Pensando com(o) Lélia Gonzalez: O genocídio da população negra
Publicado em: 20 de novembro de 2025
Este é o segundo artigo da série “Novembro Negro pensando com(o) Lélia Gonzalez”, em que vou dialogar as principais ideias contidas no pensamento da intelectual com três temas atuais de luta e resistência da população negra. Essa articulação pretende demonstrar tanto a atualidade de uma pensadora à frente de seu tempo como a necessidade de estar conectado com aqueles e aquelas que vieram antes de nós para o enfrentamento dos desafios de nossa geração.
“E Jorge, trabalhador negro, arrimo de família, filho e irmão dedicado, não soube por que foi assassinado. A imprensa silenciou sobre esse “acidente de trabalho”(…) Quanto a Tininha, mandou os filhos para Salvador. Enquanto isso, desenvolve verdadeira peregrinação junto ao Inamps para conseguir a magra pensão de Jorge, a que ela e os filhos menores têm direito. Profundamente revoltada, ela insiste e não desiste. Só depois, então, retornará a Salvador, ao encontro da “Negrice cristal/ Liberdade, curuzu”.”(GONZALEZ,2020 p.264)
O projeto de extermínio em suas várias dimensões
Este é um trecho de uma intervenção que Lélia Gonzalez intitula “O terror nosso de cada dia”. Nela, conta a história de uma trabalhadora doméstica chamada Tininha, moradora da Baixada Fluminense, que teve seu filho assassinado injustamente pela polícia. Esse é um retrato que ainda faz parte do cotidiano da população negra no Brasil, como demonstra o relatório Pele Alvo: a Cor que a Polícia Apaga, divulgado em 2021, que aponta que pelo menos cinco pessoas negras foram mortas por dia em ações policiais.
Desde o período colonial, as estruturas de vigilância e repressão no Brasil foram construídas para controlar a população negra. A Guarda Real de Polícia, criada em 1808, já tinha como função principal conter pessoas escravizadas, impedir fugas e reprimir levantes, protegendo a ordem escravista e os interesses das elites. Mesmo após a Independência, as novas forças policiais mantiveram esse direcionamento, e o “inimigo interno” continuou sendo a população negra, mostrando que o controle dos corpos negros é um traço estrutural das instituições de segurança, que se aprofunda com o processo de militarização.
Mas o projeto de extermínio da população negra no Brasil não tem apenas um sentido físico, mas também político e ideológico. Vemos isso historicamente nas diversas teorias racialistas expressas no I Congresso Universal de Raças, em 1911, que previa que, no curso de um século, a raça negra no Brasil poderia desaparecer pela miscigenação e pela imigração europeia. E vemos de forma ainda mais sofisticada no mito da democracia racial, uma ideologia que passou a ser a principal tônica das relações sociais brasileiras a partir da década de 1930, buscando afirmar a existência de uma harmonia racial no país.
Lélia Gonzalez elenca o mito da democracia racial como um poderoso instrumento de dominação, responsável por encobrir o racismo no Brasil e, nesse sentido, um dos pilares que sustentam o extermínio da população negra em suas múltiplas formas, pois, ao negar a existência do racismo, legitima a continuidade de práticas que violam, controlam e eliminam vidas negras cotidianamente.
Ao propagar a falsa ideia de harmonia entre brancos e negros, esse mito invisibiliza a violência estrutural que se manifesta no genocídio físico expresso nos altos índices de homicídios, principalmente de jovens negros, no encarceramento em massa, na repressão policial seletiva e na precarização do acesso a direitos básicos, de modo que o extermínio da população negra siga sendo tratado como um fenômeno isolado, e não como resultado orgânico do racismo estrutural brasileiro.
Nesse sentido, a mesma lógica que precariza serviços, criminaliza territórios e desumaniza sujeitos é a que autoriza a atuação letal da polícia. As favelas e periferias lidam cotidianamente com a ausência de políticas de saúde, educação, moradia, lazer e cultura, pois, antes do tiro, há todo um percurso de negação de humanidade e a produção de uma narrativa que naturaliza a morte desses corpos como “custo” da segurança pública. A polícia que chega atirando é apenas a ponta visível de um sistema que, desde o período escravista, opera pela contenção, vigilância e eliminação dos corpos negros. Assim, o genocídio não é acidente, mas continuidade de um projeto de poder que decide quem pode viver e quem deve morrer.
Chega de chacina, o povo negro quer viver!
No dia 28 de outubro de 2025, a chamada megaoperação das polícias do Rio de Janeiro, a mando do governador Cláudio Castro, deixou mais de 120 pessoas mortas no Complexo da Penha e do Alemão. A operação mais letal da história do estado chocou o Brasil e o mundo com as imagens de familiares que retiraram, com as próprias mãos, mais de 60 corpos assassinados nas matas. Em sua maioria mulheres negras, como Tininha, da intervenção de Lélia Gonzalez, foram as responsáveis por recolher os corpos de seus familiares, não apenas mortos, mas com sinais evidentes de tortura.
Na mídia, mesmo sem haver pena de morte no Brasil, o discurso dominante era o de que a operação havia sido vitoriosa, ainda que não tenha desarticulado o comando central do tráfico nem prendido o principal líder da facção que aterroriza a vida dos moradores das favelas do Rio. Isso ocorre porque, para a extrema direita, vitória não significa enfrentar o crime organizado, mas alimentar o discurso do medo e garantir que, em ano eleitoral, a população escolha nas urnas a política de morte.
A extrema direita reforça o pacto histórico que autoriza a eliminação de corpos negros em nome de uma suposta ordem e transforma a política de segurança pública em estratégia central para se eleger, convertendo a morte do nosso povo em capital político. Parte da esquerda brasileira, por sua vez, tem dificuldade em formular um debate consistente sobre segurança pública, em se colocar ao lado das mães de vítimas, em denunciar a letalidade policial e em assumir a centralidade do racismo na política de segurança, sobretudo porque se mantém distante das populações negras das favelas e periferias, que são as que mais sofrem com a violência.Cabe aos movimentos negros não abrir mão de debater o genocídio da população negra e, com unidade e sentido estratégico, continuar produzindo políticas de vida para o nosso povo.
Porque, ainda que marcados pela violência, temos sobrevivido, sustentando o sonho dos nossos ancestrais frente a um projeto de aniquilação completa. Para Lélia Gonzalez, a resistência negra não é apenas reação, é a criação de modos próprios de existir, sobreviver e lutar dentro de uma sociedade que sempre tentou nos apagar. Produzimos vida na cultura, no samba, na arte, na oralidade e na escrita, quando projetamos uma nova sociedade, mas sobretudo, produzimos vida quando permanecemos juntos.
Sobre Lélia Gonzalez (1935–1994): Intelectual, antropóloga, professora, militante do movimento negro e uma das principais referências do feminismo negro no Brasil e na América Latina. Mineira radicada no Rio de Janeiro, foi fundadora do MNU (Movimento Negro Unificado) e atuou na universidade, nos movimentos sociais e na política, sempre articulando raça, gênero e classe para denunciar as desigualdades estruturais do país.
Referência bibliográfica
Gonzalez, Lélia. O terror nosso de cada dia. In: GONZALEZ, Lélia; RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 263-264.
Polícia atualiza para 121 o número de mortos em megaoperação no Rio: Ação é a mais letal da história do país; 117 civis e 4 policiais morreram https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/rj/policia-atualiza-numero-de-mortos-em-megaoperacao-no-rio/
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