Novembro negro: por que marchamos? Vida, reparação e bem-viver
Neste mês, marcado pelas discussões antirracistas, levar para as ruas no Dia Nacional da Consciência Negra e na Marcha das Mulheres Negras em Brasília as principais bandeiras de nossos tempos
Publicado em: 20 de novembro de 2025
Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Lutamos pelo direito à vida: fim do genocídio negro e da falsa guerra às drogas
A operação deflagrada no Rio de Janeiro por Claudio Castro escancara algo já identificado e denunciado anteriormente pelos movimentos negros e de direitos humanos há tempos: a extrema direita agita uma agenda reacionária de “cancelamento de CPFs” como solução para a crise de segurança pública, e usa isso como palanque eleitoral
Trata-se da elevação a um novo patamar da falsa ideia de “guerra às drogas”, que até hoje organiza a brutal criminalização a que é submetida a juventude periférica, de maioria negra. A operação no Rio de Janeiro marca a história como a operação policial mais letal do país, mas além disso como um revés na conjuntura política nacional.
Para interromper a dinâmica de recuperação de popularidade do governo Lula, a extrema direita não se constrange em utilizar uma centena de mortos como degrau para novamente alcançar Donald Trump. Não é acidental que o contexto da chacina seja o de uma ofensiva do imperialismo estadunidense em países da América Latina como Venezuela e Colômbia sob a justificativa do combate ao “narcoterrorismo” – termo, inclusive, já adotado por Castro e outros expoentes do bolsonarismo, como o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas.
Diante desse cenário, muita coisa está em jogo e a atuação dos movimentos negros pode ser decisiva. A segurança pública é um “calcanhar de Aquiles” para a esquerda há tempos, não por falta de acúmulos programáticos – a partir da luta concreta ao lado de movimentos de vítimas do Estado, acompanhando a situação da população carcerária e o cotidiano das periferias, temos em geral na esquerda, em especial na esquerda radical, um programa integrado, que leva em conta o enfrentamento das desigualdades sociais com políticas públicas de educação, lazer, trabalho, moradia e assistência social, além de um debate sério sobre descriminalização das drogas e desmilitarização das polícias. Defendemos saídas estruturais, de longo prazo, que já se demonstraram eficazes.
A contradição é, justamente por tratar com complexidade que merece o problema, isso tudo muitas vezes é pouco compreendido como parte das nossas propostas para a segurança pública ou por não conseguir dialogar com a maioria da população do ponto de vista mais imediato da questão.
O movimento negro deve conferir toda atenção às duas iniciativas que tramitam em resposta ao tema por iniciativa do governo federal: o PL Antifacção e da PEC da Segurança Pública. Ainda que limitadas e, em alguma medida, passíveis de críticas, a apresentação desses projetos é uma tentativa do governo de “sair das cordas” no assunto. A extrema direita percebeu isso e organiza uma ofensiva ao lado centrão, como fica nítido com a escolha de Guilherme Derrite como relator do PL e a as modificações propostas que significam na prática uma completa descaracterização dos projetos originais. Com isso, abre-se na sociedade brasileira a possibilidade de um debate político urgente e de total interesse dos movimentos negros, que é: como combater o crime organizado?
Sendo parte importante dessa disputa política, como demonstrou a retomada das ruas após a chacina do Jacarezinho (2021), ainda no contexto de pandemia, quando o movimento negro retomou as ruas para dizer “nem tiro, nem fome e nem covid” e agora com o “chamado geral contra a morte”, o movimento negro pode e deve protagonizar esse debate na esquerda. Denunciar e lutar contra os enormes retrocessos que quer impor a extrema direita a esses projetos. E pressionar para que, especialmente o texto da PEC, seja centrado no desmantelamento do poder e da influência do tráfico de drogas, perseguindo o rastro do dinheiro e conferindo punição para aqueles que mais lucram com isso – frequentemente encontrados em condomínios de luxo como Vivendas da Barra ou em grandes centros do capital financeiro como a Faria Lima.
Reparação já! Lutamos pela aprovação da PEC 27
390 anos: esse foi o período em que vigorou oficialmente no Brasil a escravização negra. Além de mão de obra explorada para exportação agropecuária, o comércio de pessoas escravizadas foi ainda parte de uma engrenagem lucrativa, origem do acúmulo de riquezas que moldou o funcionamento do capitalismo mundialmente e a sociedade brasileira de forma particular.
Como denunciam historicamente os movimentos negros, a abolição da escravatura se deu de forma incompleta. Depois de quase quatro séculos de escravização e lucro com o suor e sangue de pessoas negras, os libertos tiveram negados direitos básicos como, acesso à terra, educação e moradia. A República ignorou todas essas demandas e logo adiante, com a falsa ideia de democracia racial, buscou apagar essa história de violência e desigualdades calcada no racismo. O Estado brasileiro tem, portanto, uma dívida histórica com a população negra.
Parte da luta antirracista das últimas quatro décadas passou pela construção da identidade negra no Brasil em oposição o mito da democracia racial. O objetivo era pedagógico: demonstrar que as profundas desigualdades sociais do Brasil estão atreladas ao racismo e a partir da afirmação de uma consciência negra, coletiva e crítica sobre esse passado, abrir caminhos para um debate mais profundo sobre a necessidade de reparação histórica. Isso explica o caminho de uma das principais conquistas deste ciclo de lutas do movimento negro, que foi a política de cotas étnico-raciais nas universidades públicas. Pela primeira vez, a auto-afirmação de uma identidade marginalizada historicamente tornou-se possibilidade de acesso a espaços negados anteriormente, como é o caso da Academia.
Neste novo momento do protesto negro, caracterizado por uma maioria social antirracista (como demonstrou o censo de 2022) e pelo fortalecimento da eleição de representantes negros comprometidos com o tema, cabe ao conjunto do movimento negro a reflexão sobre quais os caminhos deve tomar um novo ciclo de lutas dos movimentos negros por reparação. Nesse sentido, é de grande importância a Proposta de Emenda à Constituição 27, apelidada de PEC da Reparação.
A comissão responsável pela análise da PEC é presidida pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e relatada pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP). A proposta, visa inserir a igualdade racial na constituição federal, tornando obrigação do Estado eliminar todas as formas de discriminação racial. Sendo assim, políticas de reparação econômica e de promoção da igualdade racial passariam a ser permanentes, uma política de Estado.
Para isso, o texto prevê a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) para a gestão das políticas públicas, à exemplo do modelo do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). E o Fundo Nacional de Reparação Econômica e Promoção da Igualdade Racial, administrado por instituição financeira federal e com acompanhamento de um conselho com participação da sociedade civil, para financiar projetos culturais e educacionais; ações de combate às desigualdades sociais; políticas de inclusão e justiça socioeconômica, além de programas de oportunidades.
A proposta prevê ainda que o Estado aporte um bilhão de reais por ano durante vinte anos. O recurso estaria fora do teto de gastos e pode ainda ser complementado com valores referentes a condenações por crimes como discriminação racial e trabalho análogo à escravidão e doações.
Naturalmente, a PEC abre discussões mesmo no interior do movimento negro. Há setores que defendem que esse fundo deva ser ainda maior, os que acreditam em algum tipo de compensação econômica individual para cada pessoa negra. Mas dois entendimentos têm unificado o debate: um primeiro é o de que tudo, mesmo os bilhões previstos para essa política, parece ainda insuficiente para reparar o horror e as consequências da escravização; e um segundo é de que, mesmo assim, a PEC abre uma oportunidade de materializar um novo passo no sentido da luta por reparação. Disputar a maioria negra em apoio ao sentido geral da reparação histórica é parte fundamental disso.
Marchamos por nós, por todas e todos nós: lutamos por bem-viver
Historicamente, desde o processo de resistência à escravização, as mulheres negras se organizam para lutar. Seja por liberdade ou em defesa de suas vidas, na luta por direitos, cumpriram o papel de desenvolvimento de estratégias de organização pautadas na coletividade. É a partir desta dimensão que compreendemos o movimento de mulheres negras e seu papel nas lutas que construíram o nosso país.
A primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras à Brasília em 2015 reuniu cerca de 50 mil mulheres a partir de um eixo de luta contra o racismo e a violência e pela formulação de origem ameríndia do bem-viver – uma lógica coletiva e horizontal de organização da vida, que se contrapõe aos interesses do neoliberalismo. Há uma particularidade do contexto em que ela é gestada regionalmente e em que efetivamente se dá, que é o início de uma situação defensiva, que se abre com o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Sem aderir a uma linha abstencionista em relação ao retrocesso que significava este processo, o ato foi uma das últimas grandes manifestações da esquerda, que dialogou com o governo petista a partir da reivindicação de uma agenda de direitos.
Mas além disso, importa ao contexto de realização da primeira Marcha a eclosão de diversas lutas feministas à nível internacional, com fortes expressões em países da Europa e América Latina. Tendo o antirracismo como elemento central de um movimento de mulheres, a construção daquela manifestação complexifica, pois, aprofunda em termos de conteúdo político e programático, um processo no qual o Brasil começou a se localizar com o “Fora Cunha”. Ao mesmo tempo, pode ser compreendida como um elemento de continuidade de uma movimentação anterior por integração das mulheres negras ao contexto feminista internacional, mas, sobretudo, como uma diferenciação desse processo a partir da denúncia de condições da vida das mulheres negras do sul global, região marcada pelo histórico de colonização e escravização negra, mas também por atuais e profundas desigualdades socioeconômicas que já naquele contexto se acirravam.
Diante deste complexo processo de organização política, não é exagerado pensar que a primeira edição da Marcha Nacional das Mulheres Negras inaugurou um novo momento, em que essas mulheres passam a cumprir tanto um papel de maior protagonismo no interior dos espaços gerais do movimento negro, pautar as atividades do mês de julho como calendário do conjunto dos movimentos sociais, mas principalmente por iniciar um processo que segue curso: a reivindicação pela ocupação de espaços de poder.
Os aparelhos da hegemonia burguesa, a exemplo da Rede Globo e de empresas com “responsabilidade social”, capturaram essa demanda e traduziram-nas a partir de uma determinada noção de representatividade. Mas esse é um processo que também tem suas consequências políticas pela esquerda, o mais significativo dos exemplos disso é a aposta em figuras de mulheres negras para casas legislativas, fazendo um “boom” de candidaturas feministas negras — no qual tem destaque especial o PSOL, com a eleição de vereadoras como Áurea Carolina, Taliria Petrone e a própria Marielle Franco.
De lá para cá se fortalecem os espaços permanentes de articulação política entre essas mulheres, em especial a partir de um enraizamento regional. Hoje passados dez anos nos preparamos para uma nova edição da Marcha das Mulheres Negras em Brasília, que deve ser um dos últimos atos expressivos da esquerda antes do ano eleitoral de 2026, podendo apontar caminhos ao conjunto dos movimentos sociais sob o mote unificador das lutas antirracistas: reparação e bem-viver.
Marchamos por vida, reparação e bem-viver
Em todo Brasil o movimento negro se organiza em diversas atividades ao longo deste mês. Reunindo parlamentares negros, lideranças de movimentos e unindo arte, cultura e política, foi isso que buscou expressar o Festival Antirracista de Cultura e Resistência em São Paulo no início do mês. É neste sentido que o movimento estará em marcha no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Buscando alinhar as pautas históricas de luta de nosso povo com os grandes temas da conjuntura. Disputando a maioria da sociedade e fortalecendo as lutas populares, como o fim da escala 6×1, terá um dia nacional de mobilização no próximo dia 23 organizado pelo movimento VAT.
Sabemos que a construção de um novo Brasil somente é possível com o avanço e modificações em temas estruturais e é nessa batalha que o movimento negro de nosso país deve se somar, para fazer do antirracismo um elo entre a esquerda e a maioria da população brasileira.
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