marx, cujo ápice é a redação de O Capital, se traduz numa “crítica revolucionária do capitalismo como um sistema imperialista”[1] (p. 11). O objetivo de fundo do livro é fundamentar a compreensão do capitalismo como totalidade e, portanto, verificar se o projeto de Marx é capaz de superar o chamado nacionalismo metodológico e o eurocentrismo. Ela tenta refutar uma tese clássica no marxismo, para a qual O Capital trataria de uma economia nacional fechada e que o mercado mundial seria analisado em conjunto com as crises apenas no quinto livro da famosa sequência apresentada por Marx na Introdução dos Grundrisse de 1857-8[2].
De uma forma geral, o argumento de Pradella poderia ser traduzido como uma tentativa de buscar em Marx as bases para a construção de um capítulo específico da teoria do desenvolvimento desigual e combinado a partir das tendências expansivas do capital e do decorrente processo concreto de formação de um mercado mundial, como sua totalidade e limite (e, logo, também para uma teoria marxiana do imperialismo). Este desenvolvimento teórico, que Pradella demonstra de forma bem sucedida já estar presente em Marx (ainda que de forma incompleta), permitiria uma abordagem da economia mundial a partir da teoria do valor e, consequentemente, uma superação do empirismo e do dualismo teórico-histórico que muitas vezes caracterizam os estudos do tema (incluídos aí boa parte dos estudos marxistas).
Um dos aspectos mais instigantes do livro é a forma como a autora constrói seu argumento, em dois momentos distintos. Em ambos, Pradella convida o leitor a entrar no laboratório intelectual de Marx através do exame de seus cadernos de estudo, isto é, com uma hipótese interpretativa bem definida, ela vasculha seus fichamentos e anotações tal qual redigidos por ele e publicados pela MEGA2. O primeiro momento, desenvolvido nos capítulos um a três, discute como Marx se apropriou criticamente de suas principais influências – a economia política inglesa e a filosofia alemã, especialmente Ricardo e Hegel. Para além do combate de Marx, há, aqui, o interesse da autora em verificar o quão relevante é a perspectiva totalizante para essas teorias.
No segundo momento do argumento, nos capítulos quatro e cinco, Pradella aponta como Marx desenvolve sua própria crítica da economia política a partir do seu exílio em Londres na década de 1850 culminando com a redação d’O Capital. Na interpretação da autora, o que marca a transição entre esses dois momentos é a rejeição de Marx à teoria quantitativa da moeda: a partir disso, segundo ela, o autor foi capaz de perceber a dimensão internacional da lei do valor e, portanto, construir seu sistema teórico levando em consideração o capitalismo enquanto uma totalidade.
Ainda nos anos 1840, Marx esboçou uma crítica a Friedrich List que permitiu a ele enxergar que as leis de funcionamento do capitalismo funcionam em escala global e que, em função disso, o proletariado deve ter uma perspectiva internacionalista. Para Marx, o Estado representa uma “instância do poder de classe” (p. 77) da burguesia que, como classe internacional, como burguesia global, se fraciona em seções nacionais que, por sua vez, tem seus interesses representados no Estado-nação. Pradella avançará numa crítica também às abordagens marxistas do Estado (como no caso do debate Milliband versus Poulantzas), que em grande parte terminam por secundarizar, do ponto de vista da teoria do valor, o papel do Estado na reprodução social (p. 155-157). Os apontamentos de Marx indicam que a concorrência entre distintas burguesias é subsumida ao seu antagonismo global com o proletariado. Portanto, há que se distinguir duas esferas: a concorrência intra-classe (entre distintos capitais) da dominação entre classes (capital contra trabalho), instrumentalizada pelo Estado-nação. Para Pradella, esta noção de Estado está “dentro de sua ampla crítica do capitalismo como sistema imperialista” (p. 77)[3]. Ainda na crítica a List, Marx lança luz sobre o desenvolvimento desigual e combinado ao afirmar que as diferentes formas, etapas, de desenvolvimento capitalista refletem a dinâmica global do sistema. Há, aqui, como aponta a autora, uma teoria primitiva da revolução permanente (p. 77-8).
No exílio em Londres a partir do verão de 1849, Marx concentra-se no estudo da economia política. Os primeiros cadernos redigidos ali estariam marcados por aquilo que Lucia Pradella classifica como um momento fundamental na evolução do pensamento de Marx sobre o capitalismo: a rejeição da teoria quantitativa da moeda, permitindo a ele superar a teoria ricardiana do comércio internacional.
Para Pradella, a crescente preocupação de Marx com a acumulação em escala mundial, tal como expressa nos cadernos de Londres, está associada com uma “noção de revolução permanente em um plano genuinamente internacional” (p. 122). A rejeição de Marx da teoria quantitativa da moeda o faz perceber a primazia histórica e conceitual do mercado mundial dentro da teoria do valor trabalho: por um lado forneceu as condições materiais para a acumulação de capital e, por outro, resulta da própria noção de estranhamento presente no capital. Como ficará claro n’O Capital, o capital não pode, conceitualmente, estar conformado dentro de determinadas fronteiras rígidas, fator que faz com que a autora defina a teoria do valor trabalho como a teoria que “expressa o processo de internacionalização do capital” (p. 119) e, portanto, não é nem estritamente nacional nem internacional.
Ao longo da escrita dos manuscritos preparatórios para sua obra-prima, Marx se questiona sobre a ideia de capital em geral que estava presente nos Grundrisse e, com isso, refaz o plano inicial de cinco livros, tal qual expostos na Introdução de 1857-8 (seis no prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política), para apenas um, sobre o capital. Com isso ele supera, nos Manuscritos de 1861-3, a distinção entre capital e concorrência e passa a incorporar na exposição do único livro questões que seriam tratadas nos cinco livros originalmente planejados. Portanto, em um ponto pouco divulgado do pensamento marxiano, Pradella busca demonstrar que Marx teria abandonado sua própria ideia de que um último livro seria sobre mercado mundial[4].
Marx desenvolve sua teoria da reprodução nos Manuscritos de 1861-3 abstraindo de fatores oriundos da circulação. Considera uma economia “fechada e isolada” que “implicitamente coincide com o mundo do comércio”: esta abstração, para Pradella, “é a única forma de conceituar o mercado mundial, o qual inclui os mercados internos e externos de todas as nações participantes dele” (p. 147), isto é, a totalidade das trocas. Em outros termos, Marx adota relações de produção globais em sua teoria da reprodução. O resultado dessa análise é a percepção da tendência à universalização do modo de produção capitalista, que atinge seu ápice com a lei geral da acumulação na seção da reprodução. Como se sabe, a lei geral implica a tendência à concentração, ou seja, a tendência ao “controle da totalidade das esferas de produção” pelo capital (p. 148).
A teoria do valor n’O Capital pressupõe sua teoria da reprodução nos Manuscritos de 1861-63. Esta demonstra que o capital é, inteiramente, trabalho não-pago, que lhe permite afirmar que seu conteúdo real é apropriação de valor (ou de trabalho) sem contrapartida, ou, em outros termos, a exploração, definida dentro da esfera da produção. O capital, como produto do trabalho assalariado, só pode existir historicamente tendo como premissa a acumulação primitiva, ou a dissociação dos produtores dos meios de produção. Por outro lado, sua origem lógica manifesta-se a partir dos desdobramentos do valor cujo momento culminante está em sua terceira determinação como dinheiro mundial.
Se a teoria da reprodução de Marx localiza-se no nível de abstração da totalidade capitalista, ou, o que é a mesma coisa, do mercado mundial, a lei geral da acumulação tem que ser lida como uma lei geral da acumulação em escala global. A polarização entre acumulação de riqueza e pauperismo contida nela abrange, portanto, seguindo a ênfase de Pradella, todo o modo de produção capitalista: é o atestado da tendência de expansão do sistema. A tendência à concentração e centralização eleva as possibilidades de mobilidade do capital, potencializando maior concentração. Portanto, tendencialmente, a lei geral implica que o capital integra e subsume outras formas de exploração não-capitalistas.
A lei geral ainda resulta, na interpretação de Pradella, na tendência à pauperização absoluta da classe trabalhadora mundial. Considerado globalmente, o aumento do exército industrial de reserva aumenta a concorrência entre trabalhadores, reduzindo salários e aumentando jornadas de trabalho, em um processo que se alimenta da redução da demanda por força de trabalho, tornando-se precondição para a elevação futura desse exército e resultando na pauperização progressiva (portanto, absoluta) da classe trabalhadora mundial, composta de empregados, subempregados e desempregados. A formação dessa classe mundial resulta da universalização da cooperação do trabalho e serve de premissa para a revolução proletária: “o movimento de superação revolucionária da sociedade atual” é o comunismo, completamente distinto, portanto, de um ideal utópico. Nos propósitos políticos de Marx, o próprio O Capital integra esse movimento.
O reconhecimento de que a lei do valor tem uma dimensão “inerentemente internacional” e que a análise de Marx n’O Capital, Livro I, está no nível de abstração do mercado mundial, permite a Pradella concluir que a acumulação de capital é um processo imperialista. O valor produzido ao redor do mundo tende a ser apropriado pelos centros mais competitivos, seja através do repatriamento dos lucros, da troca desigual entre nações com diferentes produtividades ou, até mesmo, da extração de valor de setores não capitalistas via acumulação primitiva. A acumulação de capital envolve múltiplos padrões de desenvolvimento desigual e combinado, subordinados, sempre, à lógica unitária do capital que interliga as variadas formas de exploração, opressão e expropriação ao redor do mundo.
Trata-se, sem dúvida, de referência obrigatória para os estudos sobre desenvolvimento, “globalização”, imperialismo e da chamada Economia Política Internacional, que pretendam realmente fundamentar-se na teoria de Marx.
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Referências:
Callinicos, Alex (2014). Deciphering Capital. Londres: Bookmarks.
Marx, Karl (2011). Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica à economia política. São Paulo: Boitempo.
Pradella, Lucia (2015). Globalisation and the Critique of Political Economy: New Insights from Marx’s writings. Abingdon: Routledge. ISBN: 978-0-415-74410-2 (impresso); ISBN: 978-1-315-81316-5 (ebook)
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Notas:
* Este texto é uma versão adaptada da resenha publicada no número 43 da Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), de fev-maio de 2016. O original pode ser acessado aqui: http://revista.sep.org.br/index.php/SEP/article/view/186
[1] Para tornar a leitura mais fluida, optamos por traduzir livremente todas as citações.
[2] Ver, a esse respeito, Marx (2011, p. 54-61).
[3] Note-se que a crítica de Marx a List poderia ser lida como uma crítica avant la lettre a todo um setor do marxismo do século XX que afirmou uma preponderância do “político” na constituição da economia mundial (como a chamada monopoly capitalism school de Baran e Sweezy e setores ligados ao estalinismo).
[4] Entretanto é importante notar que, conforme apontou recentemente Callinicos (2014, pp. 54-64), Marx parece manter mesmo nos manuscritos de redação do Livro III de o Capital a visão de que algum tipo de concretização da teoria do valor seria necessária para tratar de temas que também dizem respeito ao mercado mundial.
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