O socialismo deveria ser sobre uma alegria utópica
Ao longo da história, muitas figuras importantes de esquerda apresentaram o socialismo como algo austero e defensivo. Para derrotar uma extrema direita insurgente que não tem problemas em explorar o afeto, devemos abraçar a alegria utópica por trás do projeto socialista. A partir da experiência britânica, reflete-se sobre a necessidade da esquerda abordar a felicidade humana.
Publicado em: 21 de dezembro de 2025
Na Inglaterra contemporânea, em que bares e clubes estão fechando em um ritmo acelerado, políticos estão tentando acabar com apresentações de bandas, o custo de vida está reduzindo o consumo, a austeridade tem se tornado não apenas um regime econômico, mas também um modo de vida. […] A extrema direita parece ser a única a ter alguma alegria, embora de um tipo amargo e impróprio.
Mas ao invés de opor o ressentimento da extrema direita com soluções tecnocráticas […], a esquerda radical precisa envolver tanto o domínio libidinal quanto o material. A esquerda necessita lidar com a qualidade de vida, bem como o custo de vida, e restaurar na política o conceito de felicidade humana.
A direita revoltosa
A extrema direita na Inglaterra e em outros lugares tem restaurado o sangue (e o solo) da política ao apelar quase exclusivamente ao reino libidinal da alegria, do desejo e da emoção. Trocando fatos, políticas e legislação por espetáculo, iconografia e retórica, a direita tem canalizado o ressentimento para criar uma imagem de um modo de vida coletivo perdido. Onde o centrismo está deflacionário, a extrema direita é inflacionária. Ela estimula não apenas as paixões, mas também a participação por meio dos canais do YouTube e fóruns online, adaptando a retórica às respostas [do público], fornecendo uma sensação de empoderamento para aqueles que se sentem esquecidos. Este empoderamento alcançou um pico libidinal de um modo maligno com a “diversão” desenfreada nas ruas da Inglaterra no ano passado (nos distúrbios racializados que se seguiram ao esfaqueamento em Southport, em 29 de julho) e em Ballymena este ano (onde a violência eclodiu em junho, após a acusação de dois adolescentes de língua romena por tentativa de estupro).
Enquanto a negatividade da extrema direita libidinosa é sua força imediata, também é o que limita seu potencial ampliado. O foco da extrema direita é invariavelmente sobre o que não se quer: a imigração, a saúde, a segurança, a cultura wolke. Isto significa que, enquanto alternativa ao centrismo distópico, a política da extrema direita é qualquer coisa, menos utópicos (listas negras de coisas a se evitar, seja em aplicativos de namoro, em boates ou na política, são sempre desestimulantes). Além disso, o que a extrema direita quer (um retorno às tradições “nacionais” pré-globais, pré-multiculturais, patriarcais) também é negativo, não apenas porque é impossível, mas também porque está inscrito no autoritarismo.
Quando ganhou a prefeitura de Greater Lincolnshire em maio deste ano, a política do Reform UK, Andrea Jenkyns, prometeu que seu partido “reestabeleceria a Grã-Bretanha ao seu passado glorioso”. Entretanto, as pesquisas mostram que não são apenas os cosmopolitas urbanos que não querem retornar a um mundo dominado pelo imperialismo normativo, racismo, sexismo ou homofobia, sem falar nos locais de trabalho inseguros e sem regulamentação e nos alimentos cozidos em excesso. Ao invés de olhar para trás com raiva, uma esquerda libidinal deveria olhar para o futuro com esperança e mobilizar em torna da ambição ao invés do luto.
O prazer significa não pensar
Ao afirmar uma versão socialista da libidinagem, a esquerda necessita abandonar a tendência histórica à austeridade. O próprio Marx deixou de imaginar o mundo como ele poderia ser – no utópico “Manuscritos econômico-filosóficos de 1844” – para analisar o mundo como realmente era (“O capital” é o mais sombrio dos realismos). Os marxistas, de Lênin a Lukács, tenderam a continuar nessa linha socialista-realista, insistindo na barbárie capitalista, enquanto rejeitavam o utopismo de esquerda.
Mais tarde, na era do pós-guerra, enquanto o capitalismo ocidental prometia plenitude e liberdade e o comunismo da União Soviética se tornava uma distopia decadente, a atitude de austeridade da esquerda ocidental apenas aumentava. Theodor Adorno considerava a cultura popular enquanto uma propagando pacifista, decretando que “o prazer sempre significa não pensar sobre nada”. Louis Althusser rejeitava o Marx humanista e considerava o propósito do socialismo como “uma mudança no modo de produção”, em vez da realização da felicidade humana. Entretanto, como contra-argumentou Herbert Marcuse, “Sem a liberdade e a felicidade nas relações sociais dos seres humanos, até mesmo o maior aumento na produção… permanece infectado com a antiga injustiça”. Em nossa conjuntura atual sombria, portanto, uma esquerda libidinal deve ser utópica ou não será nada.
O ativismo de esquerda também tem sido austero. Constantemente defensivo, ela tem extraído sua energia da raiva e seus argumentos da abjeção: primeiro, classe; depois, raça, sexo, sexualidade; e, agora, gênero, enquanto o discurso ecológico é frequentemente enquadrada na perspectiva da natureza como vítima. Na década de 1980, Raymond Williams perguntava “se mostrar o explorado como degradado não simplesmente prolongaria o contrato do explorador”. A questão de gênero e sexualidade, ao invés de incorporar um socialismo literalmente libidinal, tem se tornado zonas não-erógenas de moralismo austero – mais listas de negatividade. Se abandonar a raiva ou jurar a abjeção, uma esquerda libidinal deveria defender ao invés de repreender. Sem ceder um milímetro à intolerância, deve oferecer uma visão positiva da sociedade, em vez de uma crítica negativa a ela.
A esquerda logicamente pode localizar o sentimento de perda da extrema direita no neoliberalismo: no custo de vida, na precariedade, nos empregos ruins, na perda dos direitos dos trabalhadores e nas aposentadorias iniciadas em idade mais avançada. Mas a libinidade negativa da direita e, na melhor das hipóteses, imune à racionalidade e, na pior, abertamente hostil. A dureza tecnocrática do Partido Trabalhista sobre a imigração e aos “fraudadores da previdência” não tem sido mais eficaz do que os jornalistas que verificam os fatos dos discursos de Richard Tice ou o livre “Led by Donkeys”, que enfatiza as deficiências gerenciais de Farage. Na esteira do esnobismo liberal desencadeado pelo Brexit, tais estratégias parecem condescendência cosmopolita para com aqueles cuja “verdade” transcende os fatos e cujos líderes agem em vez de administrar. A racionalidade e a tecnocracia são estéreis, burocráticas, enfadonhas: a raiva e a vingança são literalmente o material de que são feitos os filmes.
A extrema direita atrai muitos que, embora isolados da austeridade, não sentem prazer em suas propriedades ou economias, mas em ressentir-se de outros que aparentemente recebem tratamento estatal “preferencial”. Isto é o que Slavoj Žižek chamou de “roubo do prazer”: uma mentalidade pós-neoliberal que compreende a sociedade humana em termos de soma zero (o que uma pessoa tem deve ser tirado de outra). Uma resposta à direita, proposta pelo Blue Labour [tendência interna do Partido Trabalhista Britânico] e outras vozes da esquerda, é abandonar a cultura woke e combinar a economia de esquerda com o conservadorismo social. Diante do fracasso do partido racista Bündnis Sahra Wagenknecht (BSW) nas eleições de fevereiro na Alemanha e da hemorragia de votos do Partido Trabalhista para os Verdes desde 2024 (apesar do Partido Trabalhista imitar o Reform UK), essa não é uma estratégia brilhante como alguns pensam que é. Como argumentou Jeremy Gilbert, as pessoas não procuram os partidos de esquerda para obter políticas de direita: afinal, quatro quintos dos eleitores do Reform UK são ex-conservadores.
Sob a mágica árvore de dinheiro
No entanto, existe uma distinção significativa a ser delineada entre a extrema direita inatingível e os curiosos pelo Reform UK, aqueles radicalizados não pela ideologia, mas por uma incapacidade de conseguir uma consulta com o médico, pela coleta de lixo demorada ou pelas ruas comerciais com lojas fechadas com tábuas. Assim sendo, a campanha do Partido Trabalhista sobre os buracos nas ruas não é tão absurda quanto parece. Este empobrecimento é mais emocional do que fiscal, mas ainda assim é causado pelo capitalismo desenfreado, e não pelos bodes expiatórios apresentados pelos ideólogos da extrema direita.
Uma esquerda libidinal conectada com a privatização do Serviço Nacional de Saúde (NHS) às falhas nos pontos de atendimento e a entrega pontual ao declínio das ruas comerciais. Prometeria que poderíamos ter coisas boas – não apenas bens materiais, mas também transporte público; não apenas casas, mas também hospitais; não apenas segurança econômica, mas também comunidades prósperas. Para isso, teríamos que insistir que existe uma árvore mágica de dinheiro, que pertence a todos nós e que seu nome comum é “redistribuição”. Nesse sentido, uma esquerda libidinal enfatizaria o que nos une ao invés do que nos divide, deixando as guerras culturais para a direita, não apenas no domínio da política de identidade, mas também nas polarizações venenosas entre millennials e boomers e, particularmente, entre cidades e vilas.
Uma coisa que deveria unir todos os grupos democráticos é o ressentimento pelo trabalho assalariado. Mas, ao contrário, nos divide, com esse ressentimento voltado contra aqueles que não são suficientemente subjugados no trabalho. Como certa vez observou David Graeber, “o sofrimento se tornou um símbolo da cidadania econômica” – e, entretanto, podemos lembrar que muitas pessoas foram mais felizes durantes pausas históricas na rotina exaustiva (a semana de três dias na década de 1970, certos momentos nos lockdowns de 2020). No entanto, o Partido Trabalhista continua a se dirigir às “famílias trabalhadoras comuns”, se proclamando como “o partido do trabalho” e punindo aqueles que não conseguem trabalhar. Embora a ética do trabalho tenha criado coesão social sob o fordismo, tem pouco valor em meio à precariedade pós-fordista, aos contratos de zero hora, aos empregos sem sentido e à proteção cada vez menor dos trabalhadores.
Além disso, a atitude do Partido Trabalhista vai contra nosso momento neoliberal, já que a desindustrialização, a automação e a inteligência artificial estão tornando cada vez mais desnecessário o trabalho em tempo integral. Uma moção parlamentar para uma semana de quatro dias de trabalho agora tem o apoio que tinha em 2020, porque o trabalho sem sentido se tornou um instrumento de controle. Como pontuou Marcuse, “a alegria deve estar subordinada à disciplina do trabalho como ocupação em tempo integral” via “sacrifício metódico da libido”. A roda precisa estar em movimento, para que ninguém tenha tempo de imaginar outro modo de vida. Uma esquerda libidinal deveria exatamente imaginar isso.
Ao contrário do pensamento convencional, a ecologia é outro modo de combater a extrema direita. Rejeitada como “woke” pelo Partido Trabalhista, que recompensa os poluidores assim como encarcera os “abraçadores de árvores”, a esquerda deve fazer da natureza uma prioridade. Deve abandonar a austeridade que tem sido caracterizada pela retórica ecoativista e dizer adeus à narrativa da crise e do apocalipse, que contribui para os sentimentos populares de impotência e desesperança.
A natureza não é apenas constitutiva da existência humana, mas também da felicidade humana. Ela oferece um bálsamo não-transacional para a humanidade abatida pelo trabalho, desde os murmúrios costeiros até as cadeias montanhosas, das raposas urbanas aos fossos rurais. Enquanto a ecologia é um divisor, a natureza é um unificador, como provou a pandemia – desde as constantes marchas sobre o canto dos pássaros urbanos até as migrações rurais que muitas pessoas fizeram entre os lockdowns. Embora o foco nesses exemplos apresente possibilidades de atrair eleitores rurais tradicionalmente resistentes, “o meio ambiente” não é meramente rural; ampliadas para abranger o bem-estar de todas as localidades, as políticas ambientais poderiam atrair moradores urbanos desmoralizados pela deterioração de seus bairros.
Recuperando a alegria
De modo crucial, um socialismo libidinal reafirmar a esquerda como a verdadeira força dominante, diante dos falsos rebeldes da extrema direita. Conduzida por figuras dominantes como Farage e Trump, a direita não rejeita o status quo; mas, como argumentou Richard Seymour, “uma rebelião que projete a ordem social”. O ex-corretor de commodities Farage é o rosto inchado do capitalismo financeiro que nos colocou nesta situação e a esquerda necessita relacionar este fato com o desejo do Reform UK de reduzir o imposto sobre as empresas e à sua rejeição a um alardeado imposto sobre os ricos. A esquerda também precisa desmascarar o falso trabalhismo de Farage, enfatizando os planos do Reform UK de reverter as proteções aos trabalhadores. Apesar de seu status dominante, os líderes da extrema direita frequentemente são populistas carismáticos que podem se conectar com pessoas social e simbolicamente comuns. Tais líderes representam um “Grande outro” cuja atuação “prática” tranquiliza as pessoas de que eles resolverão a bagunça, por mais performática que seja essa representação.
O artigo acima representa a opinião do autor e não necessariamente corresponde às opiniões do EOL. Somos um portal aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista.
Traduzido de https://tribunemag.co.uk/2025/08/dreaming-red-plenty, por Paulo Duque, do Esquerda Online
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