Por: Michelangelo Torres. professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP
“Este manifesto, o mais genial entre todos os da literatura mundial, surpreende-nos ainda hoje pela sua atualidade”. León Trotsky (2010 p.159)
Seu nome viverá através dos séculos, e com ele a sua obra. Friedrich Engels (1976 p.214)
Introdução
Se não é possível apreciar a teoria social de Karl Marx (1818-1883) sem ler o Manifesto, também devemos dizer que não se pode conhecer a obra de Marx com uma leitura restrita ao Manifesto. Texto mais divulgado de Marx e Engels, e de maior repercussão política, apesar de não ser, de longe, a principal obra dos fundadores do socialismo científico, o panfleto preenche um lugar de suma importância no marxismo, notadamente no pensamento político de Karl Marx e na história do movimento operário moderno, ainda que constitua um texto basilar e de caráter introdutório.
Em fevereiro de 2018 comemoramos os 170 anos1 de publicação do texto programático fundador do socialismo moderno. Na última semana do mesmo mês em 18482, publicou-se às pressas um documento em formato manifesto contendo 23 páginas, no idioma alemão, com rodagem de 3 mil exemplares, em uma pequena tipografia da sede do Worker’s Educational Association, situada na casa n.46 da Liverpool Street no centro de Londres, às vésperas de uma situação revolucionária que se abriria na Europa3 e que, rapidamente, seria solapada pela reação burguesa. Sem indicação de autoria individual destacada, o panfleto era assinado apenas como Manifesto político da Liga dos Comunistas.
O projeto inicial era publicá-lo imediatamente em diversos idiomas (além do alemão, pretendia-se a publicação no inglês, francês, italiano, flamengo e dinamarquês) – projeto realizado apenas tardiamente, como é sabido. Conforme observou o historiador britânico Eric Hobsbawm:
(…)Mesmo antes da Revolução Russa de 1917, havia sido publicado em várias centenas de edições em cerca de trinta idiomas, inclusive três em japonês e um em chinês. (…) Em suma, ele não era mais um documento marxista clássico, mas se tornara um clássico político tout court (HOBSBAWM, 1998 p.295-297).
Desde então, talvez ainda hoje seja o documento político mais lido e publicado em toda a história. No Brasil, por exemplo, a primeira circulação de uma tradução em português do Manifesto foi tardia, data de 1923, levada à cabo por Otávio Brandão, influente intelectual do então recém-fundado PCB, para A Voz Cosmopolita. Muitas outras traduções e edições foram impressas de lá para cá.
Antes de mais nada, o Manifesto do Partido Comunista, ou simplesmente Manifesto Comunista – como ficaria conhecido a partir de 1872 – constitui um documento histórico. Em formato reconhecidamente original, o texto instaura um novo paradigma na história. Rompendo com o pensamento hegeliano, afirma elementos basilares do materialismo histórico-dialético (já presentes em A Ideologia Alemã4, por exemplo). Surgido no interior do movimento operário contemporâneo, cujas bases teórico-científicas foram estabelecidas originariamente por Karl Marx e Friedrich Engels, o materialismo-histórico dialético refere-se a uma teoria e método de apreensão da realidade que entende a sociedade, e sua dinâmica histórica, como a organização social para a produção e distribuição, sendo o capitalismo um estágio de caráter transitório no desenvolvimento da sociedade humana. Aliás, requer a compreensão da existência das classes vinculadas a cada fase histórica da produção. Em sua gênese, o materialismo histórico se contrapõe, ao mesmo tempo que conserva/nega alguns elementos de análise já existentes à sua época e os eleva a um patamar qualitativamente superior, é herdeiro do legado hegeliano, em especial determinadas descobertas teóricas levadas a efeito por Hegel, e suas ressonâncias no idealismo alemão dos “jovens hegelianos”. Ao mesmo tempo, herda elementos do materialismo feuerbasiano5. Tratou-se, contudo, de um acerto de contas com ambas perspectivas, como reconheceria posteriormente o próprio Marx.
O contexto revolucionário e um novo paradigma científico
Qualquer reflexão sobre a sociedade moderna capitalista é uma manifestação do pensamento moderno. A Europa presenciava, na viragem dos séculos XVIII e XIX, a desagregação de resquícios da sociedade feudal e do Antigo Regime rumo a consolidação do capitalismo. Nas primeiras décadas do século XIX a Revolução Industrial atingia o seu ápice de desenvolvimento no continente europeu, particularmente na Inglaterra. Pode-se dizer que a Revolução Industrial operou uma dupla e profunda transformação: a) trouxe, em seu bojo, transformações tecnológicas e produtivas, com novas técnicas de produção e o desenvolvimento acelerado das forças produtivas levando a um novo patamar a sociedade produtora de mercadorias; b) transformações sociais de grande monta: as mudanças sociais decorrentes da industrialização não foram secundárias, podendo-se destacar o surgimento da cidade industrial e da urbanização (e com elas o nascimento da “questão social” – os novos conflitos sociais da vida moderna), uma nova divisão social do trabalho e de organização do trabalho fabril, bem como o surgimento do proletariado (nova situação da classe trabalhadora). O processo de expansão, centralização e concentração do capital requereu a produção e ocupação de novos espaços geográficos pelo capital. Ou seja, ocorrera um quadro de mudanças políticas, econômicas e sociais profundas. Paulatinamente, a burguesia passou a dominar a vida social em todas as esferas da atividade humana, para além da produção. O individualismo burguês e a lógica concorrencial da propriedade privada se consolidavam.
Essa realidade objetiva impôs mudanças nas formas de pensamento e organização dos trabalhadores. A primeira contribuição seminal de Marx para o pensamento ocidental moderno foi constatar a insuficiência do diagnóstico empreendido tanto pelos pensadores burgueses quanto pelo nascente movimento operário, de caráter utópico e romântico. Ao fundar uma nova perspectiva de análise histórica desvendou a anatomia do mundo moderno embasado na crítica da economia política. Marx operou, portanto, uma revolução teórica no terreno das ciências sociais, a partir da incorporação e superação de suas matrizes fundadoras, a saber, a filosofia alemã idealista, o socialismo utópico francês, a economia política clássica inglesa – e acrescentemos, por que não, a filosofia clássica grega e a filosofia helenista6.
O mais intrigante é que, em 1848, o capitalismo ainda não havia se desenvolvido em sua integralidade tal qual o conhecemos, mesmo na Europa em geral, e na Inglaterra em particular, onde a fase do capitalismo industrial estava mais avançada. O modo de produção vigente não conhecia o tempo dos monopólios, seu estágio imperialista. Não havia sequer presenciado os sindicatos de massas e os partidos políticos conforme os conhecemos. Antes disso, o mercado era concorrencial. A própria burguesia7 ainda não era uma classe com as características singulares tal qual a conhecemos. O proletariado industrial moderno não era sequer a maioria da sociedade em nenhuma parte do mundo. A rigor, o mercado mundial ainda era muito rudimentar. Ainda assim, a genialidade de Marx esteve em apreender a processualidade histórica, a tendência e a dinâmica do desenvolvimento capitalista.
É preciso se ter em mente os inúmeros e equivocados tratamentos reducionistas a que sua obra foi submetida, em particular o Manifesto. Este constitui uma de suas obras estritamente políticas. Por certo, seus prognósticos são prematuros, alguns imprecisos. Contudo, o capitalismo não havia, ainda, atingido seu ápice de desenvolvimento, quando da publicação de O Manifesto. Não havia produzido todas suas contradições e, sequer, se renovado sob novas roupagens. Contudo, não queremos nos ater a seus eventuais limites, mas a seus efetivos méritos.
Marx vivenciou uma época em que se enfeixara o ciclo de revoluções burguesas e início de sua crise, bem como o ápice das mudanças resultantes da industrialização capitalista. O texto político programático símbolo dessa nova etapa ideopolítica da luta de classes é, sem dúvidas, o Manifesto Comunista (em coautoria com Friedrich Engels), de 1848, o qual destaca inclusive a dimensão internacionalista da luta e da organização dos trabalhadores contra o movimento do capital8. Como assinala, com certo exagero, Arthur Rosenberg, “antes de 1848, em todos os países, a palavra socialismo tinha um sentido absolutamente inofensivo aos ouvidos dos homens” (ROSENBERG 1986). O socialismo9, que inclusive passaria a influenciar as lutas sindicais e políticas, procura superar (tanto em termos teóricos quanto em político-organizativos) tanto a luta corporativa quanto o isolamento local e regional dos movimentos da classe trabalhadora em diversos países.
A perspectiva de crítica levada à cabo pelo seu método de abordagem científica não se contenta com a negação ou rejeição reducionista, mas a superação do objeto a se estabelecer a crítica, compreendendo seus fundamentos, condicionamentos e limites. O pensamento marxiano opera por meio de uma crítica interna ao objeto, capturando seu movimento dinâmico e suas múltiplas determinações, ao constituir suas leituras clássicas e leva-las às últimas consequências a fim de demonstrar suas contradições e insuficiências de análise. Para tanto, historicizar os elementos considerados na análise é fundamental. Ao superar o fundamento teórico da sociedade burguesa moderna, o autor nos legou uma síntese poderosa e as bases científicas para o entendimento da exploração capitalista e a superação socialista, a partir da afirmação do movimento proletário, classista e internacional. Contudo o Manifesto é apenas um documento programático embasado teoricamente no materialismo histórico que acabava de encontrar sua força social10, e não a obra fundamental de estudo e análise do capitalismo. A grande obra de Marx estaria por devir nas décadas seguintes a publicação do Manifesto, de os Grundrisse11 ao O Capital.
O movimento socialista nascente era um fato concreto na Europa. A introdução do Manifesto, a qual faz menção ao “espectro” do comunismo que ronda a Europa, é uma referência indireta a peça teatral de Shakespeare, a célebre Hamlet. Em toda sua obra, Marx utilizou-se de referências a literatura mundial, de Balzac aos gregos. Sua erudição e domínio literário eram de grandeza absurda. O Manifesto sintetiza e publiciza ideias que Marx e Engels estavam desenvolvendo pelo menos a meia década, e não algo inédito que a Liga havia votado e elaborado propriamente. Como lembra Edmundo Fernandes Dias,
É preciso afirmar que esta obra prima da política universal tem sido pouco lida e trabalhada no que tem de mais essencial: o convite radical ao deciframento da esfinge capitalista e, a partir daí, de sua transformação (DIAS 2011 p.16).
Em textos como A questão Judaica e Glossas Marginais12 [ambos de 1844], Marx já havia destacado o tema da emancipação humana para além da sociedade de classes; ao redigir sobre os tecelões da Silésia em junho de 1844 Marx já declarava que o proletariado era o elemento ativo de sua libertação, ainda que a primeira compreensão do proletariado enquanto classe revolucionária havia sido exposta nos Anais Franco-Alemães (“Introdução” à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel); o exame do trabalho alienado estava desenvolvido nos Manuscritos Econômico-Filosóficos; a concepção materialista da história presente em A Ideologia Alemã (em co-autoria com Engels); a crítica as concepções pequeno burguesas influentes entre os trabalhadores consagrada em A Sagrada Família (também redigido em parceria com Engels); a teoria da práxis nas Teses sobre Feuerbach; e a dinâmica das classes sociais em A Miséria da Filosofia. Nesta última, que antecede o Manifesto, Marx diferencia a perspectiva socialista reformista da revolucionária. Aqui, demonstra-se claro que o erro de uma análise da realidade implica em erro na proposta política, como é o caso do utopismo reformista de cariz pequeno-burguês proudhoniano, o qual recusa a ação revolucionária de transformação do capitalismo. Entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848 Marx pronunciou conferências em Bruxelas sobre temas da economia capitalista, posteriormente publicadas com o título Trabalho Assalariado e Capital. Ainda em janeiro de 1848, lê seu Discurso sobre o livre câmbio para os trabalhadores para operários alemães na Bélgica. De Engels podemos mencionar, além das obras conjuntas com Marx, sua magistral A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra e seu célebre Esboço de uma crítica da economia política. O Manifesto Comunista é, por assim dizer, um documento que sintetiza muitas das ideias de Marx (e também de Engels) formuladas em seu período de juventude, articula as teorias do movimento operário da época, em tom crítico, ao mesmo tempo que apresenta uma análise científica da formação do capitalismo e de sua dinâmica. O Manifesto oculta, no entanto, a importante batalha por ideias levada a cabo por Marx e Engels no interior da Liga Comunista. Afinal, conforme pudemos ver, nunca se restringiram a “filosofia de gabinete”, foram sobretudo dirigentes políticos e homens de ação dotados de uma capacidade intelectual inigualável.
Marx e Engels captaram a onda revolucionária de 1848, notando as contradições entre o estágio de desenvolvimento das forças produtivas em conflito com as relações sociais de produção e propriedade. Por isso a batalha levada à cabo na busca por um movimento organizado, internacionalista e embasado teoricamente no socialismo científico.
A batalha de Marx e Engels na Liga Comunista e a gênese do Manifesto
Marx já havia, portanto, “acertado as contas” com o pensamento hegeliano, de cariz idealista, impregnado na filosofia alemã dominante. O Manifesto do Partido Comunista, em verdade, foi encomendado pelo II Congresso da Liga dos Comunistas (Bund der Kommunisten), ocorrido em Londres, em novembro de 1847, que encarregava os jovens Marx e Engels da exposição pública do programa (prático e teórico) desta organização. É preciso contextualizar sua publicação. Senão vejamos.
O jovem Karl Marx havia sido expulso de Paris em 1845, em função de suas posições políticas críticas ao governo prussiano (em particular, devido a um artigo sobre a greve na Silésia). Bruxelas, onde Marx passou então a se instalar como exilado, representava a monarquia burguesa e tinha uma localização privilegiada para se estabelecer conexões internacionais, contando com uma legislação politicamente mais flexível do que em Paris (MEHRING 2013). A capital belga contava, ainda, com o importante ativismo de Wilhelm Wolff (a quem Marx dedicaria, posteriormente, sua obra O Capital, reconhecendo-o como “meu grande amigo” e “paladino do proletariado”). Marx e Engels tinham relações com membros belgas, alemães, franceses e ingleses. Conheciam as sociedades secretas socialistas e as sociedades operárias, notadamente a alemã.
Em abril de 1845, Engels viaja de Barmen a Bruxelas ao encontro de Marx. Redigiriam juntos, então, o texto A Sagrada Família. É também entre 1845 e 1846 que ambos redigem A Ideologia Alemã. Entre 1846 e 1847 a Liga cria o Comitê de Correspondência Comunista (Kommunistisches Korrespondenz Komitee), um importante passo para a articulação entre os membros da Liga, organizada por seções. Marx e Engels decidem participar ativamente do Comitê, do qual Proudhon se nega a integrar. É a partir deste comitê que, em 1847, Joseph Moll contacta Marx em Bruxelas e Engels em Paris para ingressarem na Liga. Em verdade ambos já haviam tido um contato prévio e tardaram a se somar a esta organização. Engels se aproximou da Liga dos Justos em Londres de 1843, ao passo que Marx teria entrado em contato com esta organização apenas em 1844, já em Paris. Em princípio, ambos não integraram a mesma, se limitaram a uma aproximação colaborativa, dado o caráter secreto-conspirativo, confuso e utópico da Liga. Esta, em verdade, havia surgido em função de uma cisão da antecedente Liga dos Proscritos, na década anterior. O ingresso de Marx e Engels seria para ganhar a política da direção daquela organização, empreendimento cumprido com êxito, conforme veremos.
Ocorre que a Liga dos Justos estava em crise nos anos 1840 quando realiza seu primeiro congresso, entre 2 e 9 de julho de 1847 (em que esteve presente Engels), convertendo-se em Liga Comunista a partir da decisiva influência das teses de Marx13. Marx viria a se filiar apenas no início de 1847, quando novos estatutos de funcionamento e de acordos programáticos foram se desenvolvendo. Travaram amplos debates entre o primeiro e o segundo congresso da mesma.
O segundo congresso, realizado em Londres, entre 29 de novembro e 8 de dezembro de 1847 (este contando com a presença ativa de Marx), se propôs a rever suas concepções e modo organizativo (com princípios mais democráticos em sua direção até então considerada autoritária). Como resolução do congresso, a Liga passaria a adotar o antagonismo de classes e o programa do fim da sociedade de classes e do regime de propriedade privada. O alvo da organização seria a propaganda pública, e não mais os métodos isolados de aspirações utópicas típicos de seitas conspirativas14.
Vitória das teses de Marx e Engels no interior da Liga dos Comunistas15. Como é sabido, as seitas e sociedades secretas da então Liga dos Justos – organização que, conforme dito, antecedeu a Liga dos Comunistas-, coexistia inúmeros agrupamentos organizados, dentre eles os blanquistas. Marx recupera a formação teórica do movimento operário, de Louis-Auguste Blanqui a Pierre-Joseph Proudhon. Marx e Engels são eleitos no final de 1847 para a direção central da Liga e ficaram incumbidos da redação do documento programático da organização, o Manifesto.
Importante notar que a unidade política de Marx e Engels se estendia para além da parceria intelectual em publicação de textos comuns. Em novembro de 1847, na Bélgica, Marx é eleito para a vice-presidência, ao lado do belga Jottrand, da recém-fundada Associação Democrática, que “reunia operários revolucionários e elementos de vanguarda da democracia liberal”, ao passo que Engels batalhava pelas ideias marxistas entre os militantes de Paris. Afinal, ambos batalharam para ganhar politicamente a Liga.
Em fins de 1847, após dez dias de discussão congressual, Marx e Engels são incumbidos da tarefa de redação do Manifesto Comunista. Engels entrega a Marx os Princípios do Comunismo16, uma versão preliminar do Manifesto. Marx ficou responsável pela exposição final do texto. A demora com a entrega final (uma característica de Marx era não cumprir prazos em função do que hoje denominamos por produtivismo acadêmico) fez com que membros do Comitê Central da Liga Comunista cobrassem o Comitê distrital de Bruxelas, carta datada de 24 de janeiro de 1848, apressando Marx a entregar o manifesto público até o início de fevereiro sob a seguinte pena, conforme recebeu notificação. A Liga Comunista lembra:
“o cidadão Marx de que serão adotadas contra ele severas sanções caso o Manifesto do Partido Comunista, de sua redação ele foi encarregado no último congresso, não chegar a Londres até o próximo dia 1º de fevereiro. Caso o cidadão Marx não for redigir o Manifesto, o Comitê Central o intima a devolver imediatamente os documentos a ele facilitados pelo congresso”. (apud NOGUEIRA 2003 p.16)
Segundo alguns comentadores indicam, a redação às pressas do Manifesto foi secretariada pela esposa de Marx, Jenny von Westphalen. Sua publicação foi, sem dúvidas, um avanço importante no interior do movimento operário (e do socialismo europeu) ao destacar a importância de se estabelecer o estudo científico da estrutura econômica da sociedade burguesa, ou seja, produzir um programa político embasado cientificamente, isto é, com sólidas bases teóricas para a ação revolucionária, e não restrito a propostas utópico-conspirativas. Conforme Marx escreve em correspondência com Proudhon, seu esforço estava em articular os estrangeiros (composição bastante presente nos círculos políticos, como a própria Liga dos Justos) em torno dos movimentos socialistas na Alemanha, França e Inglaterra, dando uma batalha ideológica em torno das ideias do socialismo científico e do internacionalismo – “a fim de se libertar de suas limitações nacionais”17.
O panfleto, originalmente com pouco mais de vinte páginas, representa um documento político-programático, ao mesmo tempo que uma análise histórica, isto é, uma teoria da realidade e uma crítica do presente integradas ao projeto de emancipação proletária. Tratava-se de apresentar ao proletariado um conteúdo programático embasado em sólidas bases científicas. Na última semana de fevereiro de 1848 o Manifesto foi publicado. Quase que simultaneamente (embora sem conexão causal), explode uma insurreição em Paris, na madrugada de 24 de fevereiro daquele ano. O processo se estendeu na Suiça, seguida pela Itália, França, Renânia, Prússia, Viena, Bavaria, Áustria e Hungria. Como toda primavera, a Primavera dos Povos teve seu fim, esmagada pela reação das forças dominantes. A contrarrevolução avança e Marx seria novamente expulso, desta vez da Prússia (Colônia), após novas atividades de propaganda política.
Após o contexto de 1848, em que foi publicado o Manifesto, Marx e sua esposa seriam temporariamente presos, assim como outros refugiados estrangeiros, e expulsos, sob a Lei Marcial. “Depois que O manifesto do partido comunista saiu das prensas, Marx e Engels cruzaram a Europa de Bruxelas a Berna, de Paris a Colônia, escapando de mandados de prisão e espiões prussianos para apressar a destruição do ancien régime da Europa”, relata um dos biógrafos de Engels (HUNT, 2010 p.174). Mudaram-se, novamente, a Paris, a fim de impulsionar o movimento revolucionário e reorganizar a Liga na capital francesa, que já sucumbia18.
Na França, Marx redige com Engels as Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha, em nome do Comitê Central da Liga dos Comunistas. É preciso dizer que mesmo antes da Liga se dissolver, Marx e Engels sempre tiveram claro o caráter transitório da organização (basta checar suas correspondências críticas), a qual representava tão-somente uma fase embrionária e limitada do movimento organizado dos trabalhadores rumo a uma perspectiva internacional e classista. A Liga abarcou o que Engels reconheceria posteriormente, em 1885, como sendo o “primeiro movimento operário internacional e do qual sairiam muitos dos homens que iriam ocupar postos de direção na Associação Internacional dos Trabalhadores” (ENGELS 2003b p.131)19. Em certa medida, portanto, pode-se afirmar que foi na Liga que se consolidaram as ideias políticas teorizadas por Marx e Engels e que seriam mundialmente disseminadas para o movimento operário. E o texto fundador daquele programa foi o Manifesto.
Após poucos meses em Paris, Marx e Engels mudam-se para Colônia e fundam o jornal Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung), onde Marx passa a dirigir a Associação Operária de Colônia e procura organizar a resistência dos trabalhadores à reação. Em 1849, em Colônia, sofrem sanções legais e logo são absolvidos, mas convidados a se retirarem do país. Em situação de penúria financeira, Marx não consegue regressar a Paris. Com ajuda financeira externa e política dirige-se com a família a Londres, onde adentraria em um novo capítulo em sua trajetória teórico-política, do qual não trataremos neste artigo20.
Ocorre que a Liga Comunista já havia cumprido seu papel naquele estágio de desenvolvimento do movimento operário europeu. Conforme afirmavam, “(…) a primitiva e sólida organização da Liga até então se debilitou de modo considerável”, reconhecem Marx e Engels em 1850, em Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas (MARX e ENGELS s/d p.83). A proposta de dissolução da mesma, em 1852, veio do próprio Marx.
Considerações Finais
Em célebre texto de 1892, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, em verdade um fragmento de seu Anti-Dühring, ao sistematizar as correntes do socialismo pré-marxista, isto é, que antecederam o socialismo científico, Engels (1979) reconhece que o socialismo moderno é produto do contexto histórico do antagonismo de classes da moderna sociedade industrial capitalista (de suas relações sociais de produção) e, enquanto teoria, tributária da onda revolucionária francesa do século XVIII. Traz consigo uma nova concepção materialista da história e um programa político embasado cientificamente.
Desde então, o programa do marxismo passará pela defesa da socialização da propriedade privada burguesa (dos meios de produção), o controle político do Estado pelo proletariado (e a mudança do caráter de seu caráter de classe) e a regulação da alocação de recursos (controle consciente sobre os destinos da sociedade) pelo planejamento democrático. Em outros termos, a luta contra a exploração da força de trabalho, contra o domínio burguês e em defesa da livre associação dos trabalhadores autônomos. Trabalho assalariado, propriedade privada burguesa e Estado seriam, por assim dizer, um tripé a ser superado pelos comunistas.
O que nos esforçamos em demonstrar é que o Manifesto não é apenas o manifesto da Liga Comunista. Trata-se de um texto que transcende sua temporalidade e a organização que o encomendara. Constitui a base teórico-programática do socialismo e do movimento operário moderno. É preciso insistir nesse aspecto. O Manifesto corresponde a uma análise científica da realidade (ciência) ao mesmo tempo em que articula um programa de ação, organização e luta política (política). Trata-se, conforme expomos, de um texto teórico e de um documento político-programático, portanto. A teoria da realidade se liga a crítica ao presente, ao passo que o projeto de emancipação se associa ao imperativo político de transformação da ordem societal.
Por fim, cabe destacar duas observações. Engels nunca teve uma contribuição secundária no marxismo, muito pelo contrário, ainda que sua estatura teórica não tenha o mesmo estatuto de Karl Marx21. Feita esta observação, resta-nos mencionar que o impacto que o texto em tela causa é espetacular. E aqui deixo o registro de uma nota pessoal. Confesso que há anos fiz algumas escolhas, e para a principal delas foi decisivo a leitura de o Manifesto Comunista. Vale a leitura e, principalmente, sua releitura! Pode ser lido como uma iniciação crítica para um jovem secundarista ou um trabalhador simples. Requer uma leitura sem preconceitos, sem idolatrias. Desde 1848 o Manifesto tem sido o referencial básico, um ponto de partida, para aqueles e aquelas que, numa perspectiva classista e internacionalista, querem transformar o mundo. E, ao que tudo indica, enquanto houver capitalismo continuará sendo. Um brinde ao Mouro e ao General da revolução!22 Viva os 170 anos do Manifesto Comunista!
No próximo artigo, examinaremos os capítulos que compõem a obra e teceremos algumas notas críticas do conteúdo do texto. Procuraremos estimular o estudo coletivo do Manifesto a partir de um ensaio comentado que se proponha explicar ao leitor os pontos mais difíceis e complexos do texto, os interlocutores teóricos, as teses principais e os conceitos abordados.
REFERÊNCIAS
COGGIOLA, Osvaldo. Engels, o segundo violino. São Paulo: Xamã, 1995.
DIAS, Edmundo Fernandes. Revolução e História: das Teses ao Manifesto. São Paulo: Editora Sundermann, 2011.
ENGELS, Friedrich. Discurso sobre a sepultura de Marx. In: São Paulo: Edições Sociais, 1976.
__________. Anti-Düring: filosofia, economia política, socialismo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
__________. Princípios do Comunismo. In: MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
__________. Para a história da Liga dos Comunistas. In: In: MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003(b).
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
HUNT, Tristam. Comunista de casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.
MARX, karl. “Carta de Marx a Proudhon”, 5 de maio de 1846. In: Selected Correspondence, Moscou, Progress Publishers, 1965.
___________. Discurso pronunciado na festa de aniversário do “Peaple’s Paper”. In: Karl Marx e Friedrich Engels. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Omega, s/d.
MARX, K; ENGELS, F; Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas. In: Karl Marx e Friedrich Engels. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Omega, s/d.
__________. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2011.
__________. As reivindicações do partido comunista na Alemanha. In: In: MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
MEHRING, Franz. Karl Marx: a história de sua vida. São Paulo: Sundermann, 2013.
NETTO, José Paulo. Para ler o Manifesto do Partido Comunista. In: Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004.
NOGUEIRA. Marco Aurélio. Introdução: um Manifisto que fez história. In: MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
TROTSKY, León. Noventa anos do Manifesto Comunista. In: MARX; ENGELS. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.
Outras Fontes Documentais:
Estatutos da Liga dos Comunistas. Aprovado no II Congresso da Liga dos Comunistas, em dezembro de 1847. In: MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
“Carta de Marx a Proudhon, 5 de maio de 1846. In: Selected Correspondence, Moscou, Progress Publishers, 1965.
1 Na ocasião da publicação do Manifesto Comunista, Karl Marx tinha 29 anos, Friedrich Engels 27 anos. Em maio de 2018, celebraremos, também, 200 anos do nascimento de Marx.
2 Provavelmente a 23 ou 24 de fevereiro de 1848, conforme registra, dentre outros, Netto (2004 p.49).
3 A referência são as revoluções de 1848, denominadas pela historiografia por Primavera dos Povos. Em março daquele ano, imediatamente após a publicação do Manifesto, Engels escreve empolgado com os eventos que surgiam: “Á meia-noite e meia o trem chegou com a notícia gloriosa da revolução de quinta-feira, e toda a massa da população gritou, numa súbita explosão de entusiasmo, Vive la Republiqué!” (Engels apud HUNT, 2010 p.173). Contudo, Marx e Engels sobrestimaram as revoluções de 1848 quando de sua eclosão e o papel revolucionário do proletariado nelas. Conforme reconheceria posteriormente Marx, em discurso a 14 de abril de 1856 e publicado no People’s Paperr, “As chamadas revoluções de 1848 não passaram de pequenos fatos episódicos, ligeiras fraturas e fissuras na dura crosta da sociedade europeia. Bastaram, no entanto, para evidenciar o abismo que se estendia por debaixo. Demonstraram que sob essa superfície, tão sólida na aparência, existiam verdadeiros oceanos, que só precisavam pôr-se em movimento para fazer saltar em pedaços continentes inteiros de duros penhascos. Proclamaram, de forma ruidosa e ao mesmo tempo confusa, a emancipação do proletariado, esse segredo do século XIX e da sua revolução” (MARX s/d p.298).
4 Entre 1845-46, Marx e Engels redigem A Ideologia Alemã, texto que apenas viria ser publicado em 1932, na então URSS.
5 A referência é a filosofia materialista de Ludwig Feuerbach, que apesar de criticar duramente a lógica do pensamento hegeliano, rejeita tanto seu sistema quanto seu método dialético.
6 Sua tese de doutoramento em Filosofia, em Iena, defendida em abril de 1841, versa sobre o materialismo filosófico, intitulada A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro.
7 Na década de 1840, Marx se referia a burguesia como “classe média” (middle class) em países como a Alemanha, por não se constituir como a classe dominante propriamente.
8 “Pode-se afirmar que o Manifesto tem centralidade no desenvolvimento da tradição marxista, em particular para o seu pensamento político” (BRAZ, 2011 p.29). No mesmo sentido, trata-se do documento “mais influente desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, da Revolução Francesa” (HOBSBAWN, 1998 p.294).
9 Como é sabido, o termo socialismo é bem mais antigo. Mas é apenas com o avanço das formas de luta e da experiência da classe operária contra as contradições do modo de produção capitalista (fruto do processo histórico da Revolução Industrial inglesa, transição do século XVIII para o XIX) e do seu tratamento científico que adquire tal conotação.
10 “(…) mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas” já havia identificado Marx em 1843/44 (MARX, 2005 p.151).
11 Pudemos fazer uma apresentação à obra para o LeMonde Diplomatique Brasil, em forma de resenha, quando da publicação da obra Grundrisse no Brasil pela Boitempo Editorial. Consultar: http://diplomatique.org.br/review/grundise-manuscritos-economicos-de-185758-esbocos-da-critica-da-economia-politica/ (acessado em 13/02/2018).
12 Trata-se do artigo de Marx publicado no periódico Vorwärts!, intitulado Glossas Críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social de um prussiano”.
13 A Liga não surgiu comunista, mas permeada de ideias confusas e utópicas entre seus membros, em maioria artesão alemães emigrados. A palavra de ordem era a defesa da fraternidade, segundo a qual “todos os homens são irmãos” – consigna inspirada pelo comunismo artesanal, de caráter utópico, de Wilhelm Weitling (1808-1871). Com a batalha de Engels e Marx, o lema foi substituído por “proletários de todos os países, uni-vos” presente no desfecho do Manifesto, mas originariamente surgido na primeira e única revista pública da Liga, a Revista Comunista, de setembro de 1847. Weitling, era o teórico-dirigente de maior destaque da Liga até então, havendo publicado A Humanidade tal como é e tal como deveria ser (1838) e Garantias da Harmonia e da Liberdade (1842), para o qual a revolução decorreria de elementos subjetivos, como do sentimento, da vontade e da paixão. O lema presente no Manifesto aparecerá, novamente, em março de 1848, em As reivindicações do Partido Comunista na Alemanha, redigido por Marx e Engels em nome do Comitê Central da Liga Comunista (Ver Marx e Engels 2003). O Comitê era composto por Marx, Engels, Schapper, Bauer, Moll e Wolff.
14 A Liga contava com seções na França, Alemanha, Bélgica e Londres.
15 A batalha de Marx e Engels pode ser claramente identificada nas circulares dos Congressos da Liga Comunista, em suas correspondências bem como no próprio Comitê Central da organização.
16 Uma primeira proposta de texto plataforma programática da Liga havia sida apresentada por Moses Hess, em Paris, rejeitada. Os Princípios do Comunismo é um texto em estrutura de catecismo (em formato didático de perguntas e respostas), havia sido encomendado a Engels pela Liga dos Justos que, em verdade, contém muitos dos pontos presentes no Manifesto, ainda que sem a exposição histórica e estilo. A forma definitiva deste, portanto, foi de responsabilidade de Marx.
17 “Carta de Marx a Proudhon, 5 de maio de 1846. In: Selected Correspondence, Moscou, Progress Publishers, 1965, p.32.
18 Observemos, de passagem, que Marx demonstrou profunda visão política e maturidade a se opor a ação aventureira insurrecional de emigrados alemães em Paris de encamparem uma isolada insurreição armada na Alemanha naquele período. Nomes como Bakunin apoiaram o movimento, embora este, em um segundo momento, tenha se arrependido do plano aventureiro (MEHRING 2013).
19 Em outro trecho do mesmo texto, Engels reafirma: “O movimento internacional do proletariado europeu e americano é hoje tão forte que se converteram em entraves para ele não só sua primeira forma estreita – a Liga secreta -, mas também sua segunda forma, infinitamente mais ampla: a forma pública da Associação Internacional dos Trabalhadores” (idem p.151).
20 Remetemos, basicamente, o leitor interessado a leitura do artigo “A trajetória de um autor insubmisso”, disponível em: https://blog.esquerdaonline.com/?p=1435 (acessado em 13/02/2018).
21 A despeito da enorme e singular contribuição de Engels para o marxismo, inclusive seu caráter precursor em inúmeros aspectos, além do apoio político e material do amigo Engels conferido a Marx – afinal, a obra de Engels “constitui junto com a de Marx um todo orgânico inseparável” (COGGIOLA 1995 p.9)-, é o próprio Engels quem reconhece o primado genial de Marx e sua formulação teórica mais profunda, em inúmeras passagens. A título de ilustração, Engels enfatiza: “Marx estava acima, via mais longe, tinha uma visão mais ampla e mais rápida que todos nós. Marx era um gênio; nós, no máximo, tínhamos talento. Sem ele, a teoria estaria muito longe de ser o que é. É com razão, portanto, que ela leva o seu nome” (ENGELS apud COGGIOLA, 1995 p.10).
22 Referência a Marx e Engels, respectivamente, como eram conhecidos em seu círculo pessoal.
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