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TEORIA

O livro maldito da burocracia soviética

Luis Leiria* |

“Vida e Destino” é um caso raro de livro sequestrado durante décadas. O livro, não o autor. Vassili Grossman nunca foi preso, mas a sua obra-prima foi-lhe arrancada das mãos pelo KGB,  que ainda se esforçou por encontrar todas as cópias e vestígios que permitissem reconstituir o romance: os agentes da polícia política da URSS apreenderam rascunhos e notas de Grossman, vasculharam a casa da secretária que o datilografara, de onde levaram até as folhas de papel carbono usadas e as fitas de tinta da máquina de escrever, e chegaram até a escavar o quintal da casa do editor de Grossman à procura de outras cópias de uma obra que o regime considerara maldita.

“Este livro só será publicado daqui a 250 anos”, exclamou um dirigente da União dos Escritores depois de ler o manuscrito. E, numa reunião com o próprio Grossman, o então ideólogo do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Suslov, explicou, numa frase lapidar, os motivos da rejeição: “Por que iríamos adicionar o seu livro às bombas atómicas que os inimigos se preparam para lançar contra nós”?

Vivia-se o ano de 1962, Joseph Stálin morrera nove anos antes e em 1956 realizara-se o famoso XX Congresso do PCUS em que Khruschov denunciara num relatório secreto o “culto à personalidade” ao falecido secretário-geral. Pairava uma ilusão de abertura interna na qual caiu o ucraniano de origem judaica Vassili Grossman, ao entregar para publicação o romance a que dedicara os últimos dez anos da sua vida.

Hoje, basta ler uns poucos capítulos de “Vida e Destino” para se ter a certeza de que a gerontocracia burocrática instalada no Kremlin jamais admitiria a sua publicação, mesmo depois do XX Congresso.

“Não há sentido, não há verdade na minha situação atual, de liberdade física, se o livro ao qual dediquei a minha vida está na prisão, pois não o reneguei, e não o renegarei (…) Peço liberdade para o meu livro”, apelou Grossman numa carta enviada ao secretário-geral, Nikita Khruschov. A resposta, definitiva, foi dada pelo já citado Suslov, numa audiência que concedeu ao escritor: “É impossível publicar o seu livro, e ele não será publicado.”

Felizmente as previsões do dirigente da União dos Escritores demonstraram-se erradas. Não foram precisos 250, mas cerca de 18 anos até que a primeira edição de “Vida e Destino” fosse publicada em 1980, em russo, no exterior. Para isso contribuiu a precaução do próprio Grossman, que confiara duas cópias a pessoas de quem o KGB não desconfiou; mesmo assim foi necessário um mirabolante processo de microfilmagem e a colaboração do físico dissidente Andrei Sakharov para que a obra cruzasse fronteiras. Mas Grossman não chegaria a ver o seu romance maior nas livrarias: morreu em 1964 de cancro.

A primeira tradução de “Vida e Destino”, em francês, saiu em 1983, seguiu-se a tradução inglesa em 1985, e na URSS a obra foi finalmente publicada na era Gorbachov, em quatro números da revista Outubro, com uma edição mais completa saindo em 1988. A editora D. Quixote publicou a primeira tradução em português em 2011 e a editora Alfaguara do Brasil seguiu-a em 2014.

Amplo panorama

Romance monumental de quase mil páginas, “Vida e Destino” apresenta um amplo panorama da União Soviética nos anos de 1942 e 43, quando as tropas invasoras da Alemanha nazi, que até então tinham penetrado no território da URSS como faca na manteiga, se atolaram na cidade de Stalingrado, numa luta cruel rua a rua, casa a casa, que durou um pouco mais de sete meses. Finalmente, uma contra-ofensiva do Exército Vermelho cercou os invasores e forçou a sua capitulação. Esta batalha, ponto de viragem da guerra, foi coberta por Grossman enquanto correspondente do jornal Krasnaya Zvezda (Estrela Vermelha), do Exército Vermelho, e é um dos cenários principais de “Vida e Destino”. Mas a história desenvolve-se em múltiplos locais: os campos de concentração nazis e os de trabalhos forçados da União Soviética, o sinistro campo de extermínio de Treblinka, as estepes da Calmúquia, as cidades de Kazan, Moscovo, Leningrado e Berditchev (cidade natal do autor) entre muitos outros.

A trama é tecida em torno do casal Viktor Chtrum, físico nuclear, um alter-ego do autor e a sua mulher Liudmila Chápochnikova, a mãe e o ex-marido desta, as suas irmãs e irmão e respetivos cônjuges… e assim membros da família ou com ela relacionados estão presentes em quase todos os cenários da história.

“Vida e Destino” é um romance sobre a batalha de Stalingrado, o cerco das tropas nazis à cidade, os combates casa a casa, a resistência feroz das tropas e do povo soviético ao invasor germânico. Grossman acompanha os confrontos até ao contra-ataque relâmpago das tropas soviéticas que, num movimento em pinça, cercaram o 6º Exército do poderoso general Paulus, cortaram-lhe as linhas de abastecimento e forçaram as tropas germânicas à capitulação, contra a vontade de Hitler. As páginas sobre Stalingrado são um dos relatos mais vivos e realistas jamais escritos, porque durante quatro meses Grossman esteve presente no campo de batalha, e a maior parte do tempo no seu ponto mais crítico, a margem direita do Volga, escrevendo para o Estrela Vermelha. Por entre os escombros da cidade incendiada, demolida, transformada em cinzas, onde as paredes dos edifícios ainda de pé eram “quentes como os corpos das pessoas que morreram num calor terrível e ainda não arrefeceram”, onde os sobreviventes viviam nas caves, Grossman ganhou a simpatia dos soldados, que o viam como um deles, e escreveu as mais fortes reportagens que emocionaram o país. Era comum, nas próprias barricadas de Stalingrado, que se formassem grupos para ler em voz alta o exemplar do Estrela Vermelha que acabara de chegar.

“Vida e Destino” é também um livro sobre o genocídio dos judeus, escrito com a emoção de quem perdeu a mãe, fuzilada pelas tropas nazis quando estas aniquilaram toda a população judaica de Berdichev. Num capítulo dramático, o autor reconstitui a carta que gostaria de ter recebido da mãe. Grossman foi o primeiro a escrever sobre o campo de extermínio de Treblinka, baseado em depoimentos de camponeses e de sobreviventes, reconstituindo e expondo ao mundo o funcionamento da fábrica de morte que ali estivera instalada e que, por ordem de Berlim, fora arrasada pouco tempo antes, numa tentativa de ocultar a sua existência. Nunca ninguém, em nenhuma língua, publicara ainda algo semelhante, de tal forma que o artigo seria mais tarde lido no Julgamento de Nuremberga.

Este conhecimento permitiu que Grossman escrevesse uma das mais pungentes reconstituições do extermínio de multidões na imensa câmara de gás. Descreveu, pelos olhos de uma médica judia e de um menino órfão que ela tomara sob a sua guarda, como metodicamente eram encaminhados para o matadouro de concreto os grupos de milhares de pessoas: desciam do comboio, eram conduzidos aos vestiários onde todos se despiam, convencidos de que iam tomar banho, entrando depois no recinto da câmara que não tinha saída. É um capítulo hipnótico. Tal como aqueles homens, mulheres e crianças que caminham passivamente para a morte agarrados a uma ilusão de sobrevivência, não conseguimos deter-nos, prosseguimos a leitura até o desfecho, por mais agoniados que nos sintamos.

A obra de Grossman e a de Trotsky

Mas “Vida e Destino” é acima de tudo uma crítica demolidora da burocracia soviética, daqueles que, “encabeçados por Stálin”, foram “os construtores do novo estado soviético, do socialismo em um só país”, um novo regime “que triunfara na época da coletivização, da industrialização e da substituição quase total dos quadros dirigentes”, mas que não quiseram “renunciar às velhas fórmulas e noções ideológicas, embora elas tivessem perdido o seu sentido”. (Se não forem referenciadas de outra forma, todas as citações a partir daqui são da edição brasileira de “Vida e Destino”).

O romance maior de  Vassili Grossman merece figurar ao lado de obras como “A Revolução Traída”, de Leon Trotsky, na desmontagem cirúrgica da degeneração burocrática. Aquilo que Trotsky fez com as ferramentas da análise marxista, Grossman faz através dos seus personagens, da descrição de situações, da identificação omnipresente do poder dos burocratas, esses funcionários que “apreciavam e valorizavam os bens materiais”, e para quem “o sacrifício revolucionário lhes era alheio ou não constituía a essência do seu caráter”.

Esclareça-se desde já que Grossman nunca foi trotskista – ou não teria sobrevivido às perseguições e à tentativa de publicar a obra maldita – mas na já citada reunião com Suslov foi acusado por este de defender Trotsky, no meios de outras acusações: “O seu livro contém comparações diretas entre nós e a Alemanha nazi. Contém uma imagem falsa do nosso povo e dos comunistas. Como poderíamos ter triunfado na guerra com esse tipo de pessoas que descreve? Fala favoravelmente no seu livro sobre religião, sobre Deus, sobre o catolicismo. Defende Trotsky. Muitas vezes apresenta sérias dúvidas sobre o nosso sistema soviético.” Esta transcrição da fala de Suslov foi feita, de memória, pelo próprio Grossman, após a reunião. Foi publicada no livro “The Life and the Fate of Vasily Grossman”, de John e Carol Garrard (a tradução dos extratos, do inglês, é minha).

A verdade é que Trotsky só é referenciado no livro diretamente a propósito do personagem Krímov, um velho bolchevique contemporâneo dos grandes dirigentes da revolução que vira uma vez um texto de sua autoria elogiado por Trotsky: “Puro mármore”, teria dito o fundador do Exército Vermelho. Apesar do elogio, Krímov sempre fora fiel à linha do partido: “A verdade de Lenine não estava com eles: Bukhárin, Rikov, Zinoviev. Também não estava com Trotsky”, reflete ele a certa altura. “Eles se enganaram. Nenhum deles se tornou o continuador da causa de Lenine. E o próprio Lenine, em seus últimos dias, não sabia nem compreendia que sua causa se tornara a de Stálin.” A simples frase elogiosa de Trotsky, porém, perseguiria Krímov e seria um dos motivos que levaria à sua prisão na Lubianka, a célebre sede da polícia política.

A raiz do burocratismo é quando o operário sofre no seu próprio Estado

Mas se o autor de “A Revolução Traída” é apenas marginalmente referido (não seria de esperar outra coisa num livro que Grossman tinha esperanças de publicar em 1962), a caracterização do fenómeno burocrático é muito próxima à de Trotsky. Vejamos um exemplo retirado do diálogo entre dois tenentes-coronéis do Exército Vermelho em plena estepe dos calmucos, um povo de origem mongol, na véspera da contra-ofensiva soviética sobre o exército nazi. Ambos são da chefia-de-Estado da artilharia: Darenski fora enviado para inspecionar os exércitos que se preparavam para entrar em ação, e Bova era o comandante do Exército da estepe, no flanco sudoeste do front de Stalingrado.

“Sabe, a burocracia não é piada, em tempos de paz já levava as pessoas a fazer sabe Deus o quê. Mas, nas condições do front, pode ser ainda pior”, começa Bova. “Ouça um caso de uma unidade aérea: um piloto pulou de um avião em chamas que tinha sido abatido por um Messer e conseguiu sobreviver, mas com as calças queimadas. Só que não entregaram calças para ele! Foi um escândalo, o administrador adjunto se recusou, disse que o prazo de uso da outra não tinha vencido, e fim de conversa! O piloto ficou três dias sem calças até o caso chegar ao comandante da unidade.” Darenski desvalorizou o caso, dizendo que se tratava de uma ninharia, um detalhe, para depois explicar o que ele considerava sério:

“O burocratismo é horrível quando um soldado do Exército Vermelho, com sua metralhadora, defende sozinho uma colina contra setenta alemães, detém a ofensiva, morre, o Exército se curva, tira o chapéu para ele, e a sua mulher tuberculosa é expulsa do apartamento sob os gritos do presidente do soviete regional: fora, sua sem-vergonha! Burocracia é quando um homem recebe a ordem de preencher 24 formulários e, no final das contas, reconhece numa reunião: ‘Camaradas, não sou um dos nossos.’ Quando um homem diz: sim, sim, o Estado é operário e camponês, mas meu pai e minha mãe são nobres, parasitas, degenerados, ponham-me para fora que vai estar tudo certo.”

Nessa altura, a conversa parece azedar, porque Bova discorda do interlocutor e afirma que não considera essa atitude burocrática: “O Estado é operário e camponês, dirigido por operários e camponeses. O que isso tem de mau? É justo.”

E acrescenta: “Veja, sou de origem operária pura, meu pai era operário, meu avô era operário. Meu formulário é cristalino. Contudo, antes da guerra eu também não prestava.” Por que não prestava?, indaga Darenski. “Não vejo burocratismo se o Estado operário e camponês se precavê contra os nobres. Mas por que antes da guerra vieram atrás de mim, um operário? Não sabia se ia escolher batatas nos armazéns de frutas e legumes ou se ia varrer rua. E eu não tinha feito mais do que exprimir um ponto de vista de classe: critiquei a chefia, que vivia bem demais. E daí foram para cima de mim. Aqui, para mim, reside a raiz principal do burocratismo: quando o operário sofre em seu próprio Estado.”

Darenski sente que a conversa chegou ao ponto decisivo, e que afinal o desacordo entre os dois é menor. E explica-se: “Em que ponto o senhor se equivoca? É verdade que não se admitem pobres no senado da burguesia, mas, se um homem pobre se tornar milionário, ele vai entrar no senado. Os Ford começaram como operários. Nos nossos postos de comando não se admitem burgueses e latifundiários, e isso é certo. Mas colocar a marca de Caim em um trabalhador só porque seu pai ou avô foram cúlaques ou sacerdotes é uma coisa completamente diferente. Aí não tem ponto de vista de classe. E você acha que na minha época nos campos eu não vi trabalhadores de Putílov e mineiros de Donetsk sofrendo? Aos montes! Nosso burocratismo é horrendo se você pensar que ele não é uma excrescência no corpo do Estado; uma excrescência é possível cortar. Ele é horrendo se você pensar que o burocratismo é o próprio Estado.”

Temos assim a defesa de que a raiz principal do burocratismo é o operário sofrer no seu próprio Estado, e que a burocracia deixou de ser uma excrescência para ser o próprio Estado – o diálogo reflete evidentemente a posição de Grossman e explica porque Suslov acusava o escritor de defender Trostsky.

Marca de Caim

O diálogo entre Darenski e Bova aflora outra característica da burocracia stalinista: a obsessão de classificar as pessoas pela sua origem social, questão obrigatória nos formulários (era normalmente a pergunta 6) tão caros à burocracia e que todos os cidadãos tinham de preencher inúmeras vezes ao longo da sua vida. A pergunta desdobrava-se: origem social do pai e da mãe, dos pais da mãe e do pai, origem social da esposa, dos pais da esposa. E ainda: se for divorciado, origem social da ex-mulher e o que os pais dela faziam antes da Revolução.

Há uma passagem do romance em que o principal protagonista, o físico nuclear Viktor Chtrum, é forçado a preencher mais uma vez um enorme formulário, “o rei dos formulários”, que inquiria tudo sobre os seus pais e os da sua mulher, os avós, por que o pai viajara a Berlim em 1910… Os superiores do cientista não se preocupavam em saber das condições de trabalho ou dos rumos da sua investigação, reflete ele, mas sim em obter informações em nada relacionadas com a sua função. Questões, aliás, a que o cientista já respondera em formulários anteriores que certamente estavam sepultados nalgum arquivo dos burocratas. Na história do romance, isto ocorre num momento em que Chtrum sente que o chão lhe está a fugir dos pés, apesar de ter resolvido de forma brilhante um problema que vem dar um rumo novo a toda a física das partículas.

Quando chega à pergunta seis, escreve: “pequeno-burguês”. Mas depois revolta-se e compara esta questão com a que os nazis faziam em relação à nacionalidade. Ponderando que considerava a distinção social “moral e justa”, ao contrário da distinção nacional, Chtrum observa que a questão dos formulários nem sequer era saber se quem os preenchia era mercador, sacerdote, nobre.

“A questão são os filhos e netos deles. O que é isso? São nobres de sangue, assim como os judeus são mercadores e sacerdotes de sangue? Que estupidez. Sófia Peróvskaia [militante da organização revolucionária Naródnaia Vólia, que participou do assassinato do czar Alexandre II e foi a primeira mulher condenada na Rússia por terrorismo] era filha de general, aliás, não só de general, como de governador. Acabem com ela! E Komissárov, o lacaio político tsarista que capturou Karakózov [o primeiro revolucionário a atentar contra a vida de um czar] também teria respondido à sexta pergunta como ‘pequeno-burguês’. Teria sido aceito na universidade, confirmado no posto. Pois Stálin dissera: ‘O filho não responde pelo pai.’ Stálin, contudo, também dissera: ‘A maçã não cai longe da árvore.’ Enfim, pequeno-burguês é pequeno-burguês.”

Grossman não quis ir mais longe, mas poderia ter citado que o pai de Lenine era professor do Instituto para Nobres, exclusivamente frequentado pelos filhos da nobreza, que os pais de Dzerjinski pertenciam à antiga nobreza polaca, e que o pai de Kollontai era um general descendente de uma família de cossacos ucranianos oriunda do século XIII. O pai de Stálin, como é bem conhecido, era sapateiro.

O burocrata talentoso e traiçoeiro

O talento de Grossman para expor o fenómeno burocrático tem um dos seus momentos altos no personagem de Dementi Guétmanov, inspirado em Nikita Khruschov.

Enquanto militante, Guétmanov nem participara da guerra civil, nem fora preso, nem mandado para a Sibéria. A sua carreira no partido começou quando foi mobilizado para os órgãos de segurança partidários e a partir daí subiu fulgurantemente. “Na sua vida”, relata o narrador, “não houvera nem grandes livros, nem descobertas notáveis, nem batalhas vitoriosas, mas sim um trabalho, imenso, persistente, firme, peculiar, sempre intenso e insone.” Para ter a confiança do Partido, Guétmanov sabia que o mais importante era interpretar corretamente o “espírito partidário”. E que este espírito, na sua essência, “consistia em que a pessoa não deveria ter inclinações ou preferências que pudessem entrar em conflito com o partido.” Mais: sentimentos como a amizade, o amor, o carinho pelos conterrâneos eram “essencialmente supérfluos, não podendo ser conservados quando entravam em contradição com o espírito do partido”.

A força do dirigente do partido, relata o autor, “não exigia talentos de cientista, dons de escritor. Ela estava acima dos talentos, acima dos dons.” Mesmo não entendendo nada de música, canto, teatro ou piano nem apreciar particularmente obras de ciência ou poesia, centenas de pessoas dotadas esperavam febrilmente a sua palavra, porque o Partido confiava a ele os seus interesses. No fundo, Guétmanov sabia que a confiança do Partido se expressava nas opiniões sentimentos e atitudes do “camarada Stálin”.

Guétmanov não aparenta, porém, nem frieza nem insensibilidade. Pelo contrário: é irónico, caloroso, gosta de vodka e de beber com os amigos, faz por vezes algumas insinuações políticas sem que o interlocutor consiga saber se ele está a falar sério ou a testá-lo. E é muito bem informado. Nomeado para o cargo de comissário político no corpo de tanques que preparava o contra-ataque às tropas nazis em Stalingrado, ainda antes de chegar já sabia que o seu comandante, Piotr Nóvikov, estava para se casar com a ex-mulher do quadro partidário Krímov, uma pessoa que ele considerava obscura e a quem acusava de “desde os tempos mais remotos ter ligações com os direitistas e trotskistas”. Também não nutria qualquer simpatia por Nóvikov, “um daqueles que ganharam destaque com a  guerra. Antes da guerra não tinha se destacado em nada de especial”.

Quando chegou ao seu posto, Guétmanov conquistou facilmente a simpatia dos soldados, pela sua maneira de falar simples, pela forma gingada como caminhava, com o seu corpo avantajado, sempre a gracejar. Falava com segurança de temas como a qualidade do combustível ou as táticas de combate dos tanques, como antes, quando ocupara o cargo de dirigente regional na Ucrânia, agora ocupada, dissertara sobre as questões de produção de tijolo, da qualidade do pão ou da epidemia de peste aviária nos colcozes.

O comandante Nóvikov desconfia deste seu novo comissário, mas deixa-se enlear por ele ao ponto de, num momento de fúria e ciúmes do ex-marido da sua namorada, acabar por mencionar numa discussão com Guétmanov a famosa frase “Puro mármore”, que Trostsky teria usado acerca de um escrito dele. Com isso, assina sem querer a sentença fatal de Krímov, um velho bolchevique contemporâneo dos dirigentes da Revolução de 1917 e que sempre seguira a orientação do partido, mesmo no período mais sanguinário das purgas de 1936-38.

Mais tarde, quando começa a contra-ofensiva do Exército Vermelho, Nóvikov retém o avanço dos seus tanques durante oito minutos, protelando as ordens de avançar imediatamente porque a artilharia soviética ainda não anulara todas as baterias antiaéreas e antitanques do inimigo e a sua coluna de tanques iria romper as linhas inimigas que protegiam os flancos do exército nazi. Não queria iniciar a arrancada com grandes perdas. “Existe um direito maior que o de mandar para a morte antes de pensar; o direito de pensar antes de mandar para a morte”. Pressionado por Guétmanov, pelo comandante de divisão e pelo comandante de toda a operação, o general Ieriómenko, Nóvikov aguenta firme. É um dos momentos de maior tensão do romance, até que finalmente Nóvikov dá a ordem de ataque, com um atraso de oito minutos.

Ao fim de cem horas, completada a missão de cerco às tropas do 6º Exército do general Paulus  com total sucesso, Guétmanov abraça efusivamente Novikóv e diz-lhe que nunca na vida irá esquecer de como ele atrasou o ataque, apesar de todas as pressões. “Disseram-me que Stálin telefonou para Ieriómenko para saber por que os tanques não avançavam. Stálin teve de esperar! E eis que penetramos na brecha sem perder nenhum homem e nenhum veículo! Por causa disso eu nunca me vou esquecer de você”.

Mas logo que se vê só, o comissário dirige-se ao chefe do estado-maior e diz: “Camarada General, escrevi uma carta sobre o facto de o comandante do corpo ter atrasado em oito minutos, por vontade própria, o início de uma operação decisiva e da mais elevada importância, uma operação que decidiria o destino da Grande Guerra Patriótica. Por favor, tome ciência deste documento.”

Nazismo e estalinismo

Um dos capítulos mais habilidosamente escritos é o do diálogo – a rigor um monólogo acompanhado do pensamento do interlocutor – entre dois oficiais inimigos sobre as semelhanças entre o nazismo e o regime stalinista. De um lado, o carcereiro e inquisidor alemão Liss, do outro o prisioneiro e veterano bolchevique Mostovskói. O preso comparece ao interrogatório depois de três semanas de solitária e, em vez de encontrar uma sessão de tortura, como esperava, depara-se com um alemão que lhe dá a entender que não gosta da posição em que está: “Se o seu Comité Central o enviasse para trabalhar na Tcheka, o senhor poderia se esquivar?”

O que ocorre em seguida é um longo monólogo do alemão que tenta fazer ver ao prisioneiro que nazismo e estalinismo estão intimamente ligados: “Quando olhamos um no rosto do outro, não olhamos só para um rosto que odiamos; olhamos para um espelho. Essa é a tragédia da nossa época.” E vai mais longe: “Sim, sim, nós somos inimigos mortais. Mas a nossa vitória é a sua vitória. Compreende? E se vocês vencerem, nós vamos perecer, mas estaremos vivos na sua vitória. É um paradoxo: perdendo a guerra, ganharemos a guerra, vamos nos desenvolver de outra forma, mas com a mesma essência.”

Ao mesmo tempo, acompanhamos os pensamentos do russo, que se obstina em não responder, não aceitar o diálogo, mas que se sente atraído por aquelas palavras que vão ao encontro das suas mais íntimas dúvidas.

“Os comunistas alemães que nós mandámos para os campos, vocês também mandaram para os campos, em 1937. Iejov os prendeu, e o Reichsfürer Himler também os prendeu… Seja mais hegeliano, professor”. E profetiza: “Hoje vocês estão assustados com o nosso ódio pelos judeus. Talvez amanhã usem a nossa experiência.” Depois de afirmar que ambos foram conduzidos por dois grandes homens, Hitler e Stálin, o oficial alemão vai ainda mais longe: “Eis o que me atormenta: o terror de vocês matou milhões de pessoas e, no mundo todo, só nós, alemães, entendemos: é assim que tem de ser!” Mostovskói acaba por rejeitar as dúvidas e a recusar-se a seguir os cantos de sereia do inimigo, que encerra o interrogatório sem levantar um dedo contra o russo.

Também nesta passagem, que mais irritou Suslov, Grossman se aproximou de Trotsky, que afirma na “Revolução Traída”: “Chegamos agora a uma conclusão, à primeira vista inesperada, mas na realidade irrepreensível: o esmagamento da democracia soviética pela burocracia todo-poderosa e as derrotas infligidas em outros países se devem à lentidão que mostra o proletariado no cumprimento da tarefa que a História lhe designa. A despeito da profunda diferença das suas bases sociais, o estalinismo e o fascismo são fenómenos simétricos. Muitos traços se assemelham de maneira oprimente.”

“Uma espécie de comuna de Paris”

A desmontagem do cancro burocrático e da sociedade opressora que este criou, assente nos Processos de Moscovo, na aniquilação da maioria dos quadros revolucionários e na sangrenta coletivização forçada leva o leitor a um mergulho profundo e desesperançado num futuro sombrio. Mas não é essa a mensagem que Grossman pretende passar em “Vida e Destino”. Para além de terminar o romance com um cena metafórica de renascimento, o autor não desiste de apontar para alternativas. Num capítulo curioso, um escrito de um obscuro prisioneiro dos campos nazis, apresenta uma elaborada reflexão acerca do conflito entre bem e mal e mostra como a ideia de um Bem Universal conduziu a um beco sem saísa. E defende que o verdadeiro bem só pode ser encontrado na “bondade de uma pessoa isolada para com outra pessoa isolada”, que ele chama de “bondade insensata”: a da velha que estende um pedaço de pão a um presidiário; do soldado que dá de beber do seu cantil ao inimigo ferido, a bondade do camponês que esconde o velho judeu no palheiro. Não é a bondade em nome da glória do Estado, da nação e do Bem Universal, mas “é o mais alto a que chega o espírito humano”, e é essa “bondade estúpida” que distingue o ser humano de outros seres.

E se há burocratas traiçoeiros entre os personagens do romance, também há gente forte e valente, que luta desesperada mas desinteressadamente. Em pleno front de Stalingrado, um dos cenários mais interessantes é o de uma casa que os alemães sitiaram mas não conseguem conquistar devido à combatividade dos resistentes russos. É a casa 6/1, defendida por um pequeno destacamento de militares e voluntários, comandados pelo capitão Griékov, que luta furiosamente para defender a sua posição e mantê-la do lado dos russos. O comandante do regimento chega a pensar em abandoná-la, mas muda de ideias devido à sua posição estratégica, com metralhadoras instaladas em pontos altos que conseguiam atingir os tanques germânicos em aproximação e que constituía um excelente posto de observação.

A casa 6/1 é inspirada numa casa que realmente existiu em Stalingrado; a chamada “Casa de Pavlov”, do nome do major que comandou os seus defensores.

No romance, a casa 6/1 tem características muito próprias. O comandante do destacamento lá instalado recusa-se a enviar os relatórios diários por escrito que lhe são exigidos pela hierarquia militar. “Não vou me ocupar de bobagens burocráticas, só presto contas aos boches”, diz a um instrutor militar que consegue chegar ao local através de um túnel, para levar munições, granadas e uma operadora de rádio-telégrafo, já que as ligações telefónicas tinham sido cortadas. Espantado ele regressa e relata o que viu.

“Não dá para entender nada que acontece lá, todo mundo tem medo desse Griékov, mas ele os trata de igual para igual, deitam-se lado a lado, todos se tratam por ‘você’ e o chamam de ‘Vânia’. Perdoe-me, camarada comandante do regimento, mas aquilo não é um destacamento militar, e sim uma espécie de Comuna de Paris.”

Serioja Chápochnikov é o mais jovem soldado defensor da casa e a certa altura é enviado para levar umas mensagens ao comando, que o retém durante horas. Enquanto espera, recorda as muitas conversas a que assistiu nos intervalos dos combates. Griékov, o comandante, uma vez disse: “Não é possível guiar as pessoas como se fossem ovelhas, e mesmo Lenine, que era inteligente, não entendeu isso.” E completou: “A revolução é feita para que ninguém mais guie as pessoas. Mas Lenine disse: ‘Antes vocês eram guiados de forma estúpida, e eu vou guiá-los de forma inteligente.’”

O ambiente entre os defensores da Casa era claramente subversivo: “Serioja jamais tinha ouvido alguém condenar com tamanha ousadia os membros do NKVD que haviam arruinado dezenas de milhares de inocentes em 1937. Serioja jamais tinha ouvido alguém falar com tamanha dor das calamidades e tormentos que se abateram sobre os camponeses no período da coletivização total. O principal orador deste tema era o próprio dono da casa, Griékov, mas tanto Kolomiêitsev [artilheiro] quanto Batrakov [comandante do posto de observação da artilharia] participavam frequentemente dessas conversas.”

No romance, a Casa 6/1 acaba destruída e quase todos os seus defensores mortos pela artilharia alemã. Na vida real, o major Pavlov e muitos dos defensores da Casa conseguiram escapar.

A vida prossegue

No final, Grossman não tem a preocupação de fechar todas as situações. Viktor Chtrum continua a ser um homem dilacerado pelas dúvidas políticas e afetivas e pelos problemas de consciência; Krímov, preso, brutalmente torturado, recusa-se até o fim a assinar uma declaração “admitindo” que fora “espião dos nazis”. Nóvikov é chamado pelo Estado-Maior, mas ficamos sem saber o que lhe acontece… e muitos outros núcleos de ação do romance ficam sem fecho, porque a vida continua, enquanto em Stalingrado são agora os prisioneiros alemães que fazem o trabalho pesado, recolhendo os mortos entre os escombros de Stalingrado, e Stálin goza o seu momento de maior triunfo.

E nós, leitores, ficamos com pena de terminar. Queríamos mais.

A boa notícia é que há um outro romance escrito por Grossman antes de morrer que, apesar de inacabado, ele estava a corrigir no leito do hospital: Tudo Passa (Everything Flows) é o título e, embora consideravelmente menos volumoso, há quem o considere ainda mais forte que o romance anterior.

“Vida e Destino” é escrito numa linguagem simples, direta, sem artifícios e ornamentações, sem a preocupação de buscar formas inovadoras. É o livro de um jornalista. Dizer isto não significa denegrir as qualidades literárias do autor. Pelo contrário: Grossman é mestre em construir personagens complexos, contraditórios, hoje valentes amanhã cobardes, hoje frios amanhã coléricos, decididos numas coisas e pusilânimes noutras. Humanos, para definir numa só palavra.  Nenhum personagem desta obra é caricatural, nem mesmo o burocrata Guétmanov, capaz das mais impiedosas perseguições e traições mas sempre alegre, bonacheirão e que se transfigura num homem verdadeiramente terno diante dos filhos. O autor demonstra uma maestria particular em desenvolver o fluxo de consciência, a vida interior dos principais personagens. Acompanhando o seu pensamento, sofremos com eles, alegramo-nos com eles, angustiamo-nos com eles, temos as dúvidas e a esperança deles.

“Vida e Destino” é um romance calcado na experiência e na vida de Grossman. O que poderia parecer falta de imaginação é, pelo contrário, a sua enorme vantagem. O que o torna uma grande obra é a força das situações que Grossman viveu pessoalmente e testemunhou à frente de todos: não só pelos meses passados em Stalingrado, ou por ter sido o primeiro a denunciar Treblinka, mas também por estar entre as tropas russas que chegaram a Berlim na vanguarda. No terreno pessoal, Grossman também viveu algumas das situações descritas: tal como a personagem Gênia, o escritor também teve enormes dificuldades para obter uma autorização que lhe permitisse viver em Moscovo; tal como o seu alter-ego no romance, Viktor Chtrum, também Grossman teve problemas por o ex-marido da sua segunda mulher, Olga Mikhailovna, o também escritor Boris Guber, ter sido preso e executado em 1937, no apogeu do Grande Terror. Olga seria detida pouco depois, acusada de não ter denunciado o anterior marido como “inimigo do povo”. Grossman teve a iniciativa de escrever diretamente para Nikolai Yejov, o chefe da então NKVD (polícia política) pedindo a libertação de Olga Mikhailovna e argumentando que ela não podia ser responsabilizada por um homem da qual se tinha separado muito antes de ele ter sido preso. Surpreendentemente, pouco depois Olga seria libertada.

Um alerta: o romance não é de fácil abordagem nas primeiras páginas. São muitos personagens e o leitor precisa habituar-se a que cada um deles e delas seja chamado ou pelo nome de família – por exemplo, Chtrum –, ou pelo nome próprio seguido do patronímico – Viktor Pávlovitch. Para complicar, alguns personagens podem ainda ser referidos usando um diminutivo – por exemplo, Vítia. A princípio não é fácil. Para auxiliar a leitura, há no final uma lista de todos os personagens, divididos pelos respetivos núcleos em que o romance se desenvolve. É uma ajuda preciosa no início da leitura.

Depois de ler “Vida e Destino” trememos só de pensar que ele poderia ter-se perdido. Valeram a pena todos os esforços das pessoas que correram riscos para fazer a obra evadir-se e finalmente ser dada à imprensa.

Obras de Vassili Grossman publicadas:

A Estrada – Uma   coletânea de contos e reportagens de Grossman precedidos por introduções que, além de apresentar o contexto em que cada escrito foi produzido, trazem informações sobre a vida do autor. Editora Alfaguara (Brasil, 2015).

Vida e Destino –  Editora D. Quixote (Portugal, 2011) e Editora Alfaguara (Brasil, 2014).

Um escritor na Guerra: Vassili Grossman com o Exército Vermelho (1941-1945) – Admirador do romance “Vida e Destino”, o historiador Antony Beevor editou os cadernos em que Vassili Grossman escreveu as matérias-primas para as suas reportagens enviadas ao jornal Estrela Vermelha. Edições 70 (Portugal, 2007) e Editora Objetiva (Brasil, 2008).

Tudo Passa – O último romance de Grossman, que alguns críticos consideram ser até mais forte que Vida e Destino. Conta a história de Ivan Grigoryevich, libertado de um campo de trabalho forçado ao fim de 30 anos, e as dificuldades que tem para se adaptar à sociedade que encontra depois da morte de Stálin. Editora D. Quixote (Portugal, 2013). Em Inglês: Everything Flows, Editora Vintage Classics, 2011.

Bem Hajam!, Editora D. Quixote (Portugal, 2014) – Apontamentos tirados durante uma viagem de Grossman à Arménia. Considerado o mais pessoal e íntimo dos textos do escritor.  Em inglês: An Armenian Sketchbook, Editora New York Review Books Classics.

Em francês: Pour une juste cause. Le Livre de Poche. Romance anterior a Vida e Destino, foi publicado nos números de Julho a Outubro de 1852 da revista Novy Mir. Nele já aparecem alguns dos principais personagens deste último, como o físico nuclear Viktor Chtrum, o comissário Krímov, o velho bolchevique Mostovskói. Primeiro aclamado, começou em seguida a ser criticado oficialmente. Não há tradução em português.

Sobre Vassili Grossman:

The Bones of Berdichev: The Life and Fate of Vasily Grossman, por John Garrard e Carol Garrard

Rádio e TV:

Em 2011, a BBC emitiu “Vida e Destino” como uma novela de rádio, com vozes célebres como a de Kenneth Branagh. Infelizmente, o podcast já não está disponível, mas quem quiser pode comprá-lo na Amazon. Pelo menos dois episódios estão disponíveis no Youtube.

A TV russa fez uma série de seis episódios de 90 minutos em 2012. Infelizmente, ainda não encontrámos referência à emissão em Tvs não russas ou à comercialização em DVD legendado.

* texto originalmente publicado no site esquerda.net  – http://www.esquerda.net/artigo/o-livro-maldito-da-burocracia-sovietica/44139