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Venezuela na mira do Império: o que fazer?


Publicado em: 8 de novembro de 2025

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Por Helena Cunha e José Carlos Miranda

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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“Um povo que sabe se organizar é um povo sábio e livre.”
Ska-p canção El Libertador

As recentes ameaças e medidas de Donald Trump colocando milhares de soldados e equipamentos militares no Caribe escalam o cerco econômico, político e midiático que sofre a Venezuela desde os anos 2 000. Mas foi no primeiro governo Trump, particularmente em 2019, que as medidas e sanções econômicas se intensificaram, incluindo o mirabolante plano de reconhecer um político medíocre, o deputado Juan Guaidó, como presidente e a tentativa frustrada em fevereiro de 2020 de um novo golpe através da Colômbia com apoio do então presidente Bolsonaro.

Desde o início do processo revolucionário na Venezuela, a propaganda da mídia corporativa, somada ao intenso cerco econômico, impõe uma blindagem sobre o que acontece no país. Esta situação se agrava na situação reacionária que vivemos, impondo uma tarefa árdua, porém necessária, de resgatar, em especial para as novas gerações da esquerda socialista, a importância e a inspiração que é o processo revolucionário vibrante na Venezuela. Para compreender melhor a situação, pensamos em fazer um breve relato cronológico de alguns dos principais eventos da luta de classes na Venezuela dos últimos 36 anos.

1989: El Caracazo

Em 25 de fevereiro de 1989, o presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez, que já havia sido presidente de 1974 a 1979 com forte crescimento econômico devido à economia petroleira, assina um decreto de liberalização da economia, após um acordo com o FMI. Esse decreto previa corte de gastos públicos, fim de subsídios nos produtos alimentícios, aumento dos combustíveis e outras medidas de austeridade. Em 27 de fevereiro, protestos contra o aumento dos preços das passagens de ônibus eclodiram em cidades da região metropolitana como La Guaíra, Catia La Mar e nas periferias de Caracas. Logo, os protestos se massificam por toda a cidade e região metropolitana e multidões marcharam na Capital.

Populares revoltados no Terminal de Ônibus de Guarena, durante o Caracaço. Via Opera Mundi.

Os protestos são brutalmente reprimidos pelas forças policiais e pelo exército e em apenas um dia são oficialmente contabilizados 396 mortos, milhares de feridos e presos.

El Caracazo (refere-se a um aumentativo do nome da capital Caracas) foi um evento determinante pela vigorosidade dos protestos e pela violenta repressão que marcou profundamente a consciência do povo venezuelano, e em especial de um grupo de oficiais do exército de média patente que não concordou com o exército reprimindo o próprio povo.

Entre esses oficiais estava o jovem Tenente Hugo Frias Chávez, que se recusou a estar na linha de frente da repressão.

1992: o golpe fracassado

A aplicação das medidas de ajuste estrutural ditadas pelo FMI pioraram a vida do povo e mergulharam o país em uma crise econômica e social profunda. Soma-se a isso um governo entulhado de acusações de corrupção. Por outro lado, Hugo Chávez funda o Movimento Revolucionário Bolivariano 200 e ganha adeptos no exército, planejando a deposição do governo pró FMI da AD (Aliança Democrática, partido da Internacional Social Democrata) de Andrés Perez.

Em 4 de fevereiro de 1992, o MRB-200 coloca em ação a tentativa de depor Andres Perez. Foram cerca de 12 horas de combate e tentativa de invasão do Palácio Miraflores com saldo de dezenas de mortos e feridos, a prisão dos líderes da rebelião e mais de mil soldados. Vale ressaltar que, apesar do fracasso, o movimento teve adesão popular em importantes cidades como Valência, Maracaybo e nos bairros populares de Caracas.

1998: Eleição de Hugo Chávez para Presidente

Nas eleições de 1993, foi eleito Rafael Caldeira. Pela primeira vez na Venezuela vence um candidato fora do bipartidarismo entre AD e COPEI, com um programa de centro esquerda que incluía em sua plataforma o indulto aos que participaram da tentativa de golpe em 1992. Hugo Chávez e todos presos pela tentativa de golpe foram libertos em 1994.

No início, Chávez era contra participar de eleições e houve uma ruptura no MRB 200. Após um período de intenso debate, Chávez inscreveu o Movimento V (Quinta) República no Conselho Nacional Eleitoral, que depois o indicou como candidato a presidente, após prévias no MVR para as eleições de 6 de dezembro de 1998 ,que Chávez ganhou com 56% dos votos. Vale ressaltar que na Venezuela o voto não é obrigatório.

1999: Chávez Presidente e a Assembleia Constituinte

Uma das principais bandeiras do MVR era a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte onde seria realizada uma reforma política para avançar em direitos e liberdades democráticas, reformas trabalhistas, reforma agrária e um projeto nacionalista, sempre baseado numa interpretação nacionalista e anti imperialista do herói nacional Símon Bolívar. Ainda no ano de 1999, foram realizados 2 referendos constitucionais que convocaram a Assembleia Constituinte para o ano seguinte.

O primeiro decreto de Chávez foi propor um referendo convocando uma Assembleia Constituinte que obteve 96% dos votos e uma proposta de forma de eleição aprovada por 85% dos votos. Ambos foram realizados em abril de 1999 e em julho foi a eleição dos 131 deputados e deputadas constituintes. O MVR e aliados conquistaram 121 das 131 cadeiras.

Sob intensa agitação e mobilização, o governo e os movimentos populares e as massas estão cada vez mais conectados.

É nesse processo que setores moderados e da burguesia iniciam rompimento com o governo Chávez. A Assembleia Constituinte se choca com as instituições do velho bipartidarismo, porém com as mobilizações e a firmeza do governo, em apenas 60 dias a nova Constituinte é apresentada e em 15 de dezembro de 1999 a nova Constituição é aprovada por 72% dos votos

Em julho de 2000, já sob a nova Constituição, ocorrem simultaneamente eleições legislativas e presidencial, o MVR conquista 92 das 165 cadeiras e Chávez e aliados são eleitos com 56% dos votos.

Com toda essa pungência, o governo Chávez inicia as reformas e planos colocados na nova Constituição com metas ousadas de erradicação da pobreza, direitos trabalhistas, mudanças radicais nos serviços públicos; é a chamada Revolução Bolivariana.

2002: Todo 11 tem seu 13

Após essas espetaculares vitórias a oposição inicia jornadas de protestos contra o governo, praticamente toda semana havia marchas de milhares de pessoas a favor de Chávez e da oposição. Era visível que as marchas pró Chávez eram constituídas majoritariamente pelo povo trabalhador dos bairros operários e dos morros do entorno de Caracas, enquanto os protestos da oposição eram constituídos majoritariamente por classes médias e logo foram apelidados de escuálidos. Essa polarização culminou em 7 de abril quando Chávez demitiu o presidente da PDVSA.

Esse foi o estopim para que uma amplíssima coalizão, de militares contrários a Chávez, partidos de oposição, sindicalistas pelegos da CTV (Central de Trabalhadores Venezuelanos), cúpula da igreja católica, tramaram e organizaram um golpe militar prendendo Chávez.

 

Em uma cerimônia, o presidente da Fedecámaras (Federação das Indústrias) Pedro Carmona (foto) é declarado Presidente interino.

Enquanto isso a notícia se espalha rapidamente e espontaneamente os barrios descem e se concentram em frente ao palácio Miraflores. Ao mesmo tempo, tropas leais a Chávez iniciam um contragolpe e espetacularmente a mobilização de massas e as tropas leais a Chávez retomam o palácio, prendem os golpistas e no dia 13 de abril após 47 horas Chávez é reempossado presidente.

2002-2003: o Paro petrolero

Após a tentativa de golpe de 2002, a pressão da oposição segue e, em conjunto com gerentes, a direção da PDVSA, sindicatos da CTV, Fedecámaras, igreja católica etc, organizam em dezembro de 2002 um lockout, em especial na PDVSA, para forçar Chávez a renunciar. Este é um momento crucial, o governo convoca operários para manualmente colocar os equipamentos da PDVSA em funcionamento. Esse processo mobilizou o melhor da vanguarda da classe operária e em fevereiro de 2003 o lockout foi encerrado.

O resultado foi que centenas de burgueses abandonaram as fábricas e comércios em debandada para os EUA e Europa. Ao mesmo tempo, a PDVSA voltava a produzir a principal fonte de riqueza, o petróleo. Esses acontecimentos abriram uma situação de intensa organização nas fábricas, levando o governo a convocar os operários a ocuparem as fábricas e produzir.

A nova situação conectou umbilicalmente a vanguarda do proletariado com a liderança da chamada Revolução Bolivariana. Nos principais centros urbanos, essa vanguarda iniciou um processo de auto-organização para sustentar a derrota do lockout, em especial na PDVSA, mas também em centenas de fábricas. Foi um salto de qualidade no processo.

Assim, os episódios de 2002 levaram Chávez a radicalizar o sentido da Revolução Bolivariana. O governante passou então a ter uma participação mais ativa nas mídias e aprofundou os processos de participação popular. Em 2005, durante sua participação no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Chávez reivindica o socialismo e, tempos depois, passa a defender a Revolução Permanente de Trotsky.

Nesse período, a Revolução Bolivariana tomou medidas que impulsionaram a auto- organização, fábricas ocupadas são estatizadas sob controle operário, bancos e grandes empresas são estatizadas, como a Siderúrgica SIDOR e o banco espanhol Santander, e inicia-se a construção das Comunas. Ao mesmo tempo, a indústria petrolífera foi subordinada ao Estado e as forças armadas foram reestruturadas para integrar as milícias populares. Na arena internacional, Chávez passou a defender ativamente a integração da América Latina, a partir da criação de instituições como ALBA, UNASUR e CELAC.

De Chávez a Maduro: aumento do cerco imperialista

No dia 5 de março de 2013, Hugo Chávez morreu aos 56 anos, vítima de câncer. Seu sucessor, Nicolás Maduro, passa a enfrentar o aumento do cerco político e econômico contra a Venezuela. Assim, logo que assume, Maduro tem o desafio de confrontar uma inflação ascendente, problemas de abastecimento e disparidade nos preços do dólar entre o mercado oficial e o paralelo.

Em 2015, a Venezuela sofreu as primeiras sanções econômicas dos Estados Unidos, que, por sua vez, ainda estavam sob administração de Barack Obama. A situação é agravada em 2017, durante o primeiro mandato de Donald Trump nos Estados Unidos, que assinou quatro decretos que interferiam diretamente nas transações econômicas, dentre os quais se destaca o bloqueio dos ativos da CITGO, empresa de propriedade da PDVSA. Com o nítido objetivo de impedir as transações financeiras da Venezuela como Estado soberano, as sanções fizeram o país caribenho ter perdas estimadas em US$226 bilhões entre janeiro de 2017 e dezembro de 2024 – o equivalente a 231% do seu PIB em receitas petrolíferas.

Assim, o destino da Venezuela se cruzou com o de países como Haiti e Cuba, castigados pelo imperialismo por ousarem se tornar independentes. Obviamente não se pode comparar o tamanho do estrago provocado pelas sanções no Haiti com as medidas econômicas aplicadas sobre a Venezuela, que conseguiu manter minimamente seu Estado funcionando graças ao que ainda restava da receita do petróleo. Mas os danos provocados pelas sanções estadunidenses não são desprezíveis: segundo dados do Banco Central da Venezuela, em 2019 a taxa de inflação interanual foi de 344.510%, o que representou um enorme fardo para a população venezuelana.

A hiperinflação se soma à escassez induzida, provocada pelos grandes fornecedores de alimentos, que retêm os alimentos com preços regulados; às limitações de obtenção de dólares comerciais, que impedem a importação de alimentos, medicamentos e outros itens básicos para a população; e ao bloqueio financeiro, que impede a transferência de títulos do governo nos mercados financeiros e a própria PDVSA de obter financiamento em dólares. Os resultados já são conhecidos: a Venezuela passou, entre 2017 e 2022, pela maior crise humanitária da sua história, que, agravada pelo contexto da pandemia, provocou o êxodo de mais de 7 milhões de pessoas, posicionando a Venezuela entre os países com maior número de refugiados do mundo.

Desde 2022, a economia venezuelana vem demonstrando gradativos sinais de recuperação, apesar do bloqueio. No entanto, diante da crise de hegemonia dos Estados Unidos e da tentativa de fazer da América Latina seu “quintal”, o governo de Donald Trump em seu segundo mandato tem demonstrado sinais de que pretende dobrar a aposta para desestabilizar o governo venezuelano e recuperar sua influência sobre o país e seus recursos naturais.

Sob a alegação – diga-se de passagem, completamente infundada – de que Nicolas Maduro pertence a liderança de um suposto Cartel de los Soles, Trump iniciou em setembro deste ano uma ofensiva militar sob o Mar do Caribe, responsável pela morte de mais de 20 pescadores. Acusação semelhante foi feita ao presidente da Colômbia, Gustavo Petro. No último mês, a inteligência venezuelana desmantelou três operações da CIA, que atua em território venezuelano com o objetivo de desestabilizar o governo Maduro.

Deste modo, se no século XX a intervenção imperialista sob a América Latina se deu sob a justificativa da “ameaça comunista”, produzindo golpes militares no continente que colocaram governantes submissos aos interesses do capital estadunidense, a palavra da ordem agora é o “combate ao narcotráfico”: é o mesmo discurso que há décadas promove a direita e agora a extrema-direita latino-americana a partir de uma retórica populista penal, que através do medo promove o encarceramento da juventude pobre latino-americana, como temos visto em El Salvador e no Equador, e é capaz de produzir rios de sangue com o assassinato em massa de jovens negros moradores de favelas, como vimos no recente e triste episodio do Rio de Janeiro. É sob essa justificativa que a extrema-direita se fortalece e o imperialismo procura se estabelecer no nosso continente, buscando forjar provas e contextos que justifiquem uma intervenção estrangeira.

Se a retórica do combate ao crime organizado não é utilizada única e exclusivamente contra a Venezuela, é lá onde ela se manifesta de forma mais agressiva e onde o governo Trump tem dado os sinais mais evidentes de buscar um conflito armado para buscar recuperar sua hegemonia na região. Portanto, a tarefa de qualquer militante revolucionário neste momento, independentemente das possíveis críticas que se possa ter ao governo Maduro, é exercer a prática internacionalista de solidariedade ao nosso país vizinho, porque uma intervenção militar na Venezuela significa uma ameaça a toda América Latina, à autonomia e à autodeterminação na região e uma vitória para a extrema-direita latino-americana e mundial.

Claro que há tantos detalhes e figuras políticas nesse primeiro período da luta de classes na Venezuela que seria necessário muito mais que esse brevíssimo relato. O maior fruto dessa incrível jornada é a formação de uma geração e podemos dizer de uma segunda geração do povo venezuelano que alcançou um nível muito alto de consciência política, uma vanguarda que deu muitas vitórias a Revolução Bolivariana e, digamos, da onda vermelha do final do século passado até hoje, foi o único regime independente do imperialismo que sobreviveu. E isso só foi possível pelo nível de organização e consciência que a luta forjou essas gerações guerreiras do proletariado venezuelano. E derrotar essa resistência é desejo do imperialismo tanto quanto a rapina do petróleo e das riquezas dos venezuelanos.

A heróica resistência do povo venezuelano contra os inúmeros ataques, tentativas de golpes e o cerco econômico só foi possível pela organização e o alto nível de consciência antiimperialista e de classe conquistado por mais de uma geração. A agressão ou uma guerra civil na Venezuela terá consequências catastróficas para toda América Latina.
Nossa mão não deve tremer!

Para além de notas de solidariedade, é fundamental que todas as forças democráticas e populares, a começar pelo nosso partido, o PSOL, se engaje em práticas concretas, participando e divulgando o manifesto em Defesa da Soberania e de Solidariedade organizado pelo Comitê Brasileiro pela Paz na Venezuela. Somar-se às brigadas internacionalistas se solidariedade promovidas pelo governo venezuelano é uma excelente iniciativa. Os tempos urgem unidade e responsabilidade com o futuro da América Latina.

Helena Cunha é doutoranda em Ciência Política (DCP/USP) e militante da Insurgência;
José Carlos Miranda é colunista do portal Esquerda Online e membro da coordenação nacional da Resistência-PSOL


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