Questões atuais sobre a Frente Única


Publicado em: 20 de novembro de 2025

Coluna Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

Coluna Henrique Canary

Henrique Canary

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A Dança, Henri matisse (1909). Museu Estatal Hermitage (Rússia)

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A Frente Única Operária é uma das táticas mais debatidas dentro da esquerda socialista mundial. Formulada pela Internacional Comunista em 1922, em uma resolução que se chamava “Teses sobre a Unidade da Frente Proletária”, a FUO colocava a necessidade da unidade entre as forças da III Internacional (revolucionária à época) e da II Internacional (oportunista) na luta econômica defensiva. A questão voltou a ser debatida nos anos 1930, diante do avanço do fascismo, principalmente na Alemanha e na França. Cem anos depois de sua formulação, a ameaça neofascista no mundo reascendeu as discussões sobre a Frente Única como mecanismo de resistência operária e popular.

De um modo geral, trata-se de uma política contra a qual poucas organizações se enfrentam de maneira aberta. Formalmente, admite-se a necessidade da unidade na luta defensiva e principalmente na resistência contra o fascismo, mas a questão está longe de ser incontroversa. Ao pensar a Frente Única, é preciso ter em conta a realidade do século 21, e não unicamente as orientações e documentos considerados clássicos. Assim, uma teoria renovada da Frente Única levanta várias questões. Vamos a algumas delas.

A Frente Única não é uma tática de autoconstrução

A Frente Única não pode ser reduzida a uma tática de desmascaramento das direções com vistas à disputa política entre correntes. A revelação do verdadeiro caráter traidor das direções pode até ocorrer, caso a força majoritária recuse a unidade ou abandone a luta. Se isso acontecer, os revolucionários preservam sua liberdade de crítica. Mas esse não é seu objetivo. A Frente Única não é uma manobra, uma tática de autoconstrução. É um chamado sincero à unidade.

Quando os revolucionários a levantam como palavra de ordem, eles querem mesmo que ela se concretize porque ela responde a uma necessidade objetiva e subjetiva da classe. O objetivo imediato da Frente Única é colocar a classe trabalhadora em movimento para reverter a correlação de forças na sociedade. Essa é sua essência mais profunda.

Programa mínimo ou programa de transição?

Muitas organizações revolucionárias aprovam o chamado à Frente Única, mas criticam o programa levantado. Afirmam que a FUO deveria propor um programa “de transição”, para usarmos um termo trotskista. Mas essa é uma falsa polêmica. O programa da Frente Única não pode ser uma invenção arbitrária dos revolucionários. Não se trata de propor um programa mais ou menos “avançado” ou “transicional”. O programa deve derivar da situação objetiva e responder a ela. O caráter transicional de um programa não é dado de antemão. Depende se esse programa permite ou não o avanço da mobilização rumo a palavras de ordem cada vez mais radicais, cada vez mais anticapitalistas. Para isso, precisa dialogar com a consciência. Nenhuma palavra de ordem é intrinsecamente revolucionária ou reformista.

Depende do contexto em que ela é levantada e da mobilização que ela provoca. Em seus debates com o stalinismo, Trótski criticava a mania dos partidos comunistas de levantarem palavras de ordem maximalistas, quando se tratava de tarefas de defesa e resistência:

“Na maior parte dos casos aconteceu que os órgãos dirigentes do partido comunista se dirigiram aos reformistas com propostas de lutarem conjuntamente por palavras de ordem radicais que não decorriam da situação e não correspondiam à consciência das massas. As propostas tinham o caráter de tiros de festim. As massas continuaram inativas. Os chefes reformistas explicaram as propostas dos comunistas como uma intriga que tinha por objetivo a destruição da social-democracia. Tratava-se de uma aplicação puramente formal, decorativa, da política de Frente Única, quando, por sua própria natureza, ela só pode ser fecunda na base da apreciação realista da situação e do estado de espírito das massas”.1

Ou seja, se queremos realmente a Frente Única, não é possível propor a ela um programa que nossos aliados reformistas não aceitarão. Isso é boicotar a sua concretização, é dar “tiros de festim”.

A Frente Única é uma tática ou uma estratégia?

A FUO foi historicamente definida como uma tática, é verdade. Isso quer dizer que ela deriva não dos princípios, mas da realidade concreta. No entanto, já em sua origem, a Frente Única é uma tática geral, pensada para todos os partidos da Internacional Comunista e para todo o período de ofensiva capitalista. Isso já a coloca, como mínimo, como uma tática especial, com um status diferenciado em relação a todas as outras táticas. É por isso que Lênin afirma que quem não entendeu a necessidade da Frente Única “estará perdido para o movimento comunista”2. Não estamos falando, portanto, de uma tática qualquer, que pode ser escolhida entre tantas outras disponíveis ou rejeitada sem maiores consequências. Mas há outro problema. Tática e estratégia são termos relativos, e não absolutos. Uma coisa é tática ou estratégica em relação a outra, e não em relação a si mesma. Por isso, se vivemos uma etapa mais ou menos longa de avanço do fascismo e se caracterizamos que a unidade da frente proletária é imprescindível para a derrota da ameaça maior, então pode-se afirmar que a Frente Única é uma estratégia do período específico que vivemos porque sem ela é impossível vencer. Se a vitória no período depende diretamente da Frente Única, ela adquire um caráter estratégico.

A Frente Única é só para lutar ou inclui um chamado à unidade eleitoral?

As teses originais da III Internacional não abordam o problema. Mas Trótski o faz quando fala da Alemanha. Segundo ele, o chamado à unidade para lutar não implica em unidade eleitoral entre reformistas e revolucionários. Para o chefe do Exército Vermelho, o partido revolucionário deve se apresentar sozinho nas eleições porque esse é um espaço de disputa programática, e nosso programa não pode se confundir com o programa da social-democracia: “A ideia de propor o candidato à presidência [da Alemanha] pela Frente Única operária é uma ideia radicalmente errônea. Só se pode propor um candidato na base de um programa definido. O partido não tem o direito de furtar-se, durante a eleição, de mobilizar os seus simpatizantes e de contar as suas forças”.3

Muitas organizações socialistas se agarram a essa citação como um argumento para se oporem, nos dias de hoje, à aliança eleitoral entre reformistas e revolucionários, mesmo em um contexto de luta contra o fascismo. Essa visão, no entanto, incorre em dois erros.

O primeiro é ignorar que Trótski estava falando não dos princípios gerais da atuação eleitoral dos revolucionários, mas da situação específica alemã. Nesse caso concreto, Trótski caracterizava que o nazismo não chegaria ao poder pela via eleitoral porque esbarraria em uma maioria da população que se dividia entre o voto comunista e o voto social-democrata. Para Trótski, o nazismo só poderia triunfar pela via do golpe, mobilizando nas ruas as forças pequeno-burguesas e desclassadas contra a resistência operária. De fato, foi isso que se viu na Alemanha, onde as eleições de 1932 resultaram em uma derrota de Hitler e mostraram os limites eleitorais do fascismo. Ainda assim, nos parece um erro sectário de Trótski minimizar a importância da agitação eleitoral unitária contra o fascismo.

Mas há outro problema: o próprio Trótski mudou de opinião. Em 1936, diante do avanço fascista na França, defendeu a constituição de um governo conjunto entre o PCF (Partido Comunista Francês) e a SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária): “O objetivo da Frente Única dos partidos socialista e comunista não pode ser outro que um governo desta frente, isto é, um governo socialista-comunista, um ministério Blum4-Cachin56. Para aqueles que duvidam que Trótski esteja falando de uma tática eleitoral, o dirigente russo segue: “A Frente Única não renuncia à luta parlamentar. […] A luta pelo poder significa a utilização de todas as possibilidades oferecidas pelo regime bonapartista semiparlamentar”7. A partir daí, Trótski passa a analisar os resultados eleitorais de comunistas e socialistas e a levantar hipóteses.

Mas não precisamos ter a mesma avaliação sobre os processos históricos. A questão que importa é: faz sentido hoje negar a necessidade da unidade eleitoral entre reformistas e revolucionários?

O neofascismo está fazendo uma clara aposta na via eleitoral em todo o mundo e está obtendo um enorme sucesso. Nesse contexto, é correto negar a necessária unidade eleitoral entre todas as forças proletárias? Nos parece que tomar a orientação (já bastante questionável) de Trótski para o processo alemão e expandi-la para o mundo inteiro e até para o nosso próprio período de vitórias eleitorais fascistas é um erro dogmático. Por isso, acreditamos que a Frente Única contemporânea deve incluir a unidade eleitoral entre reformistas e revolucionários, instrumento privilegiado de agitação antifascista.

A Frente Única e os governos de colaboração de classes

Atualmente, os revolucionários de vários países estão engajados no chamado à Frente Única. Mas as grandes organizações reformistas que gozam da confiança das massas não facilitam a nossa vida. Em toda parte, não só evitam a mobilização, como insistem em transformar a Frente Única em Frente Ampla, ou seja, em incorporar setores burgueses em suas alianças eleitorais e mesmo em seus governos. Qual a atitude dos revolucionários diante disso? Aqui, trata-se de diferenciar três terrenos: a) o da luta concreta; b) o da disputa eleitoral e c) o do governo.

Na luta concreta, é um pouco mais simples. Os revolucionários defendem a Frente Única proletária, mas obviamente não se recusam à unidade de ação pontual com setores burgueses que queiram somar forças na resistência antifascista ou democrática.

Na disputa eleitoral, é mais complexo. Cremos que os revolucionários devem admitir que o fascismo é uma ameaça tão importante que, sob certas condições, pode ser necessária e correta a unidade eleitoral entre partidos proletários (revolucionários e reformistas) e partidos burgueses democráticos. Isso é assim porque trata-se de criar um cordão sanitário, um bloqueio absoluto que feche o caminho dos fascistas ao poder. Nesse contexto, os revolucionários não podem aparecer como um obstáculo à vitória das forças democráticas. Se vamos ou não entrar em uma frente eleitoral policlassista, isso depende da realidade concreta: a proporção de forças dentro da frente, o tamanho da ameaça fascista, a situação da classe, o ânimo da vanguarda etc. Mas não vemos como, na situação atual, negar em absoluto e “por princípio” a possibilidade de tal unidade.

No terreno do governo, também não é simples. Defendemos que, uma vez estabelecido um governo de colaboração de classes, os revolucionários devem lutar para que esse governo atue de forma a impor uma derrota política contundente ao fascismo, o que só pode ocorrer se esse governo avançar com medidas de ampliação de direitos sociais e políticos. A melhor localização para que os revolucionários lancem essa batalha é desde fora do governo, com liberdade de ação e opinião para apoiar as medidas progressivas e criticar as medidas regressivas. Ou seja, os revolucionários devem lutar para separar os reformistas dos setores burgueses e transformar o governo de colaboração de classes em governo de independência de classe.

Conclusão: a estratégia final da Frente Única

O problema da relação com os governos de colaboração de classes nos remete à questão mais importante: a estratégia final da Frente Única. Afirmamos que a FUO tem uma conexão profunda com a estratégia da tomada do poder.

O esquema clássico do marxismo do século 19 admitia dois tipos de organização: os sindicatos e o partido proletário. Os sindicatos seriam organismos de Frente Única. Eles surgiram para unir toda a classe na luta econômica. Já para a luta política, a classe contava com o seu partido. Quando surgiram os sovietes, na Revolução Russa de 1905, esse esquema sofreu um abalo. Surgiu um organismo que não era sindical, mas sim político. Mas não era programático nem ideológico, e sim de Frente Única. Um tipo de híbrido. Isso causou uma grande confusão entre os revolucionários, que viram os sovietes como concorrentes do partido e até tentaram boicotá-los. Lênin chegou a escrever a seus correligionários, aconselhando-os a seguirem o exemplo de Trótski, que entrara de corpo e alma na nova organização e se tornara presidente do Soviete de São Petersburgo. Quando os sovietes ressurgiram, já em fevereiro de 1917, assumiram novamente a forma de uma Frente Única política que desta vez detinha uma parcela do poder de Estado. Lênin não hesitou em chamar à constituição de um governo baseado exatamente nos sovietes, ou seja, na Frente Única. Mais do que isso, apesar de todas as diferenças que tinha com mencheviques e socialistas-revolucionários, comprometeu-se a atuar como um partido de oposição leal, caso os sovietes assumissem o poder.

Por uma série de fatores, os bolcheviques acabaram constituindo um governo de partido único a partir do verão de 1918, mas esse nunca foi seu plano. Em novembro de 1917, bolcheviques e mencheviques chegaram a negociar a formação de um governo de unidade proletária, mas o acordo não foi adiante devido às exigências mencheviques. Isso nos remete ao futuro da Frente Única. Diferente de uma tática pontual, que pode ser trocada por outra a qualquer momento, a Frente Única deve constituir o próprio embrião do governo proletário. Eis a sua relação com a estratégia. A aposta dos revolucionários deve ser desenvolver a Frente Única rumo à disputa unitária do poder, tática que acabou entrando para a história com o nome de “governo operário e camponês”, ou seja, a exigência de um governo exclusivo da classe trabalhadora, mas que ainda não rompe com a propriedade privada e não avança em medidas diretamente socialistas.

Os sectários querem repetir a experiência bolchevique e sonham com o seu próprio governo hiper-revolucionário. Mas a Frente Única talvez seja a única forma de se chegar a um governo proletário, ainda que reformista, ainda que moderado, mas composto pelos organismos da classe e portanto potencialmente capaz de romper com a burguesia e estabelecer uma ditadura do proletariado, que é o governo democrático da maioria do povo. Nas palavras de Trótski:

“A admiração puramente verbal pelos sovietes espalhou-se nos círculos de ‘esquerda’ juntamente com a incompreensão de sua função histórica. Em geral, define-se os sovietes como órgãos de luta pelo poder, como órgãos de insurreição e, finalmente, como órgãos da ditadura. Estas definições estão certas formalmente. Mas não esgotam de modo algum toda a função histórica dos sovietes. Antes de tudo, não explicam porque são precisamente os sovietes que são necessários na luta pelo poder. A resposta a esta questão é a seguinte: assim como o sindicato é a forma elementar de Frente Única na luta econômica, do mesmo modo o soviete é a forma mais elevada de Frente Única nas condições em que o proletariado entra na fase da luta pelo poder”.8

Fica evidente que Trótski, levando em consideração a experiência bolchevique de 1917, considerava que a luta pelo poder não é uma tarefa unicamente do partido revolucionário, mas de toda a classe, organizada em toda a sua heterogeneidade nos sovietes, ápice da Frente Única. Aqueles que rejeitam a Frente Única, que a criticam por sua excessiva complacência com os reformistas e por seu caráter às vezes demasiadamente moderado, demonstram uma impaciência infantil com a classe e negam assim o próprio sentido da existência do movimento revolucionário.

1 Trótski, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Editora Sundermann, 2011, p. 184.
2 Protokoll des III Kongress, p. 511. Apud Broué, Pierre, História da Internacional Comunista (1919-1943), São Paulo:
3 Editora Sundermann, 2007, pág. 291.
4  Léon Blum, dirigente da SFIO.
5 Marcel Cachin, dirigente do PCF.
6 Trótski, Leon. Aonde vai a França?, São Paulo: Editora Desafio, 1994, pág. 56.
7 Ibidem. 
8  Trótski, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Editora Sundermann, 2011, p. 126.

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