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TEORIA

Walking Dead e o marxismo

Henrique Canary |

 

A série televisiva norte-americana The Walking Dead (TWD), baseada nos quadrinhos homônimos de Robert Kirkman, tem gerado interessantes discussões, inclusive nos meios de esquerda. O enredo gira em torno de um grupo de pessoas que tentam reconstruir as suas vidas depois que um apocalipse zumbi destruiu a civilização e exterminou quase toda a população da Terra. Quem acompanha a série percebe logo que os zumbis são apenas o pano de fundo da verdadeira história que Kirkman nos quer contar: o que acontece com os seres humanos quando não há leis, Estado ou qualquer outra forma de controle social além da força e da violência. Sobre este tema, o Blog Convergência já havia publicado um artigo de Carlos Zacarias, intitulado “Socialismo, barbárie ou apocalipse zumbi”. De minha parte, não tenho nada a acrescentar ao debate filosófico feito por Zacarias em seu artigo. Subscrevo-o integralmente. Gostaria aqui de abordar outro tema: o da formação econômico-social do mundo pós-apocalíptico de The Walking Dead. Esta análise, puramente hipotética, baseada apenas em umas poucas informações fornecidas pela própria série, pode servir, no entanto, para discutir alguns conceitos marxistas e jogar alguma luz sobre as perspectivas de desenvolvimento da sociedade capitalista, além de ser um divertido exercício de análise marxista.

Evidentemente, não se deve levar este artigo muito a sério. Mas se eu pudesse dizer algo em minha defesa, lembraria que não sou o primeiro a fazer uma análise marxista de um mundo fictício. Em 2015, o jornal britânico The Guardian publicou um artigo assinado por seu analista econômico intitulado “Pode a teoria marxista predizer o final de Game of Thrones?”. Em resposta ao artigo do The Guardian, a Jacobin Magazine, provavelmente o portal marxista mais importante dos Estados Unidos hoje, publicou um texto assinado por Sam Kriss com o título “Game of Thrones e o fim da teoria marxista”. E a polêmica se abriu… Apesar de TWD não tratar nem de poder, nem de riqueza, creio que é uma série merecedora da mesma atenção. É que tento fazer aqui.

O que é formação econômico-social?

Os marxistas falam frequentemente em “modo de produção capitalista”. Para fins de simplificação, poderíamos dizer que o modo de produção capitalista é um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção (empresas, máquinas, terras etc) e no trabalho assalariado (o que, por sua vez, pressupõe a existência de trabalhadores livres e não-proprietários). Sobre esta base fundamental, erguem-se todos os outros aspectos deste modo de produção. Mas o modo de produção é um conceito teórico, uma formulação ideal. Ao analisar-se uma sociedade concreta, deve-se falar sempre em “modo de produção predominante” porque nenhum modo de produção pode ser encontrado na realidade em estado puro. Quando descemos dos livros à terra, percebemos que todas as sociedades combinam em seu interior distintos modos de produção. Segundo Marx: “(…) em todas as formações sociais, existe uma produção determinada que estabelece os limites e a importância de todas as outras e cujas relações determinam, portanto, os limites e importância das outras todas”. (Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política)

Assim, o capitalismo brasileiro inclui, ainda que em uma escala relativamente pequena, o trabalho escravo, ou seja, um traço de um modo de produção pertencente ao passado (escravismo). A propriedade privada, embora seja dominante, convive lado a lado com a propriedade estatal e até com a propriedade comunal, que não são típicas do capitalismo. Mas o Brasil continua sendo um país capitalista porque o modo de produção capitalista é predominante.

Mas há um outro problema. Nenhuma sociedade pode ser reduzida à sua economia ou às suas relações de produção. Toda sociedade tem também um sistema político-jurídico, cultural, ideológico, filosófico, religioso etc., uma espécie de “segundo andar” da nação, onde residem as relações não-econômicas. Este sistema de relações não-econômicas se chama superestrutura, em referência à estrutura econômica da sociedade.

Por sua vez, a formação econômico-social é o conjunto de todas essas relações, econômicas e não-econômicas, que envolvem os seres humanos e compõem uma sociedade concreta. Assim, não basta dizer que “O Brasil é um país capitalista”. Isso é verdade, mas é preciso dizer também que tipo exato de capitalismo é o Brasil, qual sua origem histórica, qual o peso específico de cada classe social na sociedade, que tipo de Estado se formou no território brasileiro, quais as características específicas de sua economia, de sua população etc etc etc.

A formação econômico-social, portanto, é um conceito mais amplo do que o modo de produção: o inclui e o supera. O modo de produção é o conceito teórico quimicamente puro. A formação econômico-social é a realidade viva e pulsante.

Partindo desses pressupostos, devemos determinar: Que formação econômico-social temos em The Walking Dead? Que sociedade é essa? Qual sua dinâmica? Suas forças motrizes? Seus mecanismos? Tentaremos responder a essa pergunta e, depois, tirar algumas conclusões para nossa realidade.

A sociedade em The Walking Dead

De início, diremos que, para o marxismo, é indiferente se um apocalipse zumbi é cientificamente possível ou não. Para fins de análise, a epidemia zumbi de TWD deve ser considerada apenas como uma epidemia mortal qualquer, que dizimou quase toda a população da Terra, e os zumbis – como obstáculos naturais, equivalentes a animais predadores. Nossa descrição começa com este pressuposto.

A civilização foi completamente destruída pela epidemia. Não há Estado, governo, leis, forças armadas ou qualquer outro tipo de instituição universalmente reconhecida. As cidades foram abandonadas. Toda a produção industrial foi encerrada. A população foi drasticamente reduzida, e se fragmentou em pequenos bandos errantes, de alguns poucos indivíduos, que vagam pelas estradas, cidades abandonadas e comunidades rurais em busca de abrigo, armas, munição, água, remédios, roupas, veículos, combustível e comida. Não há produção propriamente dita. Estabeleceu-se uma economia de coleta, mas com uma particularidade: a principal fonte de riquezas não é a natureza bruta, como ocorre na selvageria clássica, mas sim os restos da antiga civilização. Somente mais tarde, com a rarefação dos produtos oriundos desse tipo de coleta, os bandos humanos passarão a se dedicar à horticultura e à domesticação de animais. A caça e a pesca, por serem atividades que exigem maior qualificação, são extremamente reduzidas. Por sua vez, a agricultura plena não é ainda uma opção, devido às hordas de zumbis que ocupam extensos territórios

Com o passar do tempo, os grupos nômades se estabelecem em acampamentos, condomínios fechados ou até mesmo pequenas cidades, que são cercadas e protegidas das ameaças exteriores. A vida nas antigas grandes cidades está descartada porque é aí que se encontram, também, as maiores populações de zumbis. A zona rural parece oferecer maior segurança e por isso atrai a maior parte da população que restou. Um fenômeno similar foi visto com a decadência do Império Romano do Ocidente e as invasões bárbaras do século IV ao IX. Mas desta vez, tudo foi muito mais rápido.

Os grupos formados tendem rapidamente à militarização, seja para auto-proteção ou para pilhagem. Os graus de “democracia militar” (expressão de Engels) em cada bando parecem variar. Alguns são mais flexíveis e escolhem livremente seus líderes entre os melhores guerreiros, formando inclusive conselhos de governo. Outros apresentam características despóticas e direção unipessoal. Todo membro do grupo, com raras exceções, deve saber manusear armas. Em alguns grupos o armamento da população é total. Em outros, o acesso às armas é controlado de acordo com as necessidades de defesa de território ou expedição ao exterior.

Devido à escassez de recursos, o contato entre os bandos é, na maioria dos casos, hostil. Como disse Engels, referindo-se aos bárbaros clássicos: “As riquezas dos vizinhos excitavam a ambição dos povos, que já começavam a encarar a aquisição de riquezas como uma das finalidades fundamentais da vida. Eram bárbaros: o saque lhes parecia mais fácil e até mais honroso do que o trabalho produtivo”.

Não se observa o comércio entre comunidades, mesmo depois do restabelecimento da horticultura e da domesticação de animais. Por outro lado, à medida que os grupos vão se enfrentando e testando suas forças, surge uma hierarquia entre os diferentes bandos, que estabelecem entre si relações semelhantes à da vassalagem feudal: Os líderes dos grupos mais fortes não eliminam seus adversários (a não ser em caso de motim violento), e sim os mantém como subordinados na direção de grupos menores ou mais fracos, requisitando daí bens e produtos em troca de proteção militar.

A expectativa de vida foi drasticamente reduzida e a natalidade parece ter se aproximado do zero. Subsiste uma divisão sexual do trabalho: os homens se dedicam à obtenção de alimentos, defesa e pilhagem, e as mulheres ao trabalho doméstico. Mas esta divisão não é rigorosa, e muitas mulheres se destacam como guerreiras, ao mesmo tempo em que muitos homens se integram plenamente às tarefas domésticas. Nos grupos nômades, esta divisão sexual do trabalho parece ser ainda mais flexível, dada a enorme pressão exercida pelas hordas de zumbis, que transformam todos os indivíduos, homens e mulheres, em soldados.

Não há divisão social do trabalho nem, aparentemente, grandes distorções na apropriação da riqueza obtida. A escassez atinge a todos. Em casos extremos, alguns grupos recorrem ao canibalismo. A terra para o plantio é de propriedade e uso comunal, e o trabalho é dividido de acordo com a capacidade física e a qualificação técnica de cada um. Na medida do possível, o antigo maquinário de pequeno porte, como moinhos, fornos etc. são colocados em funcionamento, em geral, alimentados por geradores de combustível fóssil ou energia solar de velhos painéis reconstruídos. Nas comunidades mais estáveis, as crianças frequentam uma espécie de escola improvisada.

De todo o exposto, pode-se caracterizar o mundo pós-apocalíptico de The Walking Dead como uma sociedade intermediária entre a selvageria e a barbárie. Como definiu Engels em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado: “Selvageria – período em que predomina a apropriação de produtos da natureza prontos para serem utilizados; as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie – período em que aparecem a criação de gado e a agricultura, e se aprende a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano”. Em TWD, a produção da vida material é essencialmente selvagem, uma vez que predomina uma coleta sui generis, com foco não na natureza bruta, mas nos resquícios da sociedade anterior. De outro lado, a tendência da população ao sedentarismo e a complexidade da organização militar e social remetem à barbárie.

Para onde vai o mundo em TWD?

Não é fácil prognosticar o desenvolvimento ulterior da sociedade. O extermínio da população pela epidemia acarretou a perda de quase todo o acúmulo técnico e científico. A extrema integração da economia capitalista, portanto a interdependência das nações, faz com que seja extremamente difícil restabelecer a produção em maior escala. Não existem meios de transporte ou comunicação. O isolamento das pequenas comunidades é quase absoluto e as hordas de zumbis são um obstáculo adicional ao intercâmbio.

Em muito pouco tempo, se esgotarão por completo os suprimentos, o combustível e a munição produzida pela antiga sociedade capitalista. A economia adquirirá, necessariamente, um caráter agrário ou, na melhor das hipóteses, pastoril. O conhecimento técnico necessário ao reerguimento da sociedade permanece disponível nos livros, embora disperso, e sem que haja população suficiente para absorvê-lo. Se a população voltar a aumentar, é possível que as relações de dominação entre as comunidades evoluam para algum tipo de federação ou organização centralizada similar ao Estado e com características despóticas, devido à militarização. Neste caso, a evolução dos conflitos pontuais para guerras de dominação entre estes “proto-Estados” também é provável. Não deve-se descartar também o ressurgimento da escravidão como resultado dessas guerras.

É inevitável uma pergunta: diante da destruição da sociedade capitalista, ainda que por uma causa aparentemente natural, seria possível a luta pelo socialismo? A resposta é inequívoca: não. O socialismo é uma sociedade superior ao capitalismo; parte do atual nível de desenvolvimento do capitalismo e o supera; é a vitória do trabalho sobre o capital. Mas na sociedade TWD não há capital, nem indústria, nem economia. Por isso, não pode haver socialismo. O apocalipse, seja ele qual for, é uma derrota histórica de dimensões inimagináveis. Neste caso, a luta pelo socialismo estaria encerrada ou adiada para um futuro indefinido.

Na melhor das hipóteses, as comunidades agrárias poderiam estabelecer um intercâmbio solidário entre si. Mas isso não seria socialismo. Ou pelo menos não seria o socialismo científico concebido por Marx e Engels, e sim um socialismo distópico, a socialização da miséria e da tragédia. O estabelecimento de uma rede solidária de comunidades independentes se aproximaria do ideal concebido pelo filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon. Seria a vitória do anarquismo, sua vingança histórica contra o marxismo.

O pálido ponto azul é tudo o que temos

Em 1996 o cientista norte-americano Carl Sagan chefiava a equipe responsável pela sonda espacial Voyager 1, que se encontrava a cerca de 6,4 bilhões de quilômetros da Terra. Quando a Voyager 1 estava passando por Saturno, Sagan enviou um comando para que a sonda virasse sua câmera fotográfica para trás e tirasse uma foto da Terra. O resultado foi um minúsculo ponto azul claro na imensidão do espaço. Ninguém jamais tinha visto a Terra assim, de tão longe. A foto revelava toda a fragilidade do nosso pequeno planeta. Alguns anos depois, em uma entrevista sobre o episódio, Sagan afirmou, olhando para o pálido ponto azul: “E ainda assim, é tudo o que temos”.

Não podemos afirmar que um apocalipse zumbi venha a por fim à civilização tal como a conhecemos. Aliás, este fim específico é, no mínimo, pouco provável. Mas todo o desenvolvimento atual nos leva à conclusão de que o mundo se encontra em uma encruzilhada. A destruição do meio ambiente, o aquecimento global e o perigo nuclear constituem uma ameça real e imediata à vida em nosso planeta. E agora sabemos o que significa um apocalipse em termos marxistas. Mais do que nunca, vale a disjuntiva formulada por Rosa Luxemburgo há mais de cem ano: socialismo ou barbárie. O pálido ponto azul é tudo o que temos. Ainda há tempo.