Os processos de Moscou: o extermínio da velha guarda bolchevique pelo stalinismo

Por: Enio Bucchioni

Nestes 100 anos que abalaram o mundo, vamos relembrar a Revolução Russa de 1917 através de um segundo artigo de uma série baseada nos Escritos de Leon Trotsky.

Os Escritos, coleção composta de cerca de 25 livros, não existem em nosso idioma. Eles foram elaborados entre 1929 e 1940 durante os onze anos e meio do último exílio de Trotsky. Utilizaremos a versão em espanhol da Editorial Pluma de 1977.

escritos

A cidade de Leningrado teve vários nomes durante a história. Chamava-se Petrogrado em 1917. Antes de 1914, mais exatamente desde 1703, era São Petersburgo em homenagem ao czar Pedro, o Grande. Após a restauração capitalista voltou a ser São Petersburgo.em 1991.

Em 1926 Zinoviev foi removido da direção de Leningrado logo após a derrota da Oposição Unificada. Nessa disputa política venceu a aliança dos stalinistas com a ala direita do Partido chefiada por Bukarin, Rikov e Tomsky. Esta Oposição foi um acordo efêmero no tempo, entre a antiga Oposição trotskysta de 1923 e a fração zinovievista que se descolou da aliança anterior com Stalin. Os motivos políticos e sociais bem como a conformação destas Oposições e os motivos de tal derrota no Partido serão relatadas em futuros artigos desta série sobre os Escritos de Trotsky.

A Oposição Unificada contava, além de Trotsky e Zinoviev, com Kamenev, vários membros do CC de 1917 como por exemplo Preobrajensdky, Krestinsky, Serebriakov, Smilga , Sosnovsky, os mais conhecidos chefes militares bolcheviques da Guerra Civil como Antonov-Osveinko, Lashevich e Muralov, figuras de peso da III Internacional como Rakovsky e Radek , bem como a companheira de Lenin, a Krupskaia, entre tantos e tantos quadros bolcheviques de destaque do Partido nas revoluções de 1905 e 1917.

Todos eles foram posteriormente executados pela GPU, polícia política comandada pelo stalinismo, com exceção de Krupskaia, falecida em 1939 por causas naturais aos 70 anos.

Trotsky, de 1926 até sua execução em 1940 por Ramon Mercader, agente da GPU, manteve-se no combate ao regime burocrático de Stalin, ampliou a Oposição de Esquerda para além das fronteiras da URSS e foi o principal personagem da fundação da IV Internacional.

Já Zinoviev e Kamenev capitularam quase imediatamente após a derrota da Oposição Unificada e pediram aos seus apoiadores que seguissem o exemplo, ou seja, que renegassem suas antigas ideias na luta da Oposição Unificada contra o stalinismo. Publicamente escreveram cartas abertas reconhecendo seus “erros” e foram readmitidos no Partido Comunista após um período de reflexão de seis meses. Eles nunca recuperaram os assentos do Comitê Central, mas receberam cargos de nível médio dentro da burocracia soviética. 

Zinoviev e Kamenev praticamente permaneceram inativos do ponto de vista político até outubro de 1932, quando foram expulsos do Partido Comunista. Depois de novamente reconhecerem seus supostos erros, eles foram readmitidos no Partido em dezembro de 1933. Eles foram forçados a fazer discursos autoflagelantes no XVII Congresso do Partido em janeiro de 1934. Durante todos esses anos voltaram a combater publicamente as ideias de Trotsky, elegendo a este como seu inimigo número um para sobreviverem como mortos-vivos rastejantes à Stalin na antiga União Soviética.

O trágico 1 de dezembro de 1934: o assassinato de Kirov

Kirov era um dos velhos militantes do Partido Operário Social Democrata russo, o POSD-R. Aos 19 anos participou da primeira revolução russa de 1905 quando foi aprisionado. Nessa ocasião entrou para a fração bolchevique do Partido, logo depois solto e novamente encarcerado de 1906 a 1909.

Presente na Revolução de 1917, ele lutou na guerra civil contra os exércitos brancos e os das potências imperialistas. Após a morte de Lenin em 1924 Kirov sempre apoiou a fração stalinista. Membro do Comitê Central bolchevique a partir de 1923, o que lhe valeu a indicação da burocracia stalinista para ser o líder do partido em Leningrado no lugar de Zinoviev em 1926.

Por volta de 1930, a popularidade de Kirov nos meios partidários era crescente entre os membros da burocracia, sendo já considerado como um dos possíveis sucessores de Stalin, quando este deixasse a direção do Partido e do Governo Soviético.

Com fama de conciliador perante as antigas alas oposicionistas, no já citado XVII Congresso do Partido Comunista da União Soviética no começo de 1934, Kirov foi o mais votado pelos congressistas, sendo que Stalin chegou em último lugar com 270 votos contra ele.

A vingança assassina de Stalin não se fez esperar, embora todos os presentes fossem da fração burocrática do stalinismo. Em 1937-38 dos 139 membros do Comitê Central eleitos no Congresso de 1934, 98 deles foram presos e fuzilados. Além disso a barbárie se estendeu aos 1950 delegados presentes: 1.108 foram aprisionados sob a acusação de contrarrevolucionários e quase todos executados!

Em 1 de Dezembro de 1934, Kirov foi assassinado por Leonid Nikolaev no Instituto Smolny, em Leningrado. Kirov havia ido ao Smolny para trabalhar em seu gabinete, e deixou os guarda-costas nas escadarias, vigiando os pisos superiores, onde os oficiais tinham os quartos. Nikolaev saiu de um banheiro e seguiu Kirov em direção ao gabinete, atirando atrás de seu pescoço. A morte jamais foi bem esclarecida, todavia várias evidencias levam inevitavelmente à polícia política (NKVD, sucessora da GPU) e esta só podia atuar sob ordens de Stalin. Ou seja, tratar-se-ia de um crime político com o máximo de perfídia: Stalin liquidava o seu então principal discípulo e único concorrente e, sob pretexto de perseguir e castigar os assassinos, começou a exterminar grande parte dos quadros comunistas com quem antipatizava, impondo um terror absoluto e conduzindo à fidelidade absoluta pelo medo extremo.

Quase 20 anos depois, em 1956, três anos após a morte de Stalin, quando a polícia política da burocracia mudara de nome e se chamava KGB, Scieliepin, então chefe desse órgão repressivo declarou: “O assassinato de Kirov foi usado por Stalin, Molotov e Kaganovitch com o pretexto para eliminar seus adversários.”

28 de dezembro de 1934: Trotsky denuncia o amálgama da burocracia stalinista em relação ao assassinato de Kirov

Por amálgama o nosso idioma define como uma mistura, uma fusão de coisas ou pessoas

distintas para poder formar um todo. No sentido figurado, um amálgama é o nome que se dá à mistura de coisas diversas e heterogêneas. É também a reunião desordenada de pessoas de diferentes classes e qualidades.

No tomo IV dos Escritos de Trotsky, num texto intitulado “ A burocracia stalinista e o assassinato de Kirov”, pode-se ler:

Em 17 de dezembro foi publicada uma notícia onde, pela primeira vez, se afirma que Nikolaev fez parte do grupo de oposição de Leningrado dirigido por Zinoviev em 1926. …. Em 1926 toda a organização partidária de Leningrado, com muito poucas exceções, pertencia a oposição de Zinoviev…. Posteriormente todos eles capitularam, com seu dirigente na cabeça; mais adiante repetiram a capitulação de maneira mais decisiva e humilhante. ”

Em seguida afirma:

Contudo, é evidente que essas informações referentes ao ‘grupo Zinoviev’ não foram lançadas acidentalmente; só podem significar que são a preparação de um ‘amalgama’ jurídico, isto é, uma tentativa conscientemente falsa de implicar no assassinato de Kirov a outros indivíduos e grupos que não têm nem podem ter nada em comum com o ato terrorista. ”

Assim, acoplando o ato terrorista de 1934 a mando da GPU com a antiga Oposição Unificada de 1926, a burocracia stalinista mandou prender 15 membros do velho grupo de Zinoviev- Kamenev.

Sobre esses detidos assim escreveu Trotsky no texto citado anteriormente:

Zinoviev: colaborador de Lenin durante muitos anos no exílio, ex-membro do Comitê Central e do Birô Político, ex-presidente da Internacional Comunista e do Soviete de Leningrado.

Kamenev: colaborador de Lenin no exílio durante muitos anos, ex-membro do Comitê Central e do Birô político, vice-presidente do Conselho de Comissários do Povo, presidente do Conselho de Trabalho e Defesa e presidente do soviete de Moscou. Esses dois homens formaram, junto com Stalin, a troika (triunvirato) que governou o país entre 1923 e 1925. ”

Os outros treze antigos bolcheviques zinovievistas, alguns antigos operários e/ou ex- membros do CC e/ou figuras importantes durante a guerra civil contra os exércitos brancos e que foram detidos pela GPU foram:

Zalutskii; Levdokimovii; Feodoroviii; Safaroviv; Kuklinv; Bakaevvi; Sharov; Faivilovich; Vardin; Gorchenin; Boulak; Guertik e Kostinavii.

Em 1926, em uma reunião da Oposição Unificada, Krupskaya, a viúva de Lênin, comentou com amargura: “Se Vladimir estivesse vivo, estaria preso”

Em 1926, em uma reunião da Oposição Unificada, Krupskaya, a viúva de Lênin, comentou com amargura: “Se Vladimir estivesse vivo, estaria preso”

 

O grupo zinovievista fez a revolução para poder fazer a contrarrevolução?

Trotsky assim escreve no texto citado:

Esses 15 indivíduos são implicados, sem mais nem menos, no assassinato de Kirov. Segundo as explicações dadas pelo Pravda (jornal oficial do Partido), o objetivo deles era tomar o poder, começando por Leningrado “com a secreta intenção de reestabelecer o regime capitalista”.

Hoje em dia soa inverossímil essa acusação da burocracia stalinista. No entanto essa versão completamente absurda não somente existiu como se expandiu por toda a URSS e em todas as partes do mundo nos três anos seguintes. Os Partidos dito Comunistas e seus apoiadores difundiram essa mentira por todo o planeta. O objetivo da burocracia stalinista era o de aniquilar toda e qualquer oposição

Mais adiante Trotsky afirma:

Zinoviev e Kamenev não são tontos. No mínimo entendem que a restauração do capitalismo significaria antes de mais nada o extermínio de toda a geração que fez a revolução, incluídos, obviamente, eles mesmos. Em consequência, não cabe a menor dúvida que a acusação engendrada por Stalin contra o grupo de Zinoviev é totalmente fraudulenta, tanto no que se refere ao objetivo especificado, a restauração do capitalismo, quanto aos meios, os atos terroristas. ”

Marxismo, terrorismo e burocracia

Trotsky escreve no referido texto:

Qualquer operário que saiba ler e escrever sabe que o marxismo se opõe à tática do terror individual. Muito já se escreveu sobre esse tema. Tomo a liberdade de citar um artigo meu publicado em 1911 na Alemanha, no jornal austríaco Kampf (Luta): Que o ato terrorista, ainda quando tenha ‘êxito’ consiga ou não fazer mergulhar os círculos dominantes num turbilhão , isso depende das condições políticas concretas. No entanto, o turbilhão só pode durar pouco. O estado capitalista não se apoia nos ministros e não se pode destruir esse estado apenas com a morte desses ministros. As classes a que esses ministros servem sempre encontrarão outros homens novos; o mecanismo permanece intacto e continua funcionando”.

Até hoje essa sempre foi a compreensão marxista revolucionária sobre os atos de terror individual. Esta concepção é eternamente válida seja para os estados capitalistas, seja para os antigos estados operários.

Já houve – por várias vezes- quem me perguntasse por que alguém da velha guarda bolchevique não assassinou Stalin em fins da década de 20 ou na de 30 ?. Como veremos na sequência destes artigos de comemoração dos 100 anos da gloriosa revolução russa de 1917, Stalin era apenas o principal representante da camada social da burocracia, estimada por Trotsky em seu livro “A Revolução Traída” em cerca de 25 milhões de pessoas num país com mais de 160 milhões de habitantes. Se por um motivo qualquer Stalin morresse, seria substituído por alguém do seu entorno como por exemplo Kalinin, Kaganovitch ou Voroshilov

Se Stalin morresse, outro burocrata assumiria o seu lugar, representando 25 milhões dessa camada social na década de 30 na URSS.

Se Stalin morresse, outro burocrata assumiria o seu lugar, representando 25 milhões dessa camada social na década de 30 na URSS.

Mais adiante, no texto já citado, ele escreve;

Porém o turbilhão que o ato terrorista introduz nas filas das massas trabalhadoras é muito mais profundo. Se para alcançar o objetivo basta apenas se armar com um revólver, qual a necessidade de haver a luta de classes? Se as pessoas que ocupam altos cargos podem ser intimidadas com o estrondo de uma explosão, qual a necessidade então de um Partido? ”

E conclui:

Somente os farsantes políticos que se apoiam nos imbecis é que podem ousar relacionar o Nikolaev com a Oposição de Esquerda, ainda que mais não seja por intermédio do grupo de Zinoviev, tal como existia em 1926-1927… O terrorismo individual é, em essência, burocratismo ao contrário. Os marxistas não descobriram ontem essa lei. O burocratismo não tem confiança nas massas e trata de substituí-las. O terrorismo funciona da mesma maneira; quer fazer a felicidade das massas sem pedir a participação delas. A burocracia stalinista criou um culto vil à personalidade, atribuindo-se aos líderes qualidades divinas. O culto ao ‘herói’ é também a religião do terrorismo, só que de sinal oposto. Os Nikolaevs acreditam que para a história mudar de rumo basta com liquidar a tiros de revólver a alguns tantos dirigentes. Os terroristas comunistas, como grupo ideológico, são filhos da burocracia stalinista”

Notas :

i1 Zalutski: um dos mais antigos operários bolcheviques; ex-membro do Comitê Central,ex-secretário do Comitê de Leningrado, presidente da primeira comissão central que se formou para purgar o partido.

ii2 Levdokimov: um dos mais antigos operários bolcheviques; membro do Comitê Central e do Birô de Organização; um dos dirigentes do Soviete de Leningrado.

iii3 Feodorov: um dos mais antigos operários bolcheviques; ex-membro do Comitê Central; presidente da secção operária do Soviete durante a Revolução de Outubro.

iv4 Safarov: um dos mais antigos membros do partido; chegou com Lenin no trem blindado; ex-membro do Comitê Central; chefe de redação do Pravda de Leningrado.

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5 Kuklin: um dos mais antigos operários bolcheviques; ex-membro do Comitê Central e do Comitê de Leningrado.

vi6 Bakaev: um dos mais antigos operários bolcheviques; ex-membro da Comissão Central de Controle; de destacada participação na Guerra Civil.

vii7 Sharov, Faivilovich,Vardin, Gorchenin, Boulak, Guertik e Kostina : todos eles antigos membros do partido, militantes durante a ilegalidade, protagonistas da Guerra Civil, ocuparam cargos de maior responsabilidade no partido e nos sovietes.