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Chacinas policiais socialmente normalizadas como forma de administrar politicamente uma população descartável para o capitalismo em crise estrutural
Publicado em: 4 de novembro de 2025
Chacinas policiais socialmente normalizadas como forma de administrar politicamente uma população descartável para o capitalismo em crise estrutural
Num ato de terrorismo de Estado, o governador extremista de direita do Rio de Janeiro reposicionou, dia 28 de outubro de 2025, no Complexo da Penha e do Alemão, a normalização de chacinas policiais num outro patamar, superando a do Carandiru em São Paulo e articulando-a diretamente com o projeto político golpista do fascismo brasileiro.
Funcionalmente, o terror estatal manipula violentamente o medo da violência em comunidades acuadas pela sistemática violação da sua dignidade humana, tanto pelo Estado quanto pelas facções que ocupam o espaço deixado por este através de um capitalismo que, barbaramente à margem da lei, não deixa de se entrelaçar estadual e nacionalmente, e mesmo internacionalmente, com parte do poder político e empresarial dentro da lei.
A extrema-direita mostra claramente, desde o golpe de estado de 2016 até a redemocratização de 2022, bem como na atuação recente de seus governadores, que administra, sobretudo pelo terror, as consequências sociais violentas da desestruturação neoliberal sistematicamente destruidora de direitos da classe trabalhadora para fins do aumento da taxa de lucro diante da crise estrutural do capitalismo atual.
Por detrás desta chacina policial, que extrapola tantas outras que se acumulam rotineiramente, houve claras finalidades de manipulação eleitoreira visando alavancar a capenga candidatura de Castro para o Senado; mas, sobretudo, de alavancar o projeto golpista de uma extrema-direita nacional em crise, porém internacionalmente em ascensão.
Trump estendeu rapidamente mundo afora sua ideologia fascista de inimigos internos terroristas, imigrantes e seus defensores, para inimigos externos. Na América do Sul, Trump ressignificou cartéis criminosos de droga como narcoterroristas, aproveitando-se de uma legislação estadunidense antiterrorista pós-Torres Gêmeas intencionalmente abrangente para justificar, assim, intervenções neocoloniais na soberania alheia, mas também em seu próprio território, buscando transformar todo adversário político em inimigo terrorista como melhor forma de esconder um terrorismo de Estado em curso. Derrubar já nos próximos meses, seja por intervenção direta ou indireta, o governo venezuelano sob o argumento de combate a um suposto narcoterrorismo é um projeto neocolonial (que visa inclusive o petróleo venezuelano) abertamente posto. Estender esta desestabilização para as eleições colombianas de maio de 2026 através do mesmo mote é um processo em curso, e nas eleições brasileiras do ano que vem, também.
Depois do fracasso golpista via retaliações econômicas de Trump ao Brasil, da inviabilização política da Anistia aos golpistas condenados e do cenário hoje amplamente favorável à reeleição de Lula, a extrema-direita internacional e nacional preparam através de uma chacina o terreno para qualificar o Brasil como um narcoestado (Eduardo Bolsonaro) a ser bombardeado (Flavio Bolsonaro) ou sofrer alguma intervenção estadunidense, hoje provavelmente indireta, no sentido de desestabilizar nossa soberania. Hoje, os parlamentares de extrema-direita, com potencial apoio da direita, buscam incorporar legalmente o conceito estadunidense neocolonial de narcoterrorismo, inclusive com o governador Tarcísio, de São Paulo, planejando o retorno de Derrite, seu Secretário de Segurança, ao parlamento apenas para pautar esta lei. Aliás, o próprio governo Castro, que planejou esta operação há pelo menos sessenta dias, entregou a cerca de seis meses atrás um relatório, mesmo sem amparo na legislação brasileira, qualificando as facções do tráfico no Rio como narcoterroristas, não para o governo brasileiro, como era institucionalmente de se esperar, e sim, ao governo estadunidense, para o qual a extrema-direita brasileira parece insistir em bater continência.
Há uma clara continuação do golpismo através da busca manipulada por se criar um estado de exceção de fato, como já esboçado pela fala de Castro no sentido de que esta chacina é só o começo, mas também no anúncio de que governadores de extrema-direita criarão um cínico “Consórcio da Paz”, pelo qual se pretende, evidentemente, legitimar e preparar novas chacinas policiais em favelas, talvez mesmo em outros estados, num claro projeto político de colocar forças armadas nas ruas para intimidar e normalizar o medo, ameaçando-se ainda mais, assim, o já atacado e limitado estado democrático de direito através de um crescente estado de guerra difusamente espalhado na sociedade.
Não é novidade a normalização social patológica da barbárie gerada pelo capitalismo, o qual banaliza a execução sumária e tortura de pobres rotulados previamente de criminosos simplesmente pelo fato de terem sido mortos por policiais que, para um certo senso comum mistificador, só por vestirem uma farda já estariam paradoxalmente livres da barbárie, mesmo, aliás, sobretudo, nos seus atos de maior barbárie.
Em relação ao Complexo da Penha e do Alemão, a manipulação ideológica da raiva e do medo busca silenciar a discussão do porquê o cerco na mata, além daqueles que foram mortos em suas próprias casas, não ter gerado aprisionamentos, e muitos dos corpos lá terem sido largados com mãos amarradas, tiros na nuca, facadas na perna, braço decepado e cabeça degolada, dentre tantos indícios de crimes brutais normalizados pela entonação claramente desumanizadora de que seriam apenas criminosos e terroristas, e não, entenda-se bem, e fascistamente, seres humanos… A barbárie normalizada socialmente abre espaço para genocídios nas favelas cariocas, em aldeias indígenas, e na Palestina devastada.
Esta manipulação recorrente da sensação de impotência diante da violência exponencializa esta como forma de poder.
A chacina policial do Rio executou brutalmente inocentes e criminosos que, estes últimos, poderiam e deveriam ser presos, enquanto, complementarmente contínua de modo intencional a não combater a estrutura social e econômica que alimenta o tráfico organizado, perenizando, assim, um processo social que só faz aumentar o problema como um todo.
Para além de matar negros pobres periféricos numa sociedade capitalista que em crise estrutural vai empurrando-os violentamente para a margem dos direitos que lhe são negados, em nome do enriquecimento de alguns, há apenas dois caminhos políticos entrelaçados para a efetiva resolução do ciclo de violência estrutural que vivemos.
Primeiro, garantir ampla e efetivamente estes direitos sociais através de um Estado socialmente referenciado que seja crescentemente organizado politicamente pela e para a classe trabalhadora, antes, durante e após todo e qualquer processo eleitoral; e, por isso, organizado em sentido contrário à dominação hoje amplamente imposta pelo Capital, o qual no neoliberalismo cada vez mais enriquece através do desmonte sistemático de tudo que é público, mesmo quando há algum grau de contratendência, como no caso brasileiro atual.
Este movimento terrorista de um Capital que, considerando-se acima da lei, movimenta-se o tempo todo entre ela e mafiosamente para fora dela, cria um crescente conluio sistêmico sobretudo com políticos de direita e extrema-direita que sustentam este movimento capitalista; limitando-se, assim, seu combate efetivo, principalmente no desdobramento fascista de um estado neoliberal. No histórico de exploração capitalista da população carioca pelo crime organizado, veja-se os profundos vínculos do bolsonarismo com as milícias que concorrem com o tráfico organizado, intocadas pelo atual governo carioca; bem como as operações policiais recorrentes que, atacando pontualmente apenas a mão de obra barata arregimentada pelo tráfico, acaba apenas por fortalecer outra facção sem efetivamente enfrentar o problema estrutural.
Independente de qual lado da linha o Capital opere, muitas vezes nos dois, há aqui o mesmo arregimentar de trabalhadores extremamente precarizados que são recorrentemente descartados de forma desumana tanto pelo Capital quanto pelo Estado, o qual, a serviço daquele, os chacina como mera força de trabalho facilmente reposta diante da desestruturação social em curso; o que vai, barbaramente, fascistizando a falta de saída pela direita que nos empurra ou para os limites ditatoriais da extrema-direita ou para a saída que redesenhe uma democracia socialista ampla, inclusiva e emancipatória pela esquerda.
Justamente por isso, em segundo lugar, devemos estender esta luta política, consequentemente, para o enfrentamento dos vínculos profundos que existem entre o Capital que opera no limite da lei nas Faria Limas, Brasil afora, e o Capital que opera fora da lei também nestes mesmos endereços.
Não é surpresa que Castro vá a Justiça para tentar reabrir a privatizada Refinaria de Manguinhos fechada recentemente após ação da Polícia Federal por ser acusada de ligações com o PCC, escancarando, assim, conexões que precisam ser rompidas política e judicialmente entre a política e o grande Capital que se equilibra entre o legal e o ilegal. Novidade no sentido da efetiva resolução do problema das grandes facções criminosas organizadas nacionalmente é a “Operação Carbono” da Polícia Federal, desmontando recentemente através de uma articulação nacional parte da estrutura econômica do PCC em São Paulo. Sem a rotina de operações coordenadas nacionalmente como esta não há enfrentamento real, devendo-se estendê-la imediatamente nos mesmos termos ao Rio, como, aliás, já aponta o próprio governo federal; mas também, urgentemente, para outros Estados igualmente acuados por facções. Sem deixar de compreender, no entanto, que mais do que um poder paralelo diante da ausência de políticas públicas efetivas por parte de sucessivos governos estaduais no Rio, e em outros Estados, há propriamente aqui a presença destes através de uma política pública perversa, dissimulada ou abertamente terrorista, que é a de um nebuloso consentimento terceirizado e articulado, inclusive com o Capital legal, para administrar violentamente, assim, a precarização extrema de negros pobres periferizados no racismo estrutural pelo qual opera o capitalismo.
Da mesma forma, novidade efetiva seria um pacto federativo lastreado em lei para o óbvio combate nacional ao crime organizado nacionalmente, como aponta corretamente a PEC da Segurança Pública proposta pelo governo federal e parada no Congresso por conta da sabotagem de governadores de extrema-direita, os quais cinicamente agora propõem um “Consórcio da Paz” sem o governo federal e sem as necessárias mudanças legais para uma ação conjunta efetiva que desmonte as estruturas do crime organizado. Estes sabotam o combate estrutural ao crime organizado para manter seus conchavos políticos e empresariais, dentro e fora da lei, inviabilizando não só a insubstituível coordenação institucional aqui do governo federal. Além dele, que sequer foi comunicado da execução da Operação no Complexo da Penha e do Alemão, também se excluiu o Ministério Público e a Defensoria Pública, e o alto comando dos bombeiros e da polícia municipal, entre outros, apostando, assim, numa chacina performática justamente para que o caos tomasse conta da cidade do Rio de Janeiro como forma abjeta de obter apoio através da política do medo.
Caos performático intencionalmente ineficaz que vende como sucesso não propriamente o combate ao crime organizado, o que apenas aparenta fazer, e sim a catarse bárbara que esconde ideologicamente as causas da precarização generalizada em toda sociedade, estimulando a desumanização da população negra periférica extremamente precarizada. Não é por acaso que das primeiras 99 vítimas identificadas na chacina, de antemão desumanizadas pelo governador, nenhuma estava na lista que justificou a autorização desta operação político policial performática que permite à direita manter o foco capitalista clássico de criminalização de negros pobres empurrados para a zona cinzenta de atuação do Capital. O qual, operante entre o legal e o ilegal, criminalizou historicamente os usuários de substâncias psicoativas, contrariamente a toda discussão antimanicomial e antiproibicionista em relação a qual se avançou na Reforma Psiquiátrica Brasileira, e criou, assim, toda uma estrutura rentável ao redor destes para melhor acumular e administrar a exclusão social de mão de obra extremamente precária tratada aqui como descartável através de chacinas e da política do encarceramento em massa.
Aliás, com o avanço da extrema-direita, Trump escancara hoje a manutenção autoritária do poder por uma espiral de violência ao deportar ilegalmente imigrantes não salvadorenhos para cumprirem penas em El Salvador por crimes não julgados, dando uma volta a mais, assim, sobre os abusos perpetrados em Guantánamo. No mesmo sentido, a extrema-direita brasileira agora defende abertamente como modelo de combate à violência, aliás, como outras na América do Sul, um nível de aprisionamento em massa equivalente ao que Bukele executa hoje em El Salvador como o maior do mundo em termos proporcionais, incluso aí, evidentemente, todo rol de arbitrariedades ditatoriais, como ficar preso, por exemplo, até sete anos sem julgamento.
É necessário investigar as evidências que apontam para uma chacina planejada e com viés de manipulação política, responsabilizando legalmente todos os responsáveis, incluindo nesse rol a cassação e prisão do atual governador, o qual, aliás, infringiu criminalmente a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, das Favelas, através da qual o STF determinou no primeiro semestre um controle efetivo da letalidade policial em favelas do Rio e ações alternativas de resgate destes territórios pelo poder público, dado justamente o histórico recorrente de chacinas e abusos outros por parte de sucessivos governos cariocas.
No uso político golpista da violência, a extrema-direita combate a violência de organizações criminosas através de uma espiral de violência crescente que foca no extermínio da população periférica, em sua maioria negra, enquanto preserva os lucros crescentes do Capital operando por fora da lei, e desmonta o estado democrático de direito para melhor controle político dos extremamente precarizados. É necessário sim endurecer o combate às facções criminosas e asfixiá-las como aponta o Projeto de Lei Antifacções apresentado recentemente pelo governo federal, mas é fundamental inverter essa lógica capitalista perversa que só leva a mais chacinas, fazendo, ao contrário, o combate estrutural coordenado nacionalmente, como propõe a PEC da Segurança Pública, para asfixiar, assim, as finanças do crime organizado e prender seus líderes que estão mais perto das Farias Limas do que das favelas, como aliás, aponta corretamente a “Operação Carbono”.
Mas o asfixiamento da estrutura econômica de organizações criminosas não é completo sem a libertação da classe trabalhadora precarizada pela violência do Capital, criando estruturas cooperativas alternativas e garantindo direitos num patamar efetivo. Precisamos avançar na destruição das estruturas criminosas que aliciam e destroem a vida sobretudo do trabalhador periférico e não na destruição da vida destes. Da perspectiva da luta classista dos trabalhadores, o combate à violência estrutural precisa reverter o terrorismo do Capital, legal e/ou ilegal, contra os direitos destes através de ataques crescentemente aprofundados na fase neoliberal de um capitalismo estruturalmente excludente e violento.
Neste sentido, precisamos aprofundar a luta pela reconstrução das estruturas sociais aceleradamente destruídas criminosamente no período golpista recente como parte de uma onda neoliberal maior que descarta este trabalhador.
Avançar em muitas das lutas já postas para hoje, como o fim da escala 6×1 com redução da jornada de trabalho para 36h, a taxação de Bancos, Bets e Bilionários, e a implementação do amplo direito social em todas as frentes, como na mobilidade urbana através da implementação da Tarifa Zero. Enquanto preparamos o aprofundamento destas lutas e outras tantas para efetivarmos uma Revogação da Reforma Trabalhista golpista, o fim do dreno neoliberal de mais da metade dos recursos públicos para o mercado financeiro através da armadilha de uma dívida pública nunca auditada, e a efetiva universalização de todos os direitos sociais através de um governo da classe trabalhadora que avance no enfrentamento a todos os ataques do Capital em suas várias formas de desumanização com firme decisão e através de uma força política classista em permanente mobilização.
Fazendo o enfrentamento estrutural, a classe trabalhadora organizada politicamente pode reverter o avanço da violência aterrorizadora de toda a população como método de dominação política no capitalismo, mas também enfrentar a extrema-direita golpista justamente para que não avance esta espiral de violência.
A população do Complexo da Penha e do Alemão se recusaram a aceitar o terrorismo de Estado promovido pela extrema-direita, enfrentaram com coragem as intimidações de quem assassina em massa sem pudor, enfrentaram a própria dor do luto à quente para recolher os corpos mutilados e torturados de seus entes queridos intencionalmente abandonados pela polícia na mata, na cena do seus crimes, para criar, assim, suas próprias imagens de luta em praça pública, lugar aonde se faz a verdadeira luta política.
Honremos essa imagem potente de dor e de luta que ousou dividir a opinião pública, diariamente manipulada, defendendo pela luta classista unificada direitos degradados em bárbaros espetáculos de chacinas nas periferias, que continuam, por outros meios, produzindo a descartabilidade do humano reduzido a mera mão de obra precária no sanguinário sistema capitalista. Apenas superaremos o ciclo espiral de violência capitalista fazendo a luta na perspectiva da construção pela esquerda de uma sociedade emancipatória socialista.
Por Márcio Alves de Oliveira é professor do Instituto Federal de São Paulo
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