Um sonho para 2026: descontinuar a amargura, encantar o nosso povo
Publicado em: 30 de dezembro de 2025
Pablo Henrique
Introdução
Eu tive um sonho, e não estou falando de um sonho alegórico, como o de Martin Luther King, eu tive um sonho literal. Na segunda-feira, dia 29 de dezembro de 2025, fui dormir às 16h para conseguir trabalhar de madrugada mais descansado e acabei tendo um daqueles sonhos realmente muito loucos. Este texto não é sobre sonhos enquanto conceito, até porque essa não é a minha área. Não vou me arriscar a dar palpites sobre o que é um sonho. As únicas duas coisas que eu sei sobre sonhos são simples: eles existem e há inúmeros autores que discutem o que eles são. Como eu apenas sei que esses autores existem, prefiro não citá-los aqui, para não correr o risco de dizer alguma bobagem.
Caso você seja alguém da área de humanas, acostumado a lidar com subjetividades e com amplo conhecimento sobre sonhos, podemos marcar um dia, tomar um chá, um refrigerante ou um suco -eu levo o pão de queijo – e conversar. Afinal, a curiosidade e a vontade de aprender talvez sejam as únicas coisas da infância que a velhice ainda não me tirou: meus olhos continuam brilhando quando alguém me apresenta algo novo. Podemos, inclusive, marcar um encontro para você me apresentar Freud e Jung. Mas este texto é sobre um sonho específico, não sobre sonhos em geral, e eu gostaria de compartilhá-lo com vocês.
O Sonho
No sonho, eu discutia com duas personalidades que, para mim, são extremamente importantes para a história revolucionária: Nadejda Krupskaia e Clara Zetkin. Conversávamos sobre o fascismo. Tive a oportunidade de dialogar com elas a partir da experiência histórica de seu tempo, enquanto eu tentava apresentar, com todas as limitações do que sei e compreendo o fascismo da nossa época.
Em determinado momento, como só acontece nos sonhos, eu conseguia me comunicar com elas sem a necessidade de tradutor. Elas entendiam o que eu dizia, e eu as entendia também. Falava russo e alemão de forma precária, o que já é curioso, considerando que mal consigo me comunicar plenamente em português.
A discussão girava em torno da base social do fascismo: de como ele consegue dialogar com setores extremamente heterogêneos da sociedade, atravessando diferentes camadas sociais, burguesia, pequena burguesia, proletariado, algo que já existia no tempo delas. Eu tentava apresentar os extratos sociais do nosso tempo, do mundo em que vivemos hoje.
Em um certo momento do sonho, eu não conseguia formular a palavra certa, nem em alemão nem em russo. Então, traduzi literalmente para o português: as pessoas estão amargas. Elas ficaram confusas. “Amargas como?”, perguntaram. “As pessoas têm gosto?” Tentei explicar, dizendo que pessoas amargas são aquelas que não conseguem mais sonhar. Não é que hoje elas não sonhem, elas não conseguem sonhar amanhã. Amanhã, para elas, simplesmente não existe. Foi nesse instante que o despertador tocou e eu precisei me levantar para me arrumar.
Enquanto me arrumava, ficava pensando no quanto aquele sonho tinha sido estranho e, ao mesmo tempo, profundamente alegórico. Gostaria muito de ter podido conversar com aquelas duas gigantes do movimento revolucionário do início do século XX, seria mágico. Infelizmente, o único diálogo possível com elas se dá por meio da leitura de seus escritos, e eles são, por si só, diálogos importantes. Elas falam a partir de um determinado espaço e de um determinado tempo. Quando leio seus textos hoje, preciso compreender esse contexto: eles não são manuais, nem instruções, nem receitas prontas. São reflexões situadas historicamente. Para que esse diálogo continue vivo, ele precisa atravessar as décadas e se reinscrever no nosso tempo e no nosso espaço. Estamos no Brasil, em 2025, às vésperas de 2026, é aqui e agora que eu quero continuar essa conversa com elas.
Pessoas amargas são aquelas que não sonham amanhã
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, logo na primeira frase das notas introdutórias do livro Flechas no tempo (2019), escrevem: “O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto.” É a partir dessa pedrada que começamos nossa análise sobre a amargura. Somos seres que sonham, sonhadores por essência, e desejamos realizar nossos sonhos. O problema é que a realidade do mundo, especialmente após a crise econômica de 2008, fez com que até os sonhos mais modestos se tornassem difíceis, às vezes, quase impossíveis. Vivemos em um Brasil em que, mesmo com a queda relativa do desemprego, o que sobrou foram empregos precarizados jornadas extenuantes, alta dos preços dos alimentos, uma bolha imobiliária que torna a conquista da casa própria quase inalcançável e empurra quem vive de aluguel cada vez mais para longe dos centros urbanos.
Eu poderia listar uma longa sequência de desencantos que atravessam o período de 2008 até 2025. Mas talvez o principal seja este: a nossa geração, muito provavelmente, viverá em condições materiais piores do que as de nossos pais. E aqui estou falando apenas de aspectos econômicos, nem entro no colapso climático que enfrentamos, resultado da exploração desenfreada e da destruição sistemática do meio ambiente. Como Clara Zetkin me disse, não no meu sonho mas em seu texto “O fascismo é sintoma característico de decadência deste período, uma expressão da dissolução da economia capitalista que está em andamento (…) Muitos estão ainda desiludidos no que diz respeito às suas vagas expectativas de profundas melhorias sociais.”
Todas essas desilusões, isoladamente, não produzem necessariamente a amargura. O que nos empurra para ela é a sensação de ausência de saída. São promessas repetidas de que a vida vai melhorar – basta esperar, basta votar, basta se esforçar individualmente – enquanto o horizonte se estreita. Nesse processo, corremos o risco de perder aquilo que é mais essencial à vida: o poder de sonhar, como verbo ativo, a capacidade de projetar o futuro, de imaginar outros amanhãs possíveis.
Perder essa capacidade não é exatamente morrer. É algo pior. Como dizem Simas e Rufino, é desencantar-se. E o espírito desencantado é o solo mais fértil para a amargura.Que não se define apenas pela dor acumulada ou pelas frustrações do passado, mas pela relação que o indivíduo estabelece com o tempo. A pessoa amarga não é aquela que nunca sonhou, ela é aquela que não sonha amanhã.
A amargura pode nascer de sucessivas decepções, de promessas quebradas e de futuros adiados, em si, ela não é rara nem incompreensível. O perigo surge quando, nas mãos daqueles que se recusam a pensar o futuro, a amargura deixa de ser apenas um estado emocional e se transforma em ferramenta. Uma ferramenta que não constrói, mas contamina. E mais uma vez peço que escutem o que Clara Zetkin falou pensando as “massas de simpatizantes socialistas decepcionados são acompanhadas por grandes círculos do proletariado, de trabalhadores que desistiram de sua fé não apenas no socialismo, mas também em sua própria classe. O fascismo se tornou uma espécie de refúgio para os politicamente sem abrigo”, Quando a recusa em sonhar amanhã se torna coletiva, a amargura passa a operar como uma arma silenciosa, capaz de amarrar pessoas umas às outras pelo medo e pela descrença. Nesse amontoado de ressentimentos compartilhados, o desencanto se multiplica, e o já amargurado encontra validação na estagnação do outro. É aí que reside o maior perigo: a normalização da ausência de futuro.
Descontinuar a amargura
Não sonhar amanhã significa perder a capacidade de imaginar um mundo melhor, e sem imaginação não há construção possível. Por isso, a amargura não pode ser apenas compreendida ela precisa ser combatida. Combate que não se faz com imposição, mas com encantamento: reencantar corações para que os corações contaminem esperança, e não ressentimento. Somente assim podemos interromper a cadeia da amargura e restituir ao amanhã o direito de existir.
Mas, até aqui, fica uma pergunta inevitável: O que fazer? Para tentar responder a isso, preciso chamar outra pessoa para a conversa e não é Lenin. Trata-se de José Luiz Kinceler. Tive o prazer de dialogar com ele, ainda que não presencialmente. Kinceler não está mais entre nós desde 2015, e cheguei até seu pensamento por meio de Marcelo Wasem. Não foi em sonho, esses dois catarinenses artistas e professores, me apresentaram, por meio de textos, alguns conceitos extremamente potentes.
Encantamento, Contaminação e Descontinuidades, são elementos que eles utilizam em suas práticas educacionais e artísticas. Em resumo, bem resumidamente: Esses três elementos, quando articulados, possibilitam uma interrupção da normalidade, uma suspensão dos sentidos, abrindo espaço para vislumbrarmos novos amanhãs. eu estou falando demais, mas tenho medo do texto ficar grande, porém é melhor deixar o Kinceler falar um pouco
Obviamente eles pensam enquanto categoria artística, mas não apenas isso eles pensam e eles a operam como ferramentas de uma arte política e engajada.
Mas por que encantar e contaminar? Porque não basta interromper a amargura de forma provisória. É preciso quebrar a cadeia, descontinuar esse modo de viver de maneira permanente. A amargura, quando naturalizada, vira hábito; quando vira hábito, estrutura o mundo. Encantar e contaminar é o único modo de descontinuar e substituir uma lógica inteira, não apenas de sentimentos, mas de vida.
Mas como encantar?
Talvez agora venha a maior de todas as decepções para quem conseguiu me acompanhar até aqui: eu não sei. Não sei como se faz. Não sei qual é a fórmula. Sei apenas que não dá para continuar como estamos. Se não conseguirmos encantar, continuaremos assistindo, passivamente, à semeadura da amargura em nossos corações.
2025 nos ofereceu inúmeras oportunidades para isso. Quem aqui não chorou diante do massacre cometido na favela da Maré? Quem não chorou a cada feminicídio que atravessou o ano? A cada morte violenta de pessoas LGBTQIA+ nós ficamos irados ou não? Quem não chorou talvez já esteja morto por dentro, não amargurado, mas anestesiado. E não há pecado algum em chorar. O problema é quando as lágrimas secam e dão lugar à amargura. Precisamos enxugá-las. E, se não for possível, que sigamos chorando, na esperança de que, um dia, essas lágrimas de tristeza se transformem em lágrimas de alegria, nunca em amargura.
E há exemplos concretos de que é possível fazer diferente. Ou não é verdade que, quando o Congresso inimigo do povo aprovou a PEC da impunidade, conseguimos encantar as pessoas lotar as ruas de norte a sul do país e impor uma derrota política? Ou não é verdade que, com um trabalho de base excepcional do VAT foi possível contaminar amplos setores da população e colocar na ordem do dia a discussão sobre a jornada de trabalho, abrindo a possibilidade real de superar a escala 6×1? Em Belo Horizonte, conseguimos realizar uma mobilização histórica pela Tarifa Zero. O Movimento Mulheres em Luta (MEL) reuniu milhares de pessoas em um grande encontro. Tivemos também o Festival Antirracista de Cultura e Resistência. Tudo isso só nesse ano de 2025. São passos dados aos poucos, é verdade, mas seguimos em movimento, seguimos.
Se colocarmos tudo na balança, é evidente que temos muito mais motivos para chorar. Mas esses exemplos importam, há uma tarefa central em 2026 deter o avanço da amargura, e por isso precisamos usar todas as ferramentas que estiverem ao nosso alcance. Zetkin em sua ultima conversa comigo, não no sonho mas em textos, disse que não podemos “contemplar passivamente a desintegração”, o que não vai acontecer, mas precisamos preparar sua derrota e “superação ideológica e política”. Não acabou ai, ela é poderosa e continua “Devemos perceber que o fascismo é um movimento dos desapontados e daqueles cuja existência está arruinada. Portanto, devemos nos esforçar para conquistar ou neutralizar aquelas massas que ainda estão no campo fascista. Desejo enfatizar a importância de percebermos que devemos lutar ideologicamente pelos corações e mentes dessas massas”.
Nossa tarefa para 2026 é esta: vamos comemorar a passagem do ano. Vamos chorar tudo o que 2025 nos impôs, temos esse direito. Mas depois é hora de levantar a cabeça. Que, ainda na festa de réveillon, a gente olhe nos olhos da pessoa ao nosso lado, encante-a, e diga quais são as tarefas que temos até 2026. Que a gente olhe bem fundo do olho dela e a contamine, não permitindo que a amargura encontre morada em nossos corações.
Pablo Henrique é bacharel em Artes Plásticas pela Escola Guignard, mestrando em Artes Visuais pela UFMG e diretor da Federação Nacional dos metroviários









