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TEORIA

Precarização ou empoderamento? Reflexões sobre as recentes tensões laborais na China – Parte 1 de 2

 Continuando nossa série de artigos sobre os trabalhadores migrantes chineses, publicamos a primeira parte do artigo de Ching Kwan Lee. Ao contrário dos dois artigos anteriores sobre o tema (de Pun Ngai e de Anita Chan), ela defende a ideia que as mobilizações ocorridas nos últimos anos, por mais importantes que sejam, não demonstram um aumento qualitativo na consciência da segunda geração de trabalhadores migrantes em relação à primeira geração que veio do campo nos anos 90. Nesta primeira parte a autora analisa as características estruturais dessa nova classe trabalhadora, as formas de controle e exploração a que são submetidos e a conexão com a desapropriação de terras que ocorre em grande escala no campo na China (Editoria Internacional).

Ching Kwan Lee

Ching Kwan Lee ([email protected]) é Professora de Sociologia na UCLA –  Universidade da Califórnia em Los Angeles. Autora de vários livros sobre a classe trabalhadora chinesa, como Against the Law: Labor Protests in China’s Rustbelt and Sunbelt (University of California Press, 2007) e Reclaiming Chinese Society: The New Social Activism ( Routledge, 2009).

Tradução: Wilma Olmo Corrêa

 

Os estudiosos sobre condições laborais destacaram a situação de “precarização” que atormenta a classe trabalhadora em todo o século XXI. Abaixo do “proletariado” existe agora o “precariado”, para quem a exploração parece ser um privilégio comparado à constante exclusão do mercado de trabalho. Em meio à informalidade e dizimação em todo o mundo da capacidade coletiva dos trabalhadores, relatórios da mídia e escritos acadêmicos sobre trabalhadores chineses nos últimos anos sustentaram um particularmente curioso discurso de empoderamento dos trabalhadores. As greves em algumas fábricas pertencentes a empresas de capital estrangeiro inspiraram reivindicações de aumento do poder da classe trabalhadora. Encontrando pouca evidência empírica para a tese de empoderamento, este artigo destaca a peculiaridade chinesa do fenômeno global da precarização e a dinâmica das recentes greves, sugerindo a necessidade de que estudos sobre as questões trabalhistas chinesas reequilibrem o seu prevalente voluntarismo e otimismo com mais atenção às condições institucionais, políticas e econômicas.

Na década passada, o termo “precariado” ganhou ampla aceitação entre os acadêmicos e os intelectuais públicos tanto da esquerda quanto da direita no mundo de fala inglesa. De Noam Chomsky a David Brooks, da New Left Review ao Financial Times, dos protestos de rua “EuroMayDay” na Europa ao projeto de mídia “Precarious Europe” na Internet, “o precariado” emergiu como o novo tema da classe trabalhadora deste século, muito parecido com o “proletariado” durante os dois séculos anteriores. O precariado enfrenta o desafio da precarização – acostumar-se a manter-se na expectativa e viver uma vida de trabalho instável e não regulamentado (Standing 2011), oscilando entre exploração e exclusão pelo capital.                  Os debates acadêmicos  acalorados sobre este assunto, ao mesmo tempo em que concordam com a onipresença da informalidade do emprego e com o declínio secular do trabalho organizado em todo o mundo, centraram o debate sobre se a precariedade do trabalho é uma condição historicamente nova ou simplesmente a disseminação de uma condição do Sul Global para o Norte Global, sobre se o conceito de “o precariado” falsamente universaliza os significados historicamente específicos e os diversos modos de precariedade, e se é um ponto de encontro útil para políticas progressistas (Breman 2013; Munck 2013).

Contra o discurso e a realidade da precarização, as greves em larga escala em destacadas indústrias de propriedade estrangeira na China provocaram uma narrativa alternativa sobre o empoderamento dos trabalhadores. Relatando as greves da Honda na primavera de 2010, o New York Times anunciou que “um movimento trabalhista independente se alvoroça na China”, enquanto a Reuters publicava uma manchete igualmente otimista –  “Greve na China ilustra Mudança no Cenário Trabalhista” – quando relatava uma greve selvagem em uma fábrica da IBM em março de 2014. O Financial Times também insinuou uma mudança qualitativa ou “uma mudança mais extremada, ultrapassando os limites permitidos” no ativismo trabalhista chinês, em um artigo destacando as razões demográficas e tecnológicas para a acumulação de forças dos trabalhadores:

“O potencial de agitação só aumenta. Os funcionários chineses têm sido encorajados pelas tendências demográficas que estão criando escassez de mão-de-obra – especialmente para posições qualificadas – e inclinando o poder de negociação decisivamente a seu favor … A tecnologia também está fazendo a diferença. A proliferação de smartphones e o uso dos serviços de mídia social por parte dos trabalhadores … está facilitando a mobilização dos protestos “(Mitchell e Sevastopulo 2014) (1).

Os estudiosos sobre o Trabalho orquestraram uma tese de empoderamento paralela que pode ser desagregada nas seguintes reivindicações. Em primeiro lugar, muito poucos estudiosos sobre o Trabalho comentaram sobre a crescente mobilização e ativismo dos trabalhadores, a maioria sem oferecer evidências empíricas do suposto aumento. Por exemplo, o autor de um livro recém-publicado sobre os trabalhadores nas fábricas de automóveis da China faz afirmações repetidas de “resistência crescente”, “queixas crescentes” e “radicalização gradual” entre a jovem geração de trabalhadores, embora o livro não ofereça nenhuma evidência empírica comparativa para estabelecer essas tendências (L. Zhang 2015). Uma exceção é Mary Gallagher (2014, 87), que cita estatísticas de greves coletadas pelo Boletim do Trabalho da China (CLB) que informou que “em 2011, ocorreu uma média de dezesseis greves por mês.                  Esse número aumentou para trinta e duas greves por mês em 2012. Nos primeiros quatro meses de 2013, o CLB relata cinquenta greves por mês em média. “Apresentando uma visão otimista típica, ela escreve que, “a crescente mobilização e ativismo dos trabalhadores chineses, a crescente conscientização sobre seus direitos legais, e sua solidificada confiança em pressionar por esses direitos foram todas tendências positivas”(83).

Esta crescente consciência de direitos é considerada uma característica dos trabalhadores migrantes de segunda geração, a segunda reivindicação da tese de empoderamento. Comenta-se que os migrantes de segunda geração são mais conscientes a respeito de sua origem de classe e seus direitos do que os migrantes da primeira geração, são mais ousados e dispostos a se mobilizar, em parte devido à sua experiência em mídia social e tecnologia (L. Zhang 2015, 149), mas também exatamente por sua experiência subjetiva com a raiva, dor e exclusão (Pun e Lu 2010).

Em terceiro lugar, além do volume de ativismo, foi observada uma maturação e radicalização do ativismo trabalhista, na medida em que as demandas dos trabalhadores mudaram de defensiva para ofensiva, de demandas puramente econômicas para demandas políticas (por exemplo, a exigência de eleições sindicais), de lutas baseadas em direitos para lutas baseadas em seus interesses, e de um repertório de ação legalista para um  repertório de ações extrajudiciais transgressivas (F. Chen e Tang 2013; PN Leung e Pun 2009).

Em quarto lugar, um aumento expressivo dos salários na última década é tomado como evidência da eficácia e empoderamento dos trabalhadores. Parry Leung e Alvin So (2012, 77) argumentam de forma mais explícita ao longo desta linha, citando esses “eventos de empoderamento em 2010” “(1) uma onda de greves que resultou em um aumento dramático nos salários; (2) a permissão concedida pela Honda para que os  trabalhadores formassem um sindicato independente e democraticamente eleito após a greve; (3) um grande aumento no salário mínimo em muitas cidades do sul da China; e (4) o reembolso compulsório de salários atrasados, de depósitos e multas não razoáveis cobradas dos trabalhadores que eram subcontratados por outras empresas, depois que estas últimas perderam disputas legais “.

Neste artigo, eu contesto essa história de empoderamento que, apesar de toda a sua característica politicamente correta e seu apelo emocional, não resiste a uma análise empírica. Em vez disso, os trabalhadores chineses estão enfrentando a tendência global da precarização, mas com características chinesas, assim como trabalhadores indianos, japoneses e sul-africanos confrontam as suas precarizações em contextos institucionais e político-econômicos específicos. Na discussão a seguir, primeiro descreverei a imagem agregada da prevalência do trabalho precário, relacionada a uma série de legislações trabalhistas destinadas a mitigar a precarização. A limitada eficácia dessas legislações aponta para a primeira característica do trabalho precário na China: precarização autoritária. Em seguida, volto-me para a segunda característica da precarização do trabalho chinês: a ligação íntima entre a precariedade do trabalho e a desapropriação de terras que ocorre atualmente de forma implacável no campo. Em terceiro lugar, e contra essas duas condições estruturais, utilizarei dados etnográficos sobre greves recentes, achados de pesquisas sobre a força de trabalho migrante de segunda geração e tendências no mercado de trabalho para mostrar que o argumento do empoderamento está fundamentado em um otimismo falso que desafia a evidência empírica existente.

Não apenas tem havido pouca amenização na subordinação institucional e político-econômica dos trabalhadores chineses, mas também os dados disponíveis não mostraram mudanças significativas em seu padrão de mobilização, capacidade coletiva e subjetividades. A consciência de classe dos trabalhadores e a vontade de lutar por seus direitos e interesses não são novidades e certamente não começaram com os migrantes da segunda geração. Qualquer retrospectiva superficial dos últimos trinta anos verá que o ativismo dos trabalhadores (pela primeira geração de trabalhadores migrantes e trabalhadores veteranos do setor estatal), ao longo do tempo, imprimiu pressão sobre o estado para melhorar as suas condições – desde o estabelecimento de salários mínimos, regulamentos e provisão estatal de garantias mínimas de subsistência, até a promulgação de diversas leis trabalhistas (Lee 2007; Solinger 2009). Mas tais aumentos nos rendimentos monetários e nas legislações trabalhistas não devem ser confundidos com o empoderamento dos trabalhadores, nomeadamente, em direção à segurança do emprego, ao direito à livre associação, ao controle sobre o processo de trabalho e ao poder de barganha institucional com os empregadores. Rejeitando uma abordagem voluntarista e subjetivista na análise das políticas trabalhistas da China, concluo apontando para várias condições político-econômicas que devem ser alteradas para provocar uma transformação significativa e duradoura na política trabalhista.

Qual é a extensão do emprego precário ou informal? (2)

O esmagamento das “tigelas de arroz de ferro” – (nome popular para designar o regime de garantias sociais vitalícias durante o período maoísta – NT), ou seja, a abolição do emprego permanente com benefícios de seguridade social – durante a transição da China do socialismo de estado e economia planejada para uma economia capitalista impulsionada pelo mercado, tem sido bem documentada. Após três décadas de reformas econômicas e jurídicas, o emprego informal tornou-se um novo padrão para a força de trabalho chinesa. Os economistas usam duas medidas de “informalidade” para avaliar sua extensão na China. A primeira é sobre a legalidade – se um empregado tem ou não um contrato de trabalho devidamente assinado, e a segunda é sobre a vulnerabilidade – se o empregador fornece, ou não, pelo menos um dos três tipos de seguro social legalmente exigidos: pensões, seguro de saúde e benefícios de desemprego.

Uma pesquisa realizada em 2014 pelo National Bureau of Statistics (2015) da China descobriu que 62% dos 274 milhões de trabalhadores migrantes da China não tinham contratos. Para os trabalhadores residentes locais, a taxa foi de 26,3% em 2010 (Park, Wu e Du 2012). De acordo com uma pesquisa feita em seis cidades em 2010, em termos de vulnerabilidade, 16,2% dos residentes locais e 60,6% dos trabalhadores migrantes não possuíam nenhuma cobertura de seguro social. Dado que a mão-de-obra migrante (250 milhões) representa 72% da força de trabalho urbana da China (347 milhões), os dados sugerem que a informalidade é um fato da vida para a maioria dos trabalhadores chineses. Os trabalhadores mais jovens (dezesseis a vinte e seis anos de idade) são desproporcionalmente mais propensos à informalidade – 31,6% entre os trabalhadores residentes locais e 72,9% entre os trabalhadores migrantes neste grupo etário ocupam empregos informais, usando qualquer um desses critérios (Park et al. 2012).                                                   Finalmente, os ganhos dos funcionários informais eram apenas 67% dos ganhos dos empregados formais, uma diferença salarial que foi encontrada para explicar mais da metade da desigualdade de renda pessoal em geral na China urbana (Xue, Gao e Guo 2014).

Regulamentando o trabalho pelas leis: precarização autoritária

 

A enorme extensão da informalidade é, naturalmente, surpreendente, ainda mais se considerarmos que se passaram vinte anos desde a entrada em vigor do Lei do Trabalho Nacional em 1995. A primeira lei nacional do trabalho da China estipula exatamente a exigência de contratos assinados e contribuições para o seguro social para todos os funcionários (independentemente do status de residência) em todos os tipos de empresas e setores, entre outras normas laborais (como horário de trabalho, horas extras, pagamento de férias e pagamentos de indenizações). Além disso, em 2007 foram aprovadas leis mais específicas sobre contratos de trabalho, mediação e arbitragem de conflitos trabalhistas, promoção no emprego e antidiscriminação, com atualizações e revisões periódicas desde então. O aparato jurídico para a proteção do trabalho estabelece um padrão tão alto que, de acordo com um relatório da OCDE sobre proteção ao emprego, a China em 2008 ocupou o segundo lugar no quesito proteção do emprego nas dez maiores economias de países em desenvolvimento e superou substancialmente a média da OCDE. Na proteção contra a demissão coletiva e individual, a China ultrapassou todos os outros países no relatório da OCDE, que inclui todos os membros da OCDE e várias grandes economias em desenvolvimento, incluindo Brasil, Rússia, Índia e África do Sul (Gallagher et al., 2013). Por que um código de trabalho tão estrito e de iniciativa estatal fracassou tão fragorosamente em um país conhecido por ter um regime autoritário de cima para baixo?

Em primeiro lugar, a implementação de leis relativas ao direito do trabalho está sempre sujeita às mudanças das prioridades econômicas e políticas do estado. Em vez de submeter-se ao Estado de Direito, o Estado chinês, tanto central como local, usa a lei como um instrumento oportunista para alcançar objetivos políticos. Isso significa que, algumas vezes, algumas leis trabalhistas são aplicadas se forem do interesse do governo em vários níveis do sistema político. Um exemplo proeminente da prática da regra da lei na China pode ser encontrado na implementação da Lei do Contrato de Trabalho de 2008. Essa legislação visava formalizar as relações de emprego e reduzir os conflitos laborais e a desigualdade social, questões que se tornaram desestabilizadoras para o regime desde o início dos anos 2000. Essa lei, além de contratos obrigatórios para todos os trabalhadores, exige mais significativamente que os trabalhadores recebam um contrato de “prazo indeterminado” após dois contratos sucessivos de “prazo fixo”, ou após terem sido empregados por dez anos pelo mesmo empregador. Quando esta lei entrou em vigor no início de 2008, os governos locais na província de Guangdong, à primeira vista, a consideraram como uma ferramenta para atingir o objetivo da modernização industrial – remoção de fábricas que pagavam baixos salários, empregavam mão de obra pouco especializada, exploravam mão de obra com trabalho análogo à escravidão no processamento de exportações, e convidando fábricas que possuíssem  alta tecnologia, pagassem altos salários e que fossem amigas do meio ambiente. Assim, quando os trabalhadores pressionaram por suas exigências e pelas várias compensações estipuladas pela nova lei, as agências de trabalho locais e os tribunais apoiaram suas reivindicações, levando ao colapso de uma série de fábricas financeiramente fracas e de baixa tecnologia. No entanto, mais tarde naquele ano, quando a crise financeira global de 2008 chegou a Guangdong, as autoridades locais perceberam que tinham que mudar de rumo para proteger os empregadores; caso contrário, a economia local, que havia se tornado totalmente dependente das fábricas de exportação, seria arruinada. Os comitês de arbitragem da disputa trabalhista de nível básico receberam a recomendação para não apoiar as reivindicações dos trabalhadores, e os juízes foram ordenados a não lidar com processos judiciais dos trabalhadores (Lee e Zhang 2013). Esta arbitrariedade e seletividade na aplicação da lei é uma das principais razões para o fracasso da lei em proteger os trabalhadores.

Em segundo lugar, a ineficácia da legislação laboral chinesa em conter a onda de informalização é fundamentalmente devida ao extremo desequilíbrio de poder entre as classes. Colocando limites rígidos à organização coletiva e autônoma dos trabalhadores, as leis trabalhistas só permitem mobilizações legais individualizadas dos trabalhadores, enquanto o estado usa essas mobilizações como um mecanismo de “alarme de incêndio” que alerta o governo local para violações trabalhistas particularistas e particularmente escandalosas (Gallagher 2014). Quando o volume de conflitos trabalhistas aponta para certos abusos sérios cometidos pelos empregadores, o governo central recorre a outra rodada de legislação que exige proteção mais severa do trabalho, provocando novas respostas dos empregadores para evitar novas restrições legais sobre seu uso do trabalho. Nesse processo, tanto o estado quanto o empregador têm um interesse comum em evitar que os trabalhadores desenvolvam uma capacidade de organização sustentável. Sem o poder legal de se envolver de forma independente na organização e negociação coletiva, e sujeita ao compromisso hesitante do estado em implementar as leis trabalhistas, a mobilização legal dos trabalhadores é muito atomizada para combater a aliança entre o estado local e o capital.

No entanto, não se deve exagerar a permanência desta aliança, que pode ser uma fonte importante de mudança de longo prazo para a política trabalhista. A promulgação de leis trabalhistas rigorosas, apesar da forte aliança entre capital e estado em nível local, sugere que o estado nacional chinês não possui interesses homogêneos em relação aos trabalhadores. A Federação dos Sindicatos da China (ACFTU), o mais forte defensor dos direitos trabalhistas no Congresso Nacional do Povo, foi fundamental para promover a Lei do Contrato de Trabalho em 2008 e sua revisão em 2012. No entanto, na etapa de implementação, outros interesses de estado podem prevalecer. Por exemplo, mesmo que a Lei do Contrato de Trabalho tenha particularmente como alvo o fenômeno da subcontratação trabalhista, o próprio Estado chinês é um dos principais usuários da subcontratação trabalhista. Cerca de 16% dos funcionários de empresas estatais e organizações para-governamentais, como hospitais e universidades, são trabalhadores terceirizados. Até 70% da força de trabalho da Sinopec e da China Telecom – dois conglomerados estatais centrais – são trabalhadores terceirizados, de acordo com acadêmico do Instituto de Relações Industriais da ACFTU (Roberts 2012).

Os interesses cambiantes e heterogêneos dentro do estado chinês em relação aos direitos trabalhistas, portanto, sugerem uma faca de dois gumes. A configuração autoritária fragmentada do poder estatal é uma fonte de subordinação persistente do trabalho, mas também de uma possível transformação institucional, embora remota. Os elementos pró-trabalhistas e reformistas dentro do estado chinês são fontes potenciais de influência em mobilizações entre os trabalhadores, dos escalões inferiores aos escalões superiores. De certa forma, a promulgação de uma lei trabalhista após outra nas últimas duas décadas, coincidindo com muitos protestos e greves trabalhistas, pode ser atribuída a essa aliança inesperada e invisível, cujos efeitos podem ser ainda mais ampliados em momentos de crise econômica ou política. Já vimos nos últimos anos, uma vez que o governo central enfatiza a prioridade da manutenção da estabilidade, que a resposta dos funcionários de base ao conflito dos trabalhadores tem sido claramente mais cautelosa e até mesmo imparcial.  Esta mudança não se deve ao ativismo dos trabalhadores ou a uma nova consciência, já que esses elementos nunca foram escassos, mas se deve à imposição de cima para baixo da tarefa de manutenção da estabilidade. Em qualquer caso, as rachaduras vindas do interior do estado e da aliança capital-estado merecem muito mais atenção entre os estudiosos da área trabalhista, uma vez que o desempoderamento político e institucional é o motivo da precarização do trabalho na China, e não a falta de consciência e ativismo, absolutamente não.

Precarização do trabalho por meio do desapossamento da terra

 

A maioria dos 250 milhões de trabalhadores migrantes da China são residentes rurais que se mudaram da área de registro domiciliar com o objetivo de trabalhar em áreas urbanas. Diante da falta de status residencial urbano, os trabalhadores migrantes desfrutam de prerrogativas e direitos inferiores (por exemplo, educação infantil, termos do regime de pensões, despesas hospitalares etc.). Até que a reforma econômica decolasse, essa hierarquia de cidadania de dois níveis, com origens na década de 1950 e aplicada por um sistema de racionamento baseado na localidade [de origem], permitiu ao Estado controlar a mobilidade física e social da população e garantir a transferência do excedente rural para a industrialização urbana. Desde o colapso das comunas no final da década de 1970, as restrições à mobilidade têm sido gradualmente removidas para fornecer uma enorme fonte de mão-de-obra barata para o capital nacional e estrangeiro. A pedra angular deste sistema de trabalho migrante é o regime coletivo de propriedade da terra nas aldeias de onde os trabalhadores migrantes se originam.  Por lei, todo residente rural tem direito a um lote de terra em sua aldeia nativa. Esse lote é de propriedade do coletivo da sua aldeia nativa e é cultivado por familiares que nela permanecem. Até a virada do novo milênio, esta economia familiar, mesmo que dependente da renda salarial dos trabalhadores migrantes para insumos agrícolas, absorveu o custo da reprodução social do trabalho –  educação, cuidados com a saúde, casamento, parto, habitação permanente, subsistência durante desemprego e aposentadoria – que de outra forma seriam suportados pelos empregadores ou pelo governo. A propriedade da terra rural também ajuda a dissipar a capacidade coletiva dos trabalhadores migrantes nas cidades, já que muitos retornam ao campo em tempos de dificuldades econômicas, incapazes ou não dispostos a sustentar o longo processo de batalhas judiciais ou protestos extrajudiciais nas cidades (Lee, 2007).

Desde a década de 1990, a mercantilização dos direitos de uso da terra e a preservação formal da propriedade coletiva criaram em conjunto uma tempestade perfeita, levando a uma agressiva onda de desapossamento de jure ou de fato de terras, privando os trabalhadores migrantes de seus meios mais importantes de segurança a longo prazo. Como Andreas e Zhan (2014, 20) argumentam vigorosamente: “Por um lado, a mercantilização dos direitos de uso alcançou o que a privatização poderia ter alcançado: a eliminação de restrições sobre a hipoteca, venda e arrendamento de direitos de uso permite efetivamente que as famílias desistam de forma permanente do acesso à terra. Por outro lado, a preservação formal da propriedade coletiva permite que os dirigentes locais continuem a atuar como agentes de desapossamento”.  Os dados da pesquisa estabeleceram a prevalência de expropriação da terra. Açambarcamento de terras ou requisições estatais obrigatórias de terras agrícolas coletivas, com ou sem a devida indenização, ocorreram em 43% das 1.791 aldeias da amostra em uma pesquisa de vários anos em dezessete províncias (Landesa 2012). Os camponeses deslocados (cujas terras foram tomadas) totalizaram cerca de 52 milhões entre 1987 e 2010, e os conflitos de terra representam 65% dos incidentes de massa em 2010 (Ong 2014). Os governos locais (níveis municipal e distrital) têm o monopólio sobre a transferência de terras agrícolas para a propriedade do estado antes que os direitos de uso da terra sejam arrendados a incorporadores imobiliários privados. Uma vez que as receitas relacionadas à terra permanecem no nível local em vez de serem remetidas ao governo central, a requisição de terras tornou-se importante fonte de receita do governo local, representando cerca de 70% de suas receitas extra orçamentárias (Zhou, 2007).  Normalmente, a indenização paga aos agricultores afetados (uma média de US $ 17.850 por acre) equivale apenas a uma fração do preço médio que as autoridades receberam pelo arrendamento do terreno (em média U$ 740.000 por acre para projetos comerciais) (Landesa 2012). Apenas um quarto desses camponeses sem terra têm seu status de registro de domicilio convertido em residentes urbanos. E muitos deles são agora transferidos para “vilarejos concentrados” ou para arranha-céus em áreas semiurbanas.

Teoricamente, os agricultores despossuídos devem ter direito a seguro social, seguro médico e garantias mínimas de subsistência (dibao)(3). No entanto, na prática os níveis dessas provisões são muito baixos para funcionar como proteção. Tomemos o exemplo do dibao. Esse é um programa de transferência de dinheiro com comprovação da insuficiência de renda que foi implementado no final da década de 1990 em resposta ao grande número de protestos de trabalhadores atingidos pelos massivos cortes orçamentários (Solinger 2009, 173). No entanto, como é o caso em muitos países latino-americanos (Lavinas 2013), o nível dos subsídios permanece extremamente baixo: no máximo 24% e atualmente em 16% da renda local média, em comparação com a proporção de 50% a 60% na União Europeia e 33% nos Estados Unidos (Tang e Xiu 2011). O mesmo ocorre com as pensões nas áreas rurais: enquanto a pensão mensal média para um aposentado urbano, em 2011, era de 1.511 RMB (cerca de US$ 240), o mínimo para os aposentados rurais era de apenas 55 RMB (ou menos de US$ 10), o que ficou abaixo da média nacional para a ajuda ou apoio ao rendimento mínimo rural de 82 RMB (Frazier 2014). A segunda forma de precarização dos direitos à terra não envolve a expropriação de terras, mas o arrendamento a longo prazo de terras coletivas para empresas do agronegócio, estrangeiras e chinesas. Isso geralmente acontece em províncias e localidades distantes das principais cidades e, portanto, com baixa demanda pelo uso comercial da terra. Com o objetivo de alcançar economia de escala e eficiência, o arrendamento para grandes patrões ou grandes “cooperativas” iniciada por agricultores aconteceu em 32,6% das aldeias pesquisadas pela Landesa (2012), levando à formação de grandes extensões contínuas de terra. Na região rural de Heilongjiang, a principal província agrícola da China, formar “grandes cooperativas de agronegócios” tornou-se uma prioridade do governo desde 2007. Os agricultores arrendam seus lotes familiares para as cooperativas em troca de uma quantia de renda mensal acordada por períodos renováveis de um a cinco anos. No segundo maior município da província, até hoje, 80% dos agricultores aderiram às cooperativas, abrangendo 83% das terras agrícolas. O plano do governo municipal é alcançar 100% de adesão cooperativa em dois anos (4).  Depois de arrendar suas terras para as cooperativas, uma minoria de agricultores se torna empregada das cooperativas, enquanto a maioria dos agricultores em idade de trabalhar deixa o campo completamente. Eles se tornam trabalhadores migrantes ou se estabelecem em municípios e cidades menores com suas famílias inteiras, uma vez que podem comprar suas próprias casas. Além de Heilongjiang, a penetração do capital agrário (tanto nacional quanto multinacional, como a Nestlé e a Yum!) nas províncias de Shandong e Yunnan desencadeou um processo similar de “des-camponesização”, transformando os agricultores de subsistência em agricultores contratados e trabalhadores agrícolas semiproletários e proletários (QF Zhang 2015; QF Zhang e Donaldson 2010). O aumento em larga escala de contratação de agricultores pelo agronegócio significa o confisco de facto dos direitos de uso da terra como uma forma de segurança social. De agora em diante o sustento dos agricultores está totalmente dependente do emprego assalariado ou dos lucros das empresas.

O mais recente impulso para os agricultores saírem de suas terras e se mudarem para as cidades provém do recentemente anunciado “Plano Nacional de Urbanização de Novo Tipo” de Pequim, que visa elevar a taxa de urbanização da China dos atuais 54% para 60% da população até 2020 (Xinhuanet 2014). A lógica é simples: impulsionar a demanda doméstica e aumentar o consumo. Embora alguns economistas tenham criticado essa lógica por ser imperfeita – geralmente o desenvolvimento leva à urbanização, e não o contrário – no cálculo do Primeiro Ministro Li Keqiang (2013), “todo residente rural que se torne um morador urbano aumentará o consumo em mais de 10.000 yuan (US $ 1.587) (…) continua a haver uma enorme reserva de mão-de-obra inexplorada nas aldeias, deixando um grande potencial para a demanda doméstica como resultado da urbanização “.  Embora ainda não esteja claro como as crescentes demandas de infraestrutura e serviços sociais resultantes desse ambicioso esquema de urbanização liderado pelo estado serão financiadas, é certo que mais residentes rurais serão deslocados de suas terras.

Um estudo etnográfico recente descreve a sombria realidade dos trabalhadores migrantes depois que suas terras foram despojadas. Em Sichuan, uma província que é uma das maiores fornecedoras de mão-de-obra na China, eles se tornaram os trabalhadores mais indesejáveis para os agenciadores de trabalho no setor de construção. Uma vez que os agenciadores de trabalho devem arcar com o custo do transporte e da manutenção durante o período de emprego dos trabalhadores e os trabalhadores devem sobreviver até o final do ano para que os salários sejam pagos, os trabalhadores sem-terra são vistos como muito precários para essa ocupação precária. “Sem a posse da terra, os intermediadores de trabalho e trabalhadores enfrentam novas pressões financeiras. Os intermediadores de trabalho têm que mudar o recrutamento para outros locais onde trabalhadores sejam titulares de terras e sejam mais capazes de suportar empregos precários “(Chuang 2015). Em suma, os trabalhadores migrantes sem-terra da China se encontram em uma posição de subclasse emergente que é ainda mais precária do que os trabalhadores migrantes convencionais que possuem terras.

(A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo, dia 3 de março)

Notas:

  • Mitchell and Sevastopulo (2014) fornece um bom resumo desses argumentos nos meios de comunicação.
  • Estou usando os termos “precário” e “informal” de forma intercambiável neste artigo.
  • Dibao: garantia mínima de subsistência. É um tipo de assistência social destinada a pessoas desempregadas que vivem abaixo da linha de pobreza nas áreas urbanas da China. Segundo alguns autores, teoricamente, Di Bao eliminaria a pobreza urbana, mas fica bem aquém desse ideal na prática. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.2202/1944-2858.1127/pdf
  • Trabalho de campo do autor em Qiqihar, dezembro de 2013.