Por Mauricio Gonçalves, doutor em Ciências Sociais pela UNESP.
O subtítulo do mais importante estudo do filósofo húngaro István Mészáros, Beyond Capital (1995) – Para além do capital (2002) –, tem como complemento a necessidade de uma teorização sobre a transição: “rumo a uma teoria da transição”.
Isso decorre de alguns motivos interligados: (a) uma teoria da transição apenas tem sentido em conexão com uma análise da economia política do capital em um dado momento de seu evolver, e se subordina a tal análise; (b) como é em Beyond Capital que aparece de modo mais desenvolvido a sua elaboração sobre a entrada em uma época de crise estrutural do capital, uma teoria da transição torna-se vitalmente necessária e urgente para os destinos da humanidade, que cada vez mais é colocada entre as alternativas de socialismo ou barbárie [*]; (c) a elaboração de uma teoria da transição torna-se agora cada vez mais possível, dado o fato da própria evolução do sistema sociometabólico do capital ter adentrado em uma trajetória histórica declinante, ou de atingimento de seus limites absolutos, com a perda de suas capacidades civilizatórias; (d) como complemento e esclarecimento de suas ideias, o automovimento contraditório que o levou a ativar seus limites absolutos exige uma teoria da transição, pois, evidentemente, e diferente de conclusões fatalistas passadas acerca da dinâmica histórica do sistema do capital – sobre o fim automático ou internamente dado do sistema, presente em diferentes contextos do século 20, durante a Segunda ou Terceira Internacionais –, é apenas a intervenção ativa de homens e mulheres, especificamente das forças sociais ligadas ao trabalho, que pode colocar a humanidade em um trânsito civilizatório para além do domínio totalizante do capital, e; (e) o “rumo a uma teoria da transição” que dá continuação ao título, coloca a ideia de trabalho a ser feito, que precisa ser coletivamente produzido, ainda que a partir dos lineamentos expressos em Beyond Capital.
Procuraremos apresentar as características gerais de uma teoria da transição a partir desses lineamentos, com dois movimentos conectados. Primeiramente, buscando mostrar como a questão da transição apareceu em teorias de grandes dirigentes da principal tentativa falhada de transição no século 20, ou seja, a russa, e as observações críticas de Mészáros sobre ela. Em segundo lugar, tendo o âmbito do poder de Estado (e de seu fenecimento) como elemento principal, parte orgânica e material do sistema, e não uma mera “superestrutura jurídico-política”, sem o qual não se pode produzir uma efetiva teoria socialista da transição.
Lenin, a revolução russa e os dilemas da transição
Quando a Revolução Russa eclodiu vitoriosa em outubro de 1917, Antonio Gramsci, desde a Itália, a saudou como “Uma revolução contra O capital” [0]. O feito e a audácia das classes trabalhadoras russas e dos bolcheviques teve que se materializar contra a imensa maioria do marxismo oficial e tradicional da época. Especialmente porque a possibilidade de uma transição socialista se desenvolver (e/ou ser iniciada) em países não adiantados do sistema do capital não estava prevista e não era tida como uma das hipóteses prioritárias de trabalho para a teoria marxiana da revolução.
Em suma, os bolcheviques tiveram que levar a teoria social de Marx, como costuma acontecer com acontecimentos de importância histórico-universais, por caminhos não previstos e debaixo de condições sócio-históricas por demais desfavoráveis. A Lenin cabe um papel fundamental aqui – especialmente após a sua virada (e, por consequência, do conjunto da orientação política dos bolcheviques) com as famosas Teses de abril –, com suas reflexões teóricas mais abrangentes em O Estado e a Revolução e com uma série de textos de intervenção após a tomada do poder de Estado na Rússia.
Uma importante primeira observação se deve ao fato de que a própria orientação para a tomada de poder de Estado no antigo império czarista se ligava à tese de quebra do “elo mais fraco” da cadeia internacional do sistema e a uma avaliação terminal, madura ou apodrecida para o momento de vida do capitalismo em escala mundial. São esclarecedoras as palavras de Deutscher:
“O que estava errado em suas expectativas não era simplesmente o calendário dos acontecimentos revolucionários, mas a suposição fundamental de que o capitalismo europeu estava no fim de sua carreira. Subestimaram, grosseiramente, o poder de adaptação do capitalismo e a atração que tinha sobre as classes trabalhadoras. (…) A tragédia histórica do bolchevismo, no período heroico, foi a recusa não só de aceitar esse fato, como também em levá-lo em conta. (…) Esse quadro do mundo resultou de algo mais do que um erro de julgamento político. Refletiu a incapacidade psicológica do bolchevismo inicial em aceitar seu próprio isolamento no mundo, incapacidade comum a todos os líderes da Revolução (…)” (Deutscher, 1968, p.479).
Ou, ainda, as de Claudín, citando Lenin: “A união dos comunistas cresce em todo o mundo. Dentro de pouco tempo assistiremos à vitória do comunismo em todo o mundo, veremos a fundação da República Federativa Mundial dos Sovietes” (Lenin apud Claudín, 1985, p.96).
É verdade que essas perspectivas começaram a se modificar já no início da década de 1920, e que sob a influência de Lenin e Trotski a Internacional Comunista defendeu a adoção da política de frente única dos trabalhadores, uma vez que o sistema em nível internacional passou a demonstrar uma “estabilização relativa”. Esse problema de fundo, ou seja, o insulamento da revolução mundial nos limites geográficos do antigo império dos Romanov, teve impactos sérios, altamente limitantes e autocontraditórios para as medidas políticas e sociais adotadas (muitas delas necessárias, mas indesejadas).
Todavia, no que diz respeito a uma teoria de transição propriamente dita, serviram para aprimorar ou tornar concretos alguns elementos contidos na elaboração mais geral exarada em O Estado e a Revolução, de meados de 1917, ainda que com as autocontradições mencionadas. Ou seja, os dirigentes soviéticos buscaram conciliar duas dimensões cruciais de uma orientação efetivamente socialista que o desenvolvimento histórico estava tornando potencialmente incompatíveis: por um lado, a teoria de transição no contexto de órbita da Revolução Russa foi enriquecida com elementos concretos da realidade nacional soviética pós-revolucionária; mas, por outro, expôs limites contidos em sua própria elaboração leniniana mais geral de 1917.
Lenin, Trotski e os demais revolucionários russos [1] tiveram que realizar o aprimoramento ou o desenvolvimento de elaborações marxistas sobre a transição combinando a continuidade aos “princípios gerais” recolhidos das indicações marxianas anteriores [2] – especialmente a partir da “análise concreta da situação concreta”, fórmula que necessariamente opõe fidelidade metodológica a dogmatismo [3]– e, ao mesmo tempo, sendo compelidos a não desconsiderar os dilemas políticos concretos recebidos da realidade russa. Assim, é como se eles entendessem possuir uma espécie de “bússola” ou instrumento de localização (princípios mais gerais da teoria de Marx sobre a transição), que os ajudava a se manter no caminho certo, ainda que esse mesmo instrumento de localização não os indicasse as sendas efetivas que deveriam percorrer. Ainda, em muitas ocasiões eles eram compelidos a tomar desvios que não estavam contidos em seus planos originais, e que os distanciavam das indicações da “bússola”, mas que não podiam evitar de tomar. Por vezes, nomeavam os desvios como desvios e sabiam que se afastavam do caminho desejado. Outras vezes, interpretavam os desvios como parte do caminho correto, tão imersos que estavam com a tarefa titânica de sobreviver, manter e desenvolver uma experiência revolucionária em uma época que se tornava cada vez mais contrarrevolucionária. Pensamento e realidade, como o próprio Marx tinha afirmado em 1843 em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução, tenderam a se separar no plano da efetividade histórica.
Lenin, em O Estado e a Revolução, tinha concebido o novo Estado – transicional – dos trabalhadores como um “semi-Estado”, um “Estado burguês sem burguesia”, e buscou compilar os ensinamentos de Marx e Engels sobre o Estado e sua superação a partir principalmente do exemplo da Comuna de Paris. As observações de Lenin podem ser assim resumidas: (a) é necessário “quebrar” a máquina burocrático-militar-administrativa do Estado burguês; (b) o proletariado tem necessidade de criar uma nova máquina estatal em definhamento, um “semi-Estado”, já que haveria a supressão do exército como um corpo permanente separado e a instituição do armamento geral do povo; os funcionários e magistrados seriam eleitos, removíveis a qualquer tempo e receberiam um “salário operário”; o parlamento e os corpos legislativos seriam substituídos por “assembleias de trabalho”, ao mesmo tempo legislativas e executivas; a democracia, assim modificada pela sua radicalização e aprofundamento, de sua modalidade formal para a real, sofreria até certo ponto um regresso à sua vertente mais “antiga”, o que ele chamou de “democratismo primitivo”, enfatizando o aspecto direto que ela adquiriria no interior da ditadura do proletariado ou da democracia socialista.
Além de outros aspectos tratados por Lenin – o debate sobre república federalista ou república una e indivisível; a relação entre o fim da democracia e o comunismo; a impossibilidade de supressão da subordinação e autoridade no começo do processo de transição; a polêmica com os anarquistas; etc. – há algumas dimensões que merecem atenção: (1) a ideia de que o capitalismo, com os trustes e o desenvolvimento monopólico, de certa forma facilitou e simplificou as funções de administração e fiscalização, que estariam agora mais acessíveis a todos, e cujos métodos deveriam ser utilizados pelo Estado pós-revolucionário: “Organizemos a grande indústria segundo os modelos que o capitalismo oferece” (Lenin, 1983, p.61); (2) no começo da transição, a necessária utilização de funcionários especializados na gestão estatal – mesmo pela coação – a serviço de todo o povo: “reduzamos os funcionários ao papel de simples executores de nossa vontade, (…) conservando, evidentemente, os técnicos e especialistas de toda espécie e categoria” (Lenin, 1983, p.61-2); (3) o caráter automático do definhamento do Estado a partir da implementação de todos os preceitos acima: “Esse programa, aplicado na base da grande produção, acarreta por si mesmo o definhamento progressivo de todo o funcionalismo (…)” (Lenin, 1983, p.61-2). Um resumo notável da visão transicional leniniana:
“Ora, o desenvolvimento do capitalismo cria as premissas necessárias para que ‘todos possam, de fato, tomar parte na gestão do Estado’. Essas premissas são, entre outras, a instrução universal, já realizada na maior parte dos países capitalistas avançados, e, depois, ‘a educação e a disciplina’ de milhões de operários pelo imenso aparelho, complicado e já socializado, do correio, das estradas de ferro, das grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc. Com tais premissas econômicas, é totalmente impossível derrubar, de um dia para o outro, os capitalistas e os funcionários, e substituí-los, no controle da produção e repartição, no recenseamento do trabalho e dos produtos, pelos operários armados, pelo povo inteiro em armas (é preciso não confundir a questão do controle e do recenseamento com a questão do pessoal técnico, engenheiros, agrônomos, etc.: esses senhores trabalham hoje sob ordens dos capitalistas; trabalharão melhor ainda sob as ordens dos operários armados). Recenseamento e controle, eis as principais condições necessárias ao funcionamento regular da sociedade comunista na sua primeira fase. Todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado, personificado, por sua vez, pelos operários armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só truste universal de Estado. Trata-se apenas de obter que eles trabalhem uniformemente, que observem a mesma medida de trabalho e recebam um salário uniforme. Essas operações de recenseamento e de controle foram antecipadamente simplificadas em extremo pelo capitalismo, que as reduziu a formalidades de fiscalização e de inscrição, a operações de aritmética e à entrega de recibos, que são, todas, coisas acessíveis a quem quer que saiba ler e escrever. Quando a maioria do povo efetuar, por si mesma e em toda a parte, esse recenseamento e esse controle dos capitalistas (transformados em empregados) e dos senhores intelectuais que conservarem ainda ares de capitalistas, esse controle tornar-se-á verdadeiramente universal, geral, nacional, e ninguém saberá mais ‘onde meter-se’, para escapar a ele. A sociedade inteira não será mais do que um grande escritório e uma grande fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salário. Mas essa disciplina de ‘oficina’ (…) não é absolutamente o nosso ideal nem o nosso objetivo final; ela é apenas a transição necessária (…). Quanto mais democrático for o Estado, constituído por operários armados e deixando, por isso mesmo, de ser ‘o Estado no sentido próprio da palavra’, tanto mais rápida será também a extinção de qualquer Estado” (Lenin, 1983, p.124-6).
A visão leniniana sobre a transição socialista variou conforme as circunstâncias, mas manteve uma concepção de fundo mais geral – criar as condições materiais e econômicas para o trânsito socialista (inexistentes na Rússia) e impedindo, da forma mais determinada possível, a perda da dominação política do proletariado – e se desenvolveu mais ou menos assim: (1) antes da tomada do poder e da guerra civil, a transição para o socialismo seria lenta e haveria a coexistência entre um segmento econômico estatal-monopolista e outro burguês privado: “Lenin propunha, de imediato, a criação de um Estado democrático-revolucionário, uma ditadura da democracia dirigida pelo proletariado, que instaurasse o capitalismo monopolista de Estado [4], tanto como meio de combater a catástrofe iminente, como para se aproximar do socialismo, para se criar as condições da transição” (Del Roio, 2007, p.73); (2) durante a guerra civil e o “comunismo de guerra”, chega-se a cogitar a “transição direta” ao socialismo; (3) com a adoção da NEP (Nova Política Econômica), retorna-se à tentativa de consolidação de um capitalismo de Estado como via para o socialismo, aliado a medidas relacionadas a uma “revolução cultural”.
Não se pode avaliar adequadamente a questão transicional na ex-URSS sem levar em conta o papel dos sovietes – conselhos de operários, soldados e camponeses – criados pelas massas trabalhadoras ainda na primeira Revolução Russa de 1905. A busca por uma democracia de novo tipo, ou um “semi-Estado” em definhamento, tem, no destino e na função social dos sovietes durante e depois da tomada de poder de 1917, um papel crucial. É deles que deriva a nomenclatura do regime político do país: república soviética, como modalidade e contraposição a uma república meramente formal ou burguesa.
Os sovietes na Rússia, exercendo uma função mais propriamente política, passaram por um período inicial de desenvolvimento, especialmente nos primeiros anos após a tomada do poder, muitas vezes associados à tentativa de controle e administração da produção por parte de comitês de trabalhadores nas fábricas, mesmo antes dos decretos de nacionalização da indústria nacional (junho/1918) não planejados pelos dirigentes bolcheviques. Ou seja, a dualidade de poderes que estava em processo de fevereiro a outubro de 1917 atingia também a esfera da produção material. Todavia, uma articulação orgânica entre os sovietes e a administração material da produção pelos trabalhadores não frutificou de modo retroalimentador, e a necessidade imperiosa de aumentar a massa de bens produzidos, por conta do legado de destruição e carência econômica nacional decorrente da guerra mundial e, posteriormente, da guerra civil (junho/1918 a novembro/1920, basicamente), praticamente impossibilitou uma tal vinculação orgânica. Aqui temos um dos problemas mais graves para os destinos da Revolução Russa, especialmente para a produção de um Estado de novo tipo, ou de um “semi-Estado” em fenecimento.
Até que ponto os bolcheviques colaboraram para a desestruturação dos sovietes? Esse é um quesito fundamental para o problema estatal e da transição. As posições são muito variadas. Segundo Coggiola, “(…) o funcionamento dos sovietes se esvaziara durante a guerra civil (…)” (Coggiola, 2012, p.13). Um crítico anarquista diz que “Os sovietes teriam podido desempenhar na Rússia o mesmo papel das seções durante a Revolução Francesa; mas, uma vez que foram despojados de sua autonomia pelo poder central, que só deixou subsistir deles o nome, eles perderam infalivelmente toda influência fecunda no curso da Revolução. Só lhes restou arrastar a existência inútil e vegetativa dos órgãos subordinados ao Estado” (Rocker, 2007, p.44).
Um célebre trotskista: “Contrariamente às lendas espalhadas pela União Soviética, os anos de 1918 e 1919 foram pontos altos da atividade independente da classe trabalhadora soviética, mais até do que o ano de 1917” (Mandel, 1995, p.115). O mais importante biógrafo de Trotski: “Somente em 1921 o governo de Lenin tomou medidas para proibir toda oposição organizada dentro dos sovietes. Durante toda a guerra civil, os bolcheviques já haviam criado dificuldades aos mencheviques e aos socialistas revolucionários, ora colocando-os fora da lei, ora permitindo-lhes agir livremente, para voltar novamente a proibir essa atividade. As atitudes de tolerância e intransigência eram ditadas pelas circunstâncias e pelas vacilações dos partidos nos quais certos grupos se inclinavam para os bolcheviques e outros para os guardas brancos. A ideia, porém, de que esses partidos deveriam ser eliminados, em princípio não deitara raízes antes do fim da guerra civil. Mesmo durante as fases de repressão, os grupos de oposição que não concitavam abertamente à resistência armada contra os bolcheviques, ainda continuavam realizando todas as suas atividades, às claras ou clandestinamente. (…) Foi através do mecanismo dos sovietes que o governo de Lenin organizou a guerra civil; e com esse mecanismo não estava preparado para tolerar elementos hostis ou neutros. Mas o governo ainda esperava o fim das hostilidades, quando poderia respeitar as regras do constitucionalismo soviético e readmitir a oposição regular. Os bolcheviques julgavam impossível fazer isso, agora. Todos os partidos da oposição saudaram o levante de Kronstadt e os bolcheviques sabiam o que esperar deles” (Deutscher, 1968, p.551).
E ele continua com estas palavras:
“As pessoas ouviam com uma simpatia cada vez maior os agitados anarquistas que denunciavam o regime bolchevique. Se este permitisse, naquele momento, eleições livres para os sovietes, seria quase certamente afastado do poder. (…) Mas se existisse outro partido igualmente dedicado e igualmente vigoroso em sua ação, esse partido poderia, em consequência de uma eleição, ter afastado o governo de Lenin sem convulsionar o jovem Estado. Mas não existia. A volta dos mencheviques e social-revolucionários teria representado a anulação da Revolução de Outubro. Teria, no mínimo, estimulado os Guardas Brancos a tentar novamente a sorte e levantar-se em armas. (…) Os anarquistas e anarco-sindicalistas (…) não pretendiam, de forma alguma, o poder. Fortes na crítica, não tinham um programa político positivo, uma organização séria, nacional ou mesmo local, nem desejavam realmente governar um país enorme. (…) O partido de Lenin recusou-se a permitir que o país faminto e emocionalmente transtornado o afastasse do poder, através de eleições, mergulhando assim num caos sangrento” (Deutscher, 1968, p.537-9).
De qualquer forma, o que Lenin parece não ter considerado é que o aumento das forças produtivas por meios e métodos capitalistas não levaria necessariamente a sociedade russa para mais perto da transição socialista. Coisa que ele parecia supor com sua concepção de capitalismo de Estado como estação intermediária entre o capitalismo e o socialismo. Que um Estado pós-revolucionário que seguisse essa via, mesmo tendo expropriado os capitalistas privados – mas que ao mesmo tempo os chamava de volta [5] e mantinha a alienação dos trabalhadores tanto na esfera econômica quanto na política, e que se via impossibilitado de superar a divisão mesma entre elas –, colaborava para a criação de uma nova submissão, já que ele não podia controlar, mas tinha de ser controlado pela dinâmica incontrolável do capital (e de uma formação social que exigia que o Estado assumisse um papel diverso na extração do trabalho excedente, papel este que não podia ter nas formações sociais capitalistas tradicionais). Que o Estado pós-revolucionário tinha, ainda mais quando não conseguisse atuar como um Estado em desaparição ou definhamento, uma localização não apenas “superestrutural”, mas de integração na própria estrutura de reprodução das condições alienadas da vida social. E isso por uma necessidade “orgânica”. Ou seja, não se pode ter ao mesmo tempo uma estrutura material que mantém ou intensifica a perda dos trabalhadores do controle de suas condições de trabalho e existência, e um Estado que supostamente é “deles”, uma vez que o Estado não pode ser entendido como uma via para a emancipação.
Um Estado desse tipo é um Estado que não pode deixar de ter um caráter funcional à reprodução ampliada do capital. Ou seja, política e economia não estavam e nem podiam estar, como as propostas de Lenin pareciam indicar, em uma relação de subordinação ou de controle da segunda pela primeira, mas faziam parte de uma nova totalidade orgânica estrutural em gestação, que as colocava em uma integração/vinculação qualitativamente distinta.
Lenin acabava agindo involuntariamente contra os seus próprios objetivos socialistas. E isso dizia respeito para qualquer um que estivesse envolvido em uma tal contradição. A sua grandeza e o seu papel duradouro para a causa e a história de emancipação do proletariado – além de suas reflexões e desenvolvimentos teórico-políticas para campos até então não muito explorados pela teoria social de inspiração marxiana – está em ter lutado por todos os meios à sua disposição para sair de um dilema que a história tornou insolúvel naquelas circunstâncias adversas. Aqui, Engels nos apresenta uma reflexão que acaba por tragicamente servir para ele e os bolcheviques:
“A pior coisa que pode ocorrer a um líder de um partido radical é ser obrigado a tomar o governo numa época em que o movimento ainda não está maduro para o domínio da classe que representa e para a realização das medidas que esse domínio implica (…). Ele necessariamente se encontra em um dilema. O que ele pode fazer contrasta com todas as suas ações anteriores, com todos os seus princípios e com os interesses presentes do seu partido; o que ele deve fazer não pode ser realizado (…). Quem se coloca nessa posição difícil está irrevogavelmente perdido” (Engels apud Deutscher, 1968, p.420).
A “alienação burocrática” não tinha base fundamental na “esfera estatal” – ainda que sem esta, aquela não teria sido possível –, mas nas relações socioeconômicas e materiais da Rússia pós-revolucionária, com sua inédita combinação entre política e economia. Parece que foi isso que permaneceu ausente do horizonte teórico e político dos bolcheviques. Provavelmente foi Mészáros aquele que mostrou de modo mais profundo os elementos que compõem essa ausência – e que estão ligados em “última análise” à necessidade de superação da “autoalienação do trabalho” ou à ultrapassagem histórica positiva da divisão social-hierárquica do trabalho:
(a) o aspecto social e histórico inerentemente problemático das formações de classe, mesmo da classe do trabalho, foi mais ou menos negligenciado pelos bolcheviques: minimização dos efeitos devastadores da contradição (dominação) da classe em relação aos indivíduos que a compõem, e não apenas da contradição (dominação) de uma classe em relação à outra [6]. Pois “uma vez vencida e expropriada a classe capitalista, a contradição estrutural objetiva entre classe e indivíduo é ativada na sua máxima intensidade, sempre que o fator dos antagonismos interclasses é efetivamente removido ou, pelo menos, transferido para o plano internacional” (Mészáros, 2002, p.1026). “(…) a classe é, paradoxalmente, tanto o veículo necessário quanto o agente ativo da tarefa histórica da emancipação socialista e, ao mesmo tempo, também um obstáculo fundamental à sua realização” (Mészáros, 2002, p.1036). Assim, “(…) a hierarquia – assim como a dominação e a repressão que acompanham a hierarquia imposta – constitui uma determinação estrutural fundamental da existência da classe como tal (…)” (Mészáros, 2002, p.1038);
(b) o Estado pós-revolucionário passa a ter funções econômicas reguladoras distintas do Estado burguês tradicional: “(…) o Estado pós-revolucionário combina, como norma, a função do controle do processo político geral com a do controle do processo de vida material da sociedade. É a interação íntima entre os dois processos que produz dificuldades aparentemente insuplantáveis para a dissidência e a oposição” (Mészáros, 2002, p.1028);
(c) por não levar em conta esses fatores, Lenin (e os bolcheviques), “simplesmente não pôde visualizar a possibilidade de uma contradição objetiva entre a ditadura do proletariado e o próprio proletariado” (Mészáros, 2002, p.1019).
Quando esses elementos se ligam a uma situação histórica em que o início da revolução no “elo mais fraco” não é seguida de revoluções nos demais elos, especialmente nos mais fortes do sistema, a transição iniciada se vê paralisada, bloqueada e enredada em dificuldades estruturais virtualmente proibitivas.
Assim, vimos que Lenin foi o primeiro a chamar a atenção para as “deformações burocráticas” do novo Estado pós-revolucionário. Para ele, a burocracia podia ser entendida tanto como sinônimo de ineficiência ou excesso de procedimentos, quanto como um grupo social, um corpo de funcionários. Ele buscou lutar contra a burocracia em suas duas acepções de várias maneiras: reduzir fortemente o número de membros do partido que havia aumentado indiscriminadamente desde a guerra civil; dissolver órgãos governamentais; punir funcionários negligentes e ineficientes; incorporar novos quadros operários na estrutura do partido; etc. E não é improvável que tenha mesmo notado que a burocracia como um corpo de funcionários com interesses próprios – a maior parte recrutada e convocada da antiga estrutura estatal czarista – estava não apenas se enraizando no novo Estado, e que ele considerou que não tinha se modificado essencialmente em relação ao antigo, mas que os próprios militantes comunistas estavam se burocratizando (nos dois sentidos). Portanto, Lenin entendeu a burocracia como um grupo social, mas também como um processo, um movimento de burocratização.
E aqui podemos perceber alguns elementos contraditórios existentes no interior da própria teoria leniniana de transição socialista: a convivência tensa e no limite incompatível entre, por um lado, a tese de centralização, eficiência, cópia dos métodos mais avançados capitalistas na esfera da produção e seu correspondente “desenvolvimento das forças produtivas”, tarefa que a tudo antecedia como forma de construir uma base econômico-material para o socialismo, com empresas estatais grandes, eficientes e mais ou menos aproximadas aos grandes monopólios do Ocidente, sem um processo mesmo que marginal de aumento de espaços socioeconômicos ou políticos proletários [7]; e, por outro lado, a menção ao processo de fenecimento do Estado socialista, ou do “semi-Estado”, que ele mesmo já tinha teorizado em O Estado e a Revolução como sendo o objetivo dos marxistas.
Assim, as medidas leninianas de combate à burocracia nas suas duas acepções (conjunto de procedimentos e agrupamento social) não continham as vias, mesmo que limitadas a princípio por conta das circunstâncias brutalmente desfavoráveis, para o processo de “desestatização socialista”, que precisavam ser consideradas desde aquele momento, por mais insuficientes que fossem. Se o novo aparelho de Estado não estava se mostrando diferente do aparelho de Estado czarista; se os comunistas estavam eles mesmos se burocratizando; se o crescimento do Estado estava se dando de modo espontâneo; então, como pensar e agir para o definhamento do “Estado dos trabalhadores”? As medidas de Lenin ficaram restritas ao âmbito da própria nova máquina estatal – que já era uma espécie de fusão do partido com o Estado – em processo de “burocratização”. Por isso, é possível afirmar que Lenin buscou, da maneira como pôde, “lutar burocraticamente contra a burocracia” (Rodrigues e De Fiori, 1978, p.61), ou que “Não há, portanto, em Lenin a indicação sobre as formas práticas do processo de desestatização socialista, como concretização e desenvolvimento do caráter semi-estatal da ditadura do proletariado (…)” (Martorano, 2002, p.138).
*Parte 1 de 3 do artigo intitulado Mészáros e a transição para além do capital, publicado na coletânea Mészáros e a crítica da experiência soviética (Instituto Lukács: Maceió, 2017). Com ligeiras modificações ortográficas.
A continuação deste artigo virá com o texto As antinomias da transição socialista na URSS: de Stalin a Gorbachev.
Notas
[*] Estamos cientes dos ensinamentos de Walter Benjamin na sua sétima tese sobre o conceito de história: “(…) Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” (In: Lowy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005, p.70).
[0] À época, Antonio Gramsci considerava como “objetivista” o mais profundo estudo marxiano sobre economia política.
[1] Nikolai Bukhárin, para mencionar apenas mais um deles, é outro líder da Revolução de Outubro que desenvolveu elaborações importantes sobre a problemática da transição. Não poderemos, todavia, analisá-las aqui.
[2] Alguns dos “princípios gerais” marxianos sobre a transição: (a) “despedaçar” a máquina estatal burguesa, pois sua utilização é incompatível com a finalidade da emancipação econômica do trabalho; (b) unificação decisória dos rumos da vida social entre as dimensões econômica e política, buscando eliminar progressivamente o posicionamento de um aparato estatal-burocrático separado e colocado “por cima” da sociedade; (c) uma época de transformações revolucionárias que atingiria em um lapso de tempo mais ou menos próximo uma série de rupturas políticas interdependentes em diversas latitudes e, portanto, necessariamente internacional, abrangendo alguns dos países mais desenvolvidos do sistema; (d) impossibilidade de “destruir” o Estado como tal, sendo possível apenas a sua transcendência, com o desenvolvimento da autoadministração da produção e reprodução da vida social pelos produtores associados, etc.
[3] Foi Lukács em História e consciência de classe, de 1923, quem buscou mostrar a diferença entre ortodoxia e dogmatismo, tendo o critério do método marxiano como o parâmetro fundamental. A fórmula leniniana da “análise concreta de uma situação concreta” como a alma do marxismo é antidogmática por natureza. É bom ter em mente que o método marxiano não é um conjunto de formas lógicas separadas e exteriores à história efetiva. Aqui, método e história estão necessariamente vinculados, e o primeiro não é um conjunto de regras aplicadas “de fora” a cada conjuntura específica. O método marxiano busca ser uma expressão dos modos de ser da realidade histórica cambiante do capital, e tem a contradição capital-trabalho como elemento dinamizante.
[4] Capitalismo de Estado para Lenin era “(…) um laço intermediário entre a pequena produção e o socialismo, como um meio, um caminho e um método de incrementar as forças produtivas” (Lenin apud Rodrigues e De Fiori, 1978, p.28).
[5] “Herdamos o velho aparato de Estado e isso foi nossa infelicidade. Muito frequentemente, essa máquina estatal trabalha contra nós. Em 1917, depois de termos tomado o poder, os funcionários começaram a nos sabotar. Ficamos muito assustados e pedimos: “Por favor, voltem a seus postos”. Eles voltaram, mas isso foi nossa desgraça. Temos agora um enorme exército de funcionários, mas nos faltam pessoas instruídas para exercer um efetivo controle sobre eles. Na prática, acontece frequentemente que, na cúpula, onde temos o poder político, a máquina funciona de algum modo; porém, embaixo, os funcionários têm o completo controle e o exercem de tal maneira que anulam nossas decisões” (Lenin apud Rodrigues e De Fiori, 1978, p.42-3).
[6] Ou seja, “(…) as classes são dominadas não apenas pelas pessoas da outra classe, mas também pelos imperativos estruturais objetivos do sistema de produção e da divisão do trabalho historicamente dados” (Mészáros, 2002. p.1038).
[7] Segundo Mészáros, “Lenin, (…) preferindo “ações” a “palavras”, estava demasiado ocupado em tentar espremer a última gota de possibilidade socialista prática do aparato instrumental objetivo de sua situação (…). Quando Lenin começou a concentrar-se nos terríveis perigos de uma crescente dominação dos ideais do socialismo pelas “instituições da necessidade”, já era muito tarde – não só para ele, pessoalmente, mas historicamente muito tarde – para reverter o curso dos acontecimentos. O ideal da ação autônoma da classe trabalhadora foi substituído pela defesa da “maior centralização possível”. Segundo as palavras de Lenin: “requer e pressupõe a maior centralização possível de produção em larga escala através do país. Ao comando central de toda a Rússia, portanto, deveria ser dado definitivamente o controle direto de todas as empresas de dado ramo da indústria. Os centros regionais definem suas funções na dependência das condições locais de vida etc., de acordo com as diretrizes gerais de produção e com as decisões do centro”. Qualquer outra ideia aquém dessa centralização era condenada como “anarcossindicalismo” regional. Tanto os sovietes como os conselhos de fábrica foram destituídos de qualquer poder efetivo e, no decorrer do debate sindical, qualquer tentativa de assegurar mesmo um grau bem limitado de autodeterminação para a base da classe trabalhadora era descartada como “tolice sindicalista” ou como um “desvio em direção ao sindicalismo e ao anarquismo”, vista como uma ameaça direta à ditadura do proletariado. A ironia cruel de tudo isso é que o próprio Lenin, totalmente dedicado à causa da revolução socialista, contribuiu para paralisar as mesmíssimas forças da base da classe trabalhadora às quais, mais tarde, voltaria pedindo ajuda, uma vez percebidos por ele os perigos dos desenvolvimentos que, na Rússia, iriam culminar no stalinismo” (Mészáros, 2002, p.1022).
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Referências
CLAUDÍN, F. A crise do movimento comunista: a crise da Internacional Comunista. São Paulo: Global, 1985.
COGGIOLA, O. Trotsky, Stalin e a burocracia da URSS. In: TROTSKY, L. Stalin – Biografia. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2012, p.7-196.
DEL ROIO, M. Lenin e a transição socialista. Lutas & Resistências, Londrina, n.3, v.2, p.67-82, 2007.
DEUTSCHER, I. Trotski – O profeta armado (1879-1921). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
LENIN, V. I. O Estado e a revolução. São Paulo: Editora Hucitec, 1983.
MANDEL, E. Trotsky como alternativa. São Paulo: Xamã, 1995.
MARTORANO, L. A burocracia e os desafios da transição socialista. São Paulo: Xamã – Anita Garibaldi, 2002.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
ROCKER, R. Os sovietes traídos pelos bolcheviques. São Paulo: Hedra, 2007.
RODRIGUES, L. M.; DE FIORI, O. Lenin: capitalismo de Estado e burocracia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
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