Adeus a Lô Borges
Publicado em: 3 de novembro de 2025
Foto: Bárbara Dutra/Divulgação
Faleceu na noite deste domingo (2/11), aos 73 anos, o cantor e compositor mineiro Lô Borges.
Internado desde o dia 17 de outubro, em Belo Horizonte, em decorrência de uma intoxicação medicamentosa, Borges ainda passou por uma traqueostomia, no dia 25 de outubro.
No claro do dia, o novo encontrarei
Salomão Borges Filho, ou Lô Borges, foi o mais jovem músico e compositor a fazer parte da talentosa geração de artistas que reuniu-se em torno do disco Clube da Esquina, lançado no primeiro trimestre de 1972 pela EMI-Odeon Records, um dos discos de música brasileira mais aclamados em todo o mundo.

No Clube 1, Lô é apresentado como um dos principais protagonistas, já na icônica capa de Cafi, que traz grafado seu nome junto ao de Milton Nascimento. Apesar de muito jovem (19 anos), Lô participa de quase todo o processo de elaboração do disco, seja solando, cantando e/ou compondo. Tudo Que Você Podia Ser, a música que abre o disco com acordes maravilhosos de viola sertaneja tocados por Borges, é uma de suas composições no disco em questão, bem como a belíssima Um Girassol da Cor do Seu Cabelos e ainda Trem de doido, Nuvem Cigana, O Trem Azul e Clube da Esquina nº 2. Muitas delas em coautoria com outros compositores, como seu irmão Márcio Borges, além de Fernando Brant e Ronaldo Bastos.
A vida se cansa na esquina
Contudo, a parceria entre Lô e Milton remonta a um disco lançado dois anos antes, o Milton, de 1970.
Tudo começou quando Milton e Lô moravam no edifício Levy, em Belo Horizonte, mas ainda não se conheciam. Ao descer pelas escadas os 17 andares do edifício, numa tarde qualquer, para comprar pão e leite, Lô (que nessa época tinha não mais que 10 anos) foi ouvindo de forma progressiva uma voz, acompanhada de um dedilhado no violão. Lô conta que ficou hipnotizado na medida em que descia as escadas e se aproximava daquela voz. Era ninguém menos que Milton Nascimento: “Costumo dizer que primeiro conheci a voz do Milton”. Naquela mesma tarde, nas escadas do 4° andar do edifício Levy, Lô acabou esquecendo-se das compras que tinha que fazer: “Foi um encontro para sempre. Eu era uma criança e ele era um adulto. Olhei praquele cara e falei: esse cara é meu amigo pro resto da vida. E acho que ele teve a mesma sensação em relação a mim”.
Lá para os 13 ou 14 anos, Lô ganhou um violão, presente de Milton. Ao lado de Beto Guedes, Lô formou o The Beavers (Os castores), para tocar covers de The Beatles e teve aulas de harmonia com ninguém menos que Toninho Horta, atualmente um dos maiores guitarristas do mundo e amigo de Lô.

Alguns anos depois, Lô conta que estava em um bar com Milton, que pediu uma caipirinha e comprou um refrigerante para o já adolescente, Lô. Este, questiona o tratamento dispensado a ele por Milton e exige também uma caipirinha. “Sou seu fã, mas tenho impressão que vocês não gostam muito de mim”, no que Milton responde, “Mas nós adoramos você”. Nessa época Milton já era assíduo frequentador da casa da família Borges, tendo criando vínculos com os irmãos de Lô: Márcio, Marilton, Telo, Nico e Yé Borges.
É daí que surge a ideia da participação de Lô no quarto disco de Milton (capa acima), com as músicas Clube da Esquina, Para Lennon e McCartney e Alunar, todas compostas no piano da família Borges.
Pé na estrada, pó, poeira

Tendo credenciado seu nome junto ao mercado fonográfico da época, no embalo do sucesso de Milton e sobretudo Clube 1, Lô viu cair no seu colo uma proposta de contrato da Odeon, que ansiava carimbar seu selo no disco de estréia solo do artista mineiro. Lô, que tinha não mais que uns 20 anos, topou a proposta, mas teve que cumprir a draconiana exigência da gravadora, que consistia em um prazo rigorosamente curto: Lô fazia as músicas pela manhã, Márcio compunha pela tarde e à noite eles faziam os arranjos e gravavam.

Lô não tinha mais nenhuma composição na gaveta. Todas haviam sido usadas em Clube 1. Mas, sob altas doses de LSD e de maconha, e na companhia de seus parceiros de Clube, ou seja, Nelson Ângelo, Toninho Horta, Flávio Venturini, Márcio Borges e especialmente Beto Guedes, surgiram as 15 faixas que fariam o disco Lô Borges, de 72 e que entrou para a história da música com o nome de “Disco do Tênis”. Um trabalho cheio de influências interessantes que perpassam por The Beatles, Jimi Hendrix, Emerson, Lake & Palmer, Novos Baianos, Tropicália, além de toda a onda flower power, que permeava o imaginário da juventude nos anos 70 mas, principalmente, a repressão militar que grassava pelo país: “‘Sonho no chão; E um dia uma estrada; Um estranho silêncio na rua’. Era um estranho silêncio na rua mesmo, porque na rua não podia acontecer nada. Na rua, era tanque do Exército, polícia o tempo todo. (…) E eram os anos mais duros, os anos [do ex-ditador Emílio Garrastazu] Médici [1969-1974], então era muita repressão.”, explicou Lô.
Músicas como Você fica melhor assim, Canção postal, O caçador, Pensa você, Faça seu jogo, Não se apague esta noite e Como um machado retratam bem o espírito do disco. Aliás, algum tempo depois o Disco do tênis acabou virando uma referência para ninguém menos que Alex Turner, vocalista dos Arctic Monkeys, para a gravação de Tranquility Base Hotel & Casino.
Ao fim e ao cabo, o ritmo de gravação foi tão alucinante que, não por acaso, tempos depois Lô comentou para alguns jornalistas: “[o tênis] foi um recado meu para a gravadora. Olha, eu não vou botar minha cara na capa do disco. Eu vou botar meu tênis na capa do disco, porque simboliza que eu vou pegar a estrada, coisa que eu fiz. (…) O pessoal da gravadora deve ter achado assim: ‘pô, contratamos o cara mais louco do mundo. O cara fez o Clube da Esquina, fez um disco novo, mas não botou a cara dele no disco. Ele [literalmente] botou um tênis e desapareceu do Show Biz’.”

De carona em carona, Lô passou por Porto Alegre-RS, Rio de Janeiro-RJ, Arembepe-BA, em uma trilha hippie e de puro desbunde libertário e lisérgico, durante alguns anos. Mas, no fim da década, voltou aos estúdios a tempo de participar de algumas faixas de Clube da Esquina 2 (de 1978)[1] e, no ano seguinte, lançar A Via-Láctea, o terceiro disco de estúdio de uma prolífica carreira que seguiu pelos anos seguintes com mais outros 14 discos: Os Borges (1980) Nuvem Cigana (1981), Sonho Real (1984), além de 5 discos ao vivo, algumas coletâneas e dezenas de composições, 40 delas só durante a pandemia. Lô também foi regravado por Tom Jobim (em Blue Train), Elis Regina, Ira!, Elba Ramalho além de seu parceiro de sempre, Milton Nascimento, e ainda chegou a apresentar-se com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, em 2022, em homenagem aos seus 50 anos de carreira, rendendo um disco e um DVD no ano seguinte.
Se eu morrer, não chore não, é só a lua

Lô ainda assinou outros sucessos posteriores, como Dois rios, 6° faixa do disco Cosmotron (2003), do Skank (em parceria como Samuel Rosa e Nando Reis), e ainda Quem sabe isso quer dizer amor, parceria com Márcio Borges, gravada por Milton em Pietá, de 2002, prova da criatividade e sensibilidade profunda desse grande artista.
Em 2024 Lô nos deixou seu último trabalho solo, Tobogã, cuja faixa título teve participação da Fernanda Takai, do Pato fu, e, neste ano um disco em parceria com o músico maranhense, Zeca Baleiro, Céu de giz.
Como ele mesmo escreveu, em Um Girassol da Cor de Seu Cabelo “se eu morrer não chore, não” e em Bom sinal “Se eu sumir do mundo, levem meu recado”. Assim, diante do desaparecimento de Lô, a melhor homenagem que nós podemos prestar é celebrar seu trabalho com amor e alegria.
Notas
[1] A bem da verdade, um disco ainda mais profundo, complexo e muito mais maduro que o Clube 1. Contudo, talvez pela originalidade e toda a mística em torno do disco de 72, o Clube 2 de 78 não seja tão reconhecido, comentado e nem tão procurado por colecionadores de disco. Nele, Lô participa em Ruas da Cidade, O Que Foi Feito Deverá (junto com Gonzaguinha e Elis Regina), Pão e água e Tanto (composição maravilhosa de Ronaldo Bastos e Beto Guedes).
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