Por: Mário Italo, de Fortaleza e Gabriel Santos, de Maceió
A teoria marxista desenvolvida ao longo dos anos chega a determinada noção sobre o Estado: todo Estado e o aparelho estatal são instrumentos para manter o poder e a dominação de uma classe sobre outra, desta forma todo Estado é uma ditadura de classe. Esta ditadura de classe pode mudar sua forma em vários momentos, assumindo hora uma dominação velada, por meio da participação popular, hora uma dominação aberta por meio de uma ditadura, por exemplo.
Apesar disto, os marxistas não igualam estas diferentes formas de dominação, ou diferentes formas de Regime do Estado burguês, tampouco são indiferentes sobre estas. Muito pelo contrário. O marxismo desde sua origem travou batalhas duras contra o anarquismo que colocava um sinal de igual entre uma República democrática e um Estado ditatorial dirigido por um general ou uma monarquia liderada por um rei. As organizações marxistas devem ser cirúrgicas nas analises sobre os Regimes do Estado burguês, atuando em diversos casos para modificar um Regime que destruía e colocava as organizações operárias na ilegalidade, para um Regime mais democrático, com liberdade de imprensa, individuais, de manifestação, etc.
Lênin escrevia durante o calor da revolução de Outubro, entre agosto e setembro, sobre o papel do Estado burguês e suas formas de dominação: “Se Engels disse que sobre a República Democrática o Estado segue sendo ‘o mesmo’ que sobre a monarquia, ‘uma máquina para a opressão de uma classe por outra’, isto não significa de modo algum, que a forma de opressão seja indiferente para o proletariado como ‘ensinam’ alguns anarquistas. Uma forma de luta de classes e de opressão de classe mais ampla, mais livre, mais aberta facilita em proporções gigantescas a missão dos trabalhadores em luta pela destruição das classes no geral”
Seria absurdo dizer que não se tem diferença entre uma ditadura ou entre uma democracia, com o argumento de que em ambas a classe trabalhadora continua sendo explorada. Qualquer pessoa de bom senso irá defender que uma democracia é um regime muito melhor para os trabalhadores alcançarem suas reivindicações. Sendo assim, os marxistas buscam entender e definir cada forma de regime, identificando os avanços e melhorias para a luta da classe trabalhadora que cada um destes pode ter. Da mesma forma que os marxistas fazem uma diferenciação entre os regimes existentes, também se deve buscar fazer identificações e analises sobre os diferentes tipos de governo.
Nenhum governo é igual ao outro, apesar de todos, dentro do Estado burguês, serem no fim governos burgueses. Saber diferenciar os governos é fundamental porque arma a política adequada para conseguir combatê-lo. Caso igualássemos todos os governos, era só levantarmos sempre a mesma palavra de ordem. Seria mais fácil, mais não seria uma política revolucionária.
Um governo de Frente Popular, onde temos uma organização vinda da classe trabalhadora no Poder em conjunto de partidos burgueses, não é igual a um governo puro sangue da burguesia. Logo, merecem tratamentos diferentes. Nahuel Moreno durante a década de 70 apontou isto da seguinte forma:
“Nosso Partido considera que é um grave erro ultra-esquerdista ignorar as diferenças que existem entre os distintos regimes burgueses, dissolvendo esses regimes concretos e suas diferenças concretas em caracterização histórico-sociológica de que todos eles são burgueses, e por tanto exploradores da classe. Pelo contrário, um marxista autêntico não um ultra-esquerdista, sabe distinguir cuidadosamente os distintos regimes o formas de governos burgueses, e sabe diferenciar os superiores dos inferiores.”
Por exemplo, caso exista um movimento democrático e republicano, em um país dominado por uma ditadura ou uma monarquia, o papel dos revolucionários é apoiar o movimento democrático, mesmo este podendo conter organizações liberais, burguesas ou traidoras do movimento de massas. O papel da organização revolucionária seria apoiar o movimento democrático colocando a diferença com a democracia que quer a burguesia, criticando esta, e criticando os partidos operários que caíssem nas ilusões da burguesia.
Da mesma forma, um marxista não pode se manter neutro em uma guerra entre uma potencia imperialista e um país colonial, mesmo este podendo ser governado de forma autoritária. Caso os Estados Unidos declarassem guerra ao Irã, o papel dos marxistas era criticarem a atitude norte-americana e dar apoio ao Irã, apesar do reacionário regime dos Aiatolás que impera dentro do país persa.
Assim também, caso um governo de Frente Popular é ameaçado por um golpe de estado organizado pela burguesia, o papel dos marxistas é se colocarem contrários a este golpe e cerrarem fileiras lado a lado com as organizações de Frente Popular contra a investida da burguesia, mesmo sabendo que estas organizações são traidoras do movimento de massas.
Moreno escreveu em sua famosa polêmica com a OCI: “Todo partido trotskista, toda corrente revolucionária do movimento operário que não seja ultra esquerdista, nem sectária, tem como política, quando existe um enfrentamento político-econômico bastante grave entre os distintos setores da burguesia (levante fascista, invasão imperialista, enfrentamento nas ruas, sabotagem burguesa e guerra civil) alinhar-se ao campo que considera mais progressivo. Se trata de um levante fascista ou bonapartista contra um governo de Frente Popular, democrático ou bonapartista parlamentar, nos alinhamos ao “campo” deste último, inclusive, muito excepcionalmente, podemos chegar a acordos práticos, estritamente delimitados, para a luta.”
Trotsky, por sua vez, ao falar sobre a defesa da democracia burguesa em enfrentamento a formas reacionárias de dominação da burguesia, escreveu da seguinte forma: “Se a atrasada consciência da classe impõe aos revolucionários a consigna de defesa da democracia burguesa, a defendemos, mas sem defender a política burguesa ou reformista, partidária ou governamental”
Em momentos que a democracia burguesa está sendo atacada e corre o risco de retroceder, é preciso defendê-la. Se ela retrocede será mais ou menos favorável à classe trabalhadora? Existe a possibilidade de se trocar a democracia burguesa por uma democracia operária ou a democracia burguesa vem sendo alvo de ataques para perder as poucas liberdades que tem e se aproximar de um regime bonapartista? Se a situação for retroceder e ficar mais desfavorável à classe trabalhadora é preciso ir com unhas e dentes impedir que isto aconteça. Por mais que para fazer isto, seja preciso políticas unitárias com organizações de conciliação de classes e até com alguns grupos burgueses.
Moreno em uma polêmica com o Secretariado Unificado explica: “Em circunstâncias determinadas e precisas. Os trotskistas têm a obrigação de defender a democracia burguesa e suas instituições frente ao fascismo e a reação bonapartista […] Pelo momento, enquanto a maioria da classe trabalhadora continua sobre as bases da democracia burguesa, nós estamos prontos para defendê-la com todas nossas forças, contra os ataques violentos da burguesa bonapartista e fascista […] A imensa maioria da classe ainda não é consciente da destruição da democracia burguesa, se ainda confiam nela, a consigna para mobilizar só pode ser a defesa da democracia burguesa.”
Esta defesa da democracia e de pautas democráticas de forma geral, são feitas por um bloco comum em que organizações da esquerda radical, estão lado a lado com organizações majoritárias e traidoras do movimento de massas, e inclusive com setores pequeno-burgueses e burgueses. E isto não é de se entranhar, pois afinal, estas pautas são democráticas. O que se deve estranhar é a recusa de organizações da esquerda radical de participarem de uma luta em defesa da democracia, quando não está colocada a questão do Poder para os trabalhadores.
Moreno na mesma polêmica com o SU, novamente fala: “Pode ocorrer, e há ocorrido frequentemente, que reformistas e revolucionários coincidam no objetivo imediato, quer dizer, pela consigna. Mas eles sempre se diferem pelo método.”
É comum e correto nós da esquerda radical estarmos lado a lado da burocracia na luta contra a destruição dos direitos trabalhistas, mesmo que os atos e atividades que se coloquem na defesa destes direitos sejam dirigidas pela burocracia. Assim como também é certo no caso de um líder sindical, mesmo que seja extremamente pelego, acabe sendo demitido pela patronal, nós vamos cerrar fileiras ao lado da direção deste sindicato, por mais pelega e burocrática que seja, por que entendemos que se demitem um líder sindical desta forma, imagina o que podem fazer com os demais trabalhadores. Assim também deve ser a lógica no caso do ex-presidente Lula. Se querem prende-lo por um crime sem provas e impedi-lo de ser candidato, isso representa mais uma quebra da curta democracia brasileira, e um avanço dos setores que conseguiram efetivar este ataque, ou seja, da burguesia e do judiciário. Estes avançando, a classe trabalhadora perde suas posições.
É preciso deixar claro que a condenação de Lula não é uma vitória que favorece as massas organizadas, pois faria com que elas entendam os limites do programa petista e a traição que ele representa, como alguns dizem. Pelo contrário. O maior movimento de massas de trabalhadores e camponeses que vemos atualmente no Brasil, foi os que se reuniram e mobilizaram para a defesa do direito democrático de Lula ser candidato. Caso Lula seja preso e/ou impedido de concorrer às eleições, isto representa uma derrota do movimento dos trabalhadores. A esquerda anticapitalista deve ficar fora deste processo de luta ou participar do mesmo com sua política e criticas ao que representa o projeto de conciliação de classes?
Na política não podemos colocar a nossa vontade acima da necessidade do momento e do que a realidade cobra. Todos temos vontade de superação imediata do projeto de conciliação que Lula defende, porém, essa superação não vai vir hoje, e não veio no dia 24. Aquelas organizações da esquerda radical que são indiferentes quanto à condenação de Lula, ou mesmo que secretamente, torcem pela sua condenação, estão terceirizando a tarefa de superar o lulismo ao Judiciário. Sendo assim, acabam por defender o time do inimigo.
Caso Lênin, Trotsky e o partido bolchevique tivessem deixados ou feito vista grossa quando o general Kornilov tentou dar um golpe de estado no governo provisório dirigido por Karensky com certeza a história teria sido diferente, e os bolcheviques teriam muito mais dificuldade para conseguir chegar às massas que ainda eram dirigidas pelos mencheviques e socialistas-revolucionarios. Apesar das traições do Governo Provisório, da prisão que este efetuou sobre os bolcheviques, da violência que exerceu sobre as massas, os bolcheviques pegaram em armas para defendê-lo, e somente em seguida “acertar as contas” com Karensky. Em sua biografia Trotsky nos conta que sua vontade inicial foi de deixar o general Kornilov pegar os mencheviques e levantá-los pela gola, porém o mesmo explica que na política não podemos ser movidos por vontades e desejos de vingança.
Trotsky nos conta: “Os bolcheviques no permaneceram neutros entrem o campo de Karensky e Kornilov. Lutaram no primeiro contra o segundo. Enquanto participavam nas primeiras linhas da luta contra Kornilov, os bolcheviques no tomaram as mínimas responsabilidades pela política de Karensky. Pelo contrario, o denunciaram como responsável pelo ataque reacionário e como incapaz de superá-lo.”
Lênin por sua vez, nos fala: “Seria o maior dos erros crer que os trabalhadores revolucionários para vingasse, digamos assim, dos socialistas revolucionários e mencheviques pelo apoio prestado por estes a campanha de repressão contra os bolcheviques, aos fuzilamentos e ao desarmamento dos trabalhadores, poderiam ‘se negar’ a apoiar esses partidos frente a contra-revolução”.
É importante colocar que tanto Trotsky quanto Moreno apontam que o central para definir se devemos defender a democracia burguesa ou não é a consciência das massas. Um exemplo histórico clássico foi à luta contra o fascismo e a política que o Velho teve para o Partido Socialista na Áustria.
Na Áustria de inícios da década de 30 não existia um partido comunista forte com um peso real no movimento de massas. Porém, havia um grande partido socialista que dirigia os operários austríacos. Com o crescimento do fascismo e o perigo de um golpe de estado que acabaria com a democracia burguesa e com o movimento operário organizado, Trotsky lança a proposta de que o PC austríaco deveria ter como consigna a defesa da democracia burguesa, chamando o PS para esta luta. Esta posição de Trotsky gerou polemica entre os comunistas, pois estes defendiam que era necessário ter como palavra de ordem imediata para combater o fascismo a democracia operária.
Trotsky então explica: “O que esta na ordem do dia hoje não é a antítese da democracia burguesa ou democracia soviética. Mas sim a democracia burguesa e o fascismo. Nós temos que acusar os austro-marxistas (membros do PS) não de lutar pela democracia, e sim de não lutar suficiente por ela”.
É possível fazer um paralelo com o Brasil, onde membros da esquerda radical, dizem que não devemos lutar pela defesa da democracia burguesa, e sim por conselhos operários e pela democracia operária. Porém, se não existe condições concretas de substituir a democracia burguesa por uma operária, não importa a força de vontade que estas organizações tenham, este será um trabalho verdadeiramente impossível.
Ao longo da história os revolucionários souberam defender a democracia burguesa quando as massas acreditavam nesta, assim como souberam lutar lado a lado com líderes traidores do movimento operário, quando a burguesia ameaçava estes. Desta forma, entendemos que se colocar ao lado da defesa do direito de Lula ser candidato, é a posição correta a ser feito. E é se colocar também, nas ruas, ao lado das centenas de milhares de trabalhadores do campo e da cidade, que são em essência o sujeito social da revolução brasileira, que no dia 24 lotaram as ruas das cidades do nosso País. E para estes trabalhadores, colocaremos que somos contra a política de conciliação e de aliança com a burguesia que Lula efetua, mas que achamos que ele tem o direito de ser candidato, e que o povo brasileiro tem o direito de escolher em quem quer votar para presidente.
Foto: Kandinsky | Contraste Acompanhado, 1935, Nova York, The Solomon R. Guggenheim Museum
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