Pensando com(o) Lélia Gonzalez: Marcha Nacional de Mulheres Negras


Publicado em: 26 de novembro de 2025

Brenda Marques, Coordenação Nacional do Afronte!

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Este é o ultimo artigo da série “Novembro Negro pensando com(o) Lélia Gonzalez”, em que dialoguei as principais ideias contidas no pensamento da intelectual com três temas atuais de luta e resistência da população negra. Essa articulação demonstra tanto a atualidade de uma pensadora à frente de seu tempo como a necessidade de estar conectado com aqueles e aquelas que vieram antes de nós para o enfrentamento dos desafios de nossa geração.

“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”(Gonzalez,2020 p.267)

Celebrar o legado de 10 anos da marcha nacional de mulheres negras

O dia 18 de novembro de 2015 está historicamente marcado pela Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver, realizada em Brasília. Mais de 50 mil mulheres de todo o Brasil se reuniram para reivindicar o fim do feminicídio e da violência, o combate ao racismo e ao sexismo nos meios de comunicação, no trabalho, na saúde e nas instituições, além de exigir respeito às religiosidades de matriz africana, a titulação das terras quilombolas e a participação efetiva na política, como afirma o manifesto divulgado pela marcha.

Em 25 de novembro de 2025, o movimento de mulheres negras voltou a ocupar Brasília, agora trazendo o acúmulo de uma década marcada por conquistas importantes, mas também por retrocessos que incidiram diretamente sobre nossas vidas. A continuidade da marcha reafirma que nossos passos vêm de longe e que nossa força política é resultado de uma longa trajetória de enfrentamentos, tanto contra uma sociedade racista quanto no interior do próprio movimento feminista.

Lélia Gonzalez foi uma das pioneiras nesses enfrentamentos e denunciou o sentido universalista de “mulher” presente no movimento feminista brasileiro, que apagava as experiências de mulheres negras e indígenas. Para ela, raça, classe e gênero operam de forma indissociada na realidade, produzindo violências específicas que atravessam a vida das mulheres negras. Ao tratar como pauta central apenas a opressão de gênero, o feminismo hegemônico negligencia o racismo como elemento constitutivo da opressão vivida por grande parte das mulheres do nosso país.

Nesse sentido, a intelectual incentivou, desde a década de 1970, que o movimento de mulheres negras se organizasse em torno de suas próprias pautas, para que nossas experiências, vozes e prioridades políticas não fossem negligenciadas por agendas que historicamente nos invisibilizam. O movimento de mulheres negras assumiu, assim, seu lema “organização já”, e produziu, como fruto da mobilização de mulheres como Valdecir Nascimento, Nilma Bentes, Luiza Bairros e tantas outras, espaços de formação política, produção intelectual, ativismo e fortalecimento coletivo. Sem esses avanços não seria possível a eleição de vereadoras e parlamentares negras como Talíria Petrone, Áurea Carolina, e Marielle Franco, e a ampliação de nossa presença nos espaços políticos.

A marcha de 2015 foi um marco do início de um ciclo político: o golpe contra Dilma Rousseff, o sucateamento de direitos, os ataques à democracia e o ascenso bolsonarista afetaram diretamente a vida das mulheres negras. Neste ano, ela carrega a responsabilidade de travar ainda mais lutas no próximo período; sendo uma das últimas grandes mobilizações antes de um ano eleitoral decisivo para a esquerda brasileira, mais de 300 mil mulheres em Brasília reafirmaram que é pela organização coletiva das mulheres negras que continuaremos abrindo caminhos para o futuro.

Mulheres negras por Reparação e Bem-viver

As mulheres negras carregam, em seus corpos e trajetórias, os efeitos acumulados de séculos de escravidão. Por isso, não se trata apenas de reconhecer um passado traumático, mas de enfrentar as consequências materiais, simbólicas e políticas que ainda definem nossas vidas: o menor acesso à renda, à educação, à saúde e à moradia digna. A Marcha Nacional de Mulheres Negras deste ano carrega a reivindicação da reparação histórica como uma exigência, porque sabemos que, sem enfrentar as raízes profundas do racismo e do sexismo, com justiça e financiamento público como propõe a PEC 27/24 de Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial do deputado federal Orlando Silva, nenhuma democracia será plena e nenhuma liberdade será completa.

A reparação histórica dialoga diretamente com a principal luta do movimento de mulheres negras: o Bem Viver. Trata-se do projeto civilizatório da vida em sua plenitude defendido pelas mulheres negras. Essa é uma luta por transformação radical, em diálogo com os povos originários e a partir do Sul Global, que reconhece nossas diferenças enquanto amefricanas, conceito que, como propõe Lélia Gonzalez, “designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro como a daqueles que chegaram na América muito antes de Colombo” (Gonzalez, 2020, p. 135).

Por isso, quando as mulheres negras reivindicam o Bem Viver, denunciam a estrutura colonial e lutam por um modo de vida que rompa com o racismo, o sexismo e a exploração capitalista. Reafirmam práticas ancestrais de resistência e solidariedade e buscam construir outra sociedade, com condições de vida melhores não apenas para as mulheres negras, mas para todas e todos.

Em 2015, eu era uma adolescente ainda distante do processo de afirmação da minha negritude. Agora, em 2025, tive a oportunidade de estar na Marcha Nacional enquanto militante política, consciente de minha história, de minha ancestralidade e do legado que me sustenta. Sinto-me fruto da luta construída ao longo dessas décadas, das mulheres que abriram caminhos, denunciaram violências, afirmaram direitos, produziram conhecimento e transformaram a realidade para que jovens como eu pudessem encontrar pertencimento e força coletiva.

Nossos passos vêm de longe e seguimos em marcha!

 

Sobre Lélia Gonzalez (1935–1994): Intelectual, antropóloga, professora, militante do movimento negro e uma das principais referências do feminismo negro no Brasil e na América Latina. Mineira radicada no Rio de Janeiro, foi fundadora do MNU (Movimento Negro Unificado) e atuou na universidade, nos movimentos sociais e na política, sempre articulando raça, gênero e classe para denunciar as desigualdades estruturais do país.

Referência bibliográfica

GONZALEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs.). Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.p.267-270

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs.). Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 127-138


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