Por Diego Braga, Colunista do Blog Esquerda Online
O ídiche é uma língua falada por judeus no centro-nordeste da Europa, muito próxima ao alemão, considerada por alguns um dialeto do alemão. O linguista Max Weinreich, que a estudava, ficou célebre também por lhe atribuírem a seguinte declaração, que parece resumir corretamente uma dimensão complexa da questão linguística:
A shprakh iz a dialekt mit an armey un flot.
“Uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha”
A diferença entre uma língua e um dialeto é, muitas das vezes, política, não linguística. Ademais, as línguas podem ser libertadoras e reveladoras ou opressivas e alienantes, de acordo com o modo como se as trata. Apesar desta importância política, há praticamente uma ausência do debate linguístico na esquerda que se pretende revolucionária.
No mundo, podemos dizer que há cerca de 3 mil línguas ameaçadas de extinção até o final do século XXI, na melhor das estimativas. Isto representa 46% da variedade linguística atual. No pior cenário, extinguir-se-iam 90% das línguas do globo até o fim do século. Uma das razões para tal é a homogenização cultural sob o signo da mercadoria, que instrumentaliza seres humanos e, com eles, suas línguas. Estas passam a ser vistas como instrumentos de comunicação, a partir do quê se valorizam os instrumentos mais eficientes para a troca no mercado global. A esquerda, mesmo revolucionária, tristemente, parece corroborar com esta compreensão meramente instrumental da língua, própria da lógica do capital. Trata-a como um mero instrumento, receptáculo ou suporte de mensagens, como um contêiner usado para transportar mercadorias. Assim, não lhe prestam atenção, por acreditarem que é apenas o suporte, a embalagem do produto chamado mensagem ou conteúdo. É tratada quase como o dinheiro, como mera representação, valor de troca nas interações comunicativas. “Quase”, porque a ela é dado pouco valor.
A preocupação com estas questões se transforma em tristeza, ao conceber-se a dimensão da alienação cultural em que se insere a alienação linguística, mesmo entre os que, acredita-se, são o setor consciente da sociedade. Tratada no melhor dos casos como questão menor, infelizmente a questão linguística bloqueia todas as demais. É na língua alienada e alienante que se escrevem os programas, que se veiculam a propagada e as palavras de ordem, que se fazem intervenções, tudo com intenções revolucionárias, para não falar de todas as práticas culturais não militantes, essenciais para os que almejam ser livres e, mais ainda, para os que se pretendem dirigentes da libertação. A questão linguística e cultural é essencial para um programa revolucionário especialmente no que tange as opressões, todas. Não é à toa que estas também são secundarizadas mais comumente do que se gosta de assumir mesmo na visão mais autocrítica. O cenário é desanimador.
As línguas do Brasil: indígenas e negras
Dentre as línguas que não são variedades do português no Brasil, as mais oprimidas certamente são as de origem africana e as indígenas. O tupi-guarani, ou língua geral, foi uma criação dos jesuítas: um instrumento de catequização. Quando da chegada dos portugueses, estima-se que houvesse cerca de 1.200 línguas nas terras que hoje formam o Brasil. No país hoje são faladas em torno de 180 línguas. Um extermínio cultural e tanto: cerca de 20 línguas mortas por década de história nacional. Apenas 5 das 150 línguas indígenas sobreviventes contam hoje com mais de 10 mil falantes, devido ao extermínio étnico dos indígenas pelos latifundiários e às peculiaridades sociais destes grupos nativos. A maioria das demais línguas indígenas está ameaçada mais ou menos seriamente.
Algumas línguas africanas que vieram ao Brasil se originaram na curva costeira do noroeste do continente, como os falares iorubá, no Brasil chamados de nagô-queto, além do hauçá, do mandinga, dentre outras línguas. São tipologicamente muito diversas. O grupo bantu, mais homogêneo, das costas sudoeste e sudeste também trouxe aporte rico para nós, como a língua quimbundo falada pelos ambundos, o quicongo falado pelos bacongos e o umbundo falado pelos ovimbundos. Algumas destas línguas ainda sobrevivem no Brasil sem serem reconhecidas como línguas plenas, ou seja, usadas apenas em rituais ou como língua secreta de grupos oprimidos.
Os milhões de africanos trazidos para o Brasil sob grilhões foram em grande parte aculturados. Por diversos expedientes, tentaram extirpar-lhes suas culturas, pois os colonizadores sabiam que a maneira mais eficiente de quebrar a humanidade de alguém é privar este alguém de sua cultura, para assim escravizá-lo. O mesmo fizeram os jesuítas com os índios, de forma diferente. Apesar da brutalidade do expediente, negros e indígenas conseguiram manter boa parte de sua cultura, transformando-a ao longo do tempo de maneira criativa e contribuindo enormemente para a formação da diversidade cultural brasileira. É difícil superestimar o aporte linguístico dado pelos negros do Brasil, que vai muito além das 2.500 palavras que nos deram, segundo pesquisas mais recentes. Estima-se que com os negros vieram ao país de 200 a 300 línguas, que por sua vez eram apenas uma pequena parcela da riqueza cultural africana da época, que contava com cerca de 2000 línguas. Ademais, formaram-se variedades do português em quilombos, algumas através de crioulização com línguas africanas. Muitas destas variedades ainda vivem hoje.
Os portugueses do Brasil
Sob certo ponto de vista, nossa situação é pior que a existente na Espanha. De todas as línguas do Brasil, apenas uma é oficial: uma tal de “norma culta” ou “norma padrão” que, tal como descrita em sua versão oficial, não é falada por nenhum brasileiro. Também conhecida pelo nome de português, esta língua é a que se apresenta nos documentos oficiais e é cobrada em concursos. É sobretudo uma variedade escrita da língua. Mas mesmo na sua forma escrita, poucos brasileiros dominam esta língua, podendo compreender as leis e ter acesso aos bens culturais nela escritos. São privilegiadíssimos. As afirmações acerca da unidade linguística brasileira baseiam-se nesta oficialidade, ocultando a realidade linguística dramática do país, caracterizada ao mesmo tempo por gigantesca exclusão e exclusivíssimo privilégio.
São poucos os privilegiados e muitos os excluídos porque aquela mesma norma oficial, embora não falada por ninguém, é estabelecida de modo a ser mais próxima do modo como falam as elites econômicas e culturais dos grandes centros urbanos das regiões mais desenvolvidas do país, com algumas regras baseadas no modo como falam os portugueses, dada a herança colonial. A tal norma padrão não é estabelecida segundo a lógica e a elegância, como se ensina ainda em muitas escolas, mas sim por critérios políticos, econômicos, sociais, históricos, culturais e raciais. A herança escravista também se faz sentir nesta língua oficial. Muitos dos elementos que caracterizam o falar de negros – em sua infinita variedade pelo país – são condenados pela norma culta/padrão.
Há também opressão regional, tanto na escrita quanto na fala. Os falares das regiões não-sudestinas são em geral pouco apresentados, senão como caricaturas, pela grande mídia em telejornais nacionais e telenovelas. Um apresentador gaúcho teria de “perder seu sotaque” (leia-se, adotar um falar mais parecido ao de um paulista ou carioca) para poder apresentar o jornal nacional. Com sotaque, pode apresentar apenas programas em nível regional. De todos os falares regionais, o mais oprimido é, sem dúvida, o conjunto dos diversos falares da região nordeste.
A língua oficial é uma língua de classe, antes de mais nada. Assim, o aluno branco das classes abastadas das capitais sudestinas ou portuguesas já chega à escola com vantagens linguísticas (dentre outras mais óbvias) para aprender não apenas português, mas todas as outras matérias que são estudadas na língua oficial. O português “oficial”, que é aprendido na escola, apenas, é desconhecido da maioria, pela precariedade do sistema escolar, ao qual o aluno chega já sabendo falar português e ao qual se pretende ensinar uma outra variedade desta língua como se fosse exatamente a mesma língua que este aluno já fala, só que na sua forma escrita. Algumas autoridades da língua ainda acreditam, anacronicamente, que a fala é que deve replicar a escrita, que lhe serviria de base. A situação é grave.
O problema linguístico brasileiro, no âmbito étnico e cultural, não se limita às relações entre os povos-matrizes (negros, indígenas e portugueses) e entre as regiões do país. As línguas do Brasil foram enriquecidas pela imigração. A segunda língua mais falada no Brasil atualmente é o alemão, pasmem (se não me engano, já foi o japonês). Vieram muitos imigrantes germânicos e nipônicos para cá. Durante o varguismo, imigrantes japoneses e alemães foram proibidos de falar suas línguas. Ainda hoje o português falado por ítalo-brasileiros, com seus erres simples, que os fazem dizer “caro” por “carro”, é alvo de uma piada sem graça nenhuma. Estes imigrantes, embora alguns poucos gostem de se ver mais como europeus desterrados, são tão brasileiros como nós e precisam ter sua cultura e sua fala respeitadas.
A unidade linguística do Brasil é tão ilusória quanto a ideologia dos “interesses comuns de todo o povo”. O país é caracterizado pela existência de milhões de “sem-língua” entre aqueles que se acredita falarem português. Estas pessoas, que falam uma variedade da língua diferente da oficial, são consideradas como pessoas “que não sabem falar português”. Não são reconhecidas sequer como existentes as línguas que elas falam. Como se o que falassem fosse um português estropiado e não outra variedade da língua. Como se o problema fosse deles.
Foi quase assim – pois mais brutalmente – que Mussolini tratou as variedades não oficiais do italiano, que são os dialetos italianos. Também o Hochdeutsch, o alto-alemão, foi estabelecido à revelia dos diversos dialetos ainda hoje falados na Alemanha, na Áustria, na República Tcheca, na Polônia e na Holanda. (Há pelo menos um dialeto teuto-brasileiro, o chamado riograndeser hunsrückisch). O caso da opressão espanhola sobre as línguas locais é análogo: muitos tratam as variedades dialetais como espanhol estropiado. E o pior é que o catalão e o basco, por exemplo, sequer podem ser considerados como variedades de espanhol: são diferentes em muitos de seus elementos sintáticos, morfológicos, fonéticos e semânticos. O basco, principalmente, tem outras origens.
Portanto, a língua é um fator de dominação e exclusão tanto quanto de inclusão e libertação. Depende de como é tratada. Não serve para “comunicar ideias e sentimentos” apenas, como se ensina na escola. Serve para enganar, para humilhar, para oprimir. Basta ver as declarações do MBL e dos bolso – naros e minions – nas redes sociais. Há camadas e camadas de ideologia alienante no entendimento vigente desta maravilha que julgamos mero veículo transparente de mensagens.
Os portugueses de Portugal
Em Portugal a coisa não é muito melhor. Os portugueses são um povo miscigenado, variado e muito singular, como o é a sua/nossa língua. Preferimos a palavra árabe “garrafa” à latina “botelha”. Com os galegos, somos os únicos no mundo a termos o infinitivo pessoal. Essa riqueza, porém, é muito maior que a aceita oficialmente. Nas terras de nossos primos d’além-mar – forçando um pouco a mão – há 10 variedades dialetais de português, apenas duas das quais tendo reconhecimento oficial. Uma é chamada de “o português” europeu (destaque para o artigo definido) tal como o conhecemos. Outra é o mirandês.
Mas ainda há o asturiano, falado no distrito de Bragança (Portugal) e em Treze Tílias (SC – Brasil), que tem literatura desde o século XVII. Outra variedade do português é o barranquenho, falado na região de Beja e encontrado também na Extremadura espanhola. Há também o calão, espalhado pela Península Ibérica e pelo Brasil, sendo uma língua mista, um crioulo entre o romani (cigano) e o português. O galego – do qual o português não se distinguia em suas origens lá no século XII – é falado no norte de Portugal e na Galícia espanhola. É mais parecido ao português que ao espanhol. Há ainda o minderico – quase extinto – falando na região do distrito de Santarém. Ameaçados também estão o asturiano e o barranquenho.
O crioulo cabo-verdiano (embora eu suspeite de que haja mais de um) também é bastante disperso, pela diáspora, e bem concentrado e falado no Cabo Verde, na África, e em Portugal, pela imigração. Com cultura rica e peculiar, trata-se de uma língua fruto da mistura de idiomas de origem africana com o português. Quem quiser ouvir o cabo-verdiano em músicas lindas, ouça Mayra Andrade. Falantes de português entendem algumas coisas ao ouvir o cabo-verdiano. Não é uma variedade de português, na verdade, mas é uma língua que se “coorigina” do português.
Além das variedades faladas em Portugal há também a língua portuguesa de sinais, que é diferente da brasileira. Esta ainda encontra, como por aqui, muita resistência ao ser veiculada em órgãos oficiais, escolas, etc. A Libras (língua brasileira de sinais) já tem status oficial, mas como é comum em nosso país, o de jus não corresponde ao de facto. Vejam-se os direitos fundamentais na Constituição e a realidade dos cidadãos. Mas avançamos muito neste ponto nos últimos anos, apesar de precisarmos seguir adiante.
A questão linguística na lusofonia africana
A lusofonia africana é todo um universo, polêmico, rico, variado, e pouquíssimo estudado. Sou basicamente ignorante no assunto, para minha infelicidade e vergonha. Os PALOPs (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) são o Cabo Verde, Angola, Moçambique, a Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Recentemente a Guiné Equatorial também adotou o idioma. Temos aí seis países diferentes, com histórias e culturas diferentes, internamente e entre si. Há traços muito comuns no modo como falam português, em geral, mas assim como não há “a África” como um bloco homogêneo, não há “o português africano”, a rigor. Vale a pena conferir o livro “‘Lusofonia’ em África: História, Democracia e Integração Africana”, organizado por pesquisadores de Moçambique e da Guiné-Bissau.
Nem todos os habitantes dos PALOPs são, na verdade, falantes de português. A diversidade linguística é enorme. Os casos mais conhecidos são os de países com território maior: Angola e Moçambique. No último há mais de quarenta línguas africanas, com culturas, religiosidades e histórias diferentes. Muitas se espalham por territórios para além de Moçambique. Em Angola também há imensa variedade (entre 20 a 50 dialetos além dos reconhecidos), embora apenas seis línguas sejam reconhecidas oficialmente. A dispersão territorial interna e para além de Angola também se verifica. Nos outros países a delicadeza da questão linguística é ainda maior.
O português é, em geral, aprendido nas escolas e é a língua escrita na maioria das vezes. O aprendizado do português ganhou força, curiosamente, depois da independência dos países africanos lusófonos, graças a um programa de escolarização. A língua portuguesa funciona, pelos países, como uma espécie de língua franca entre os diversos grupos etnolinguísticos, e nas capitais é, na prática, a língua do dia a dia. O português, assim, se arvorou como língua oficial, por exemplo, em Angola, mas a maioria da população não fala português como primeira língua, e sim umbundo, ou quimbundo, ou quicongo, ou chócue, ou ganguela e ou cuanhama, para ficarmos com as línguas africanas reconhecidas oficialmente, todas do tronco bantu, se não me engano.
Pela história, a relação do português trazido pelo colonizador branco para com as línguas africanas dos negros sempre foi uma relação de exclusão, repressão, dominação e violência. Pelo prestígio da língua portuguesa internacionalmente: a sexta mais falada no mundo, nos cinco continentes, esta é adotada e ensinada nas escolas. Mas este problema político não pode ser solucionado assim, de maneira simplista. As culturas africanas devem ter sua valorização, dada sua enorme vitalidade, evidente no fato de florescerem a despeito da violência da colonização e da escravidão de muito tempo. Precisamos aprender mais sobre elas nos cursos de Letras no Brasil, país com maior população negra fora da África. Precisamos compreender mais a riqueza cultural destes povos, nossos primos, para pararmos de falar da “cultura africana” e passarmos a dar, aos povos deste continente, a mesma especificidade cuidadosa que damos ao falar não “dos europeus”, mas dos portugueses, dos italianos, dos franceses, etc. Tal como a questão LGBT e negra, por exemplo, a questão linguística e cultural passa pelo caminho da desinvisibilização, dentre outros.
Diante da questão da variedade linguística, contudo, não acho que não deva haver uma versão oficial da língua, ou várias versões, ou várias línguas oficiais. É uma necessidade de um Estado que abriga sociedades culturalmente complexas. O problema está, basicamente, em cinco coisas: 1) como as versões oficiais da língua ou línguas oficiais são estabelecidas segundo critérios que privilegiam as classes e setores dominantes, ocultando estes critérios sob argumentos falaciosos que evocam lógica, tradição e estética; 2) como a inclusão oficial de línguas muitas vezes se dá de maneira guetificada, como no caso do catalão: os catalães são obrigados a aprender espanhol, mas os castelhanos não são obrigados a aprender catalão; 3) como as forças da globalização impõem políticas, valores e usos linguísticos de forma não democrática e pluralista, com resultados que corroboram com o extermínio linguístico e cultural; 4) como as práticas e os cânones artístico-culturais refletem as variedades das línguas correspondentes aos falares dos setores e classes dominantes, precisando ser revistos sob critérios mais democráticos e críticos; 5) como segundas línguas de fato são ensinadas com métodos de ensino de primeira língua, ou pelo menos variedades diferentes da língua são ensinadas nas escolas como se fossem as mesmas línguas faladas pelos alunos, e como se todos os alunos falassem a mesma língua.
A questão linguística e a questão cultural
As línguas são elementos essenciais das culturas e das nacionalidades. Uma esquerda que se pretenda libertadora e revolucionária e não tenha um programa de política linguística está fadada ao fracasso. Infelizmente, é o que vemos, mundialmente. A língua é tratada, mesmo pela esquerda revolucionária, como mera ferramenta expressão, ainda assim toscamente utilizada. Instrumentalizada desta forma, e portanto reificada, a língua é fator de alienação. Um programa libertador que se expresse com um instrumento alienante não cumpre, jamais, o seu objetivo. A propaganda feita com um instrumento alienante só serve ao dominador. A palavra de ordem e a faixa no protesto, escritas com uma língua da qual se está alienado, dizem palavras em última instância pouco significativas para nossa libertação.
É preciso também tratar do modo alienado como a questão linguística e cultural é, em geral, colocada, mesmo na esquerda. A fundamentação teórica da crítica cultural veiculada pelas organizações de esquerda, que se pretendem muito críticas, é conteudista e oportunista. Comentam-se, no mais das vezes, os produtos alienantes da indústria cultural como se filmes, livros e músicas fossem manifestações meramente comunicativas, cuja mensagem, somente, devesse ser avaliada. Quando se trata da cultura não industrializada, também conteudista é o viés. Mas o conteudismo é tão alienante quanto o formalismo. Na organização de eventos de esquerda, salvo exceções mais comuns nos movimentos populares, instrumentaliza-se oportunisticamente a cultura: toca-se a música de sucesso, fazendo girar as rodas do capital, quando se poderia criar um espaço de expressão alternativa. Outro problema é a demagogia. A cultura popular é geralmente tratada com demagogia pela esquerda, acriticamente celebrada, como nas penas dos populistas. O conformismo também é uma triste característica da abordagem cultural mais comum na esquerda. Os clássicos são em geral apresentados repetindo-se, simplesmente, e a título de crítica, a canonização feita pelo discurso cultural burguês. Infelizmente é assim que é comum, mesmo na esquerda que se pretende revolucionária.
Também temos que pensar criticamente o conceito de cultura limitado às artes – como é comum mesmo na esquerda. É um conceito totalmente inadequado: um conceito burguês e eurocêntrico de cultura, tal como o é o de arte. O próprio Marx pensava a cultura e arte deste jeito limitado, na maioria das vezes. Precisamos recorrer ao conceito de cultura como forma de vida, como modo com que as relações sociais são produzidas e reproduzidas, e não como mero veículo simbólico da ideologia. Este é um primeiro passo: desenvolver este conceito dentro de uma teoria marxista, para daí elaborar um conceito de língua a partir do qual possamos tratar o problema. Não começaremos do zero. Há uma longa tradição teórica dentro do marxismo. Fora do marxismo, há pesquisa farta que pode nos fornecer material essencial. Infelizmente, esta tradição teórica e estas contribuições são praticamente ignoradas pelo pensamento marxista que existe dentro das organizações políticas.
As questões da língua e da cultura, deixadas em segundo plano, no melhor dos casos, põem a perder todos os esforços de compreender de forma não-alienada as mensagens que nos chegam a todo tempo e formam nossas consciências. Somos opressores e oprimidos sem o sabermos – quando ignoramos solenemente a questão linguística e cultural – a cada vez que abrimos a boca ou escrevemos, mesmo para dizer as palavras mais revolucionárias.
Notas:
(1) A título de comentário, digo que “cooriginar” é uma palavra que não existe oficialmente no português, segundo o VOLP. Tendo a suspeitar de que, quanto mais purista a política linguista de um país, menos democrático ele é.
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