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Uma organização sem juventude é uma organização sem futuro
Publicado em: 1 de novembro de 2025
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Henrique Canary
Henrique Canary
Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.
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Henrique Canary
Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.
Universidade francesa durante o Maio de 1968
“A juventude da geração revolucionária coincidia com a do movimento operário. Era o momento das pessoas de 18 a 30 anos. Os revolucionários de maior idade eram contados nos dedos e pareciam anciãos. O movimento desconhecia completamente o prestigismo e se nutria de sua fé no futuro e do espírito de sacrifício. Não existia rotina alguma, nem formas convencionais, nem gestos teatrais, nem procedimentos retóricos. O diletantismo que começava a surgir era tímido e raro. Inclusive palavras como ‘comitê’ e ‘partido’ ainda eram novas, conservando seu mistério e tendo, para os jovens, uma ressonância atraente e inquietante. Quem ingressava na organização sabia que a prisão e a deportação o esperavam dentro de alguns meses. A honra do militante se media em resistir o maior tempo possível sem ser detido, em se comportar dignamente frente à polícia, em substituir, quando necessário, seus camaradas presos, em ler o maior número de livros quando na prisão, em escapar o quanto antes da deportação para o exterior e acumular conhecimentos, a fim de voltar e recomeçar o trabalho revolucionário. Os revolucionários acreditavam naquilo que pregavam, e nada mais poderia tê-los convencido a enfrentar essa via sacra”.
Leon Trótski
“O comunismo é a juventude do mundo”.
Vladimir Maiakóvski
A questão geracional é uma das mais complexas na teoria da organização política. Uma corrente que invalida o saber das antigas gerações de militantes anula com isso não apenas a sua memória, mas a sua capacidade presente de atuação e luta. Construir direções leva tempo. Por isso, as gerações mais velhas são o alicerce de qualquer agrupamento. Elas carregam a experiência política, a tradição ética e organizativa, o programa histórico. Seu papel, portanto, não é o de sábios e passivos conselheiros, e sim o de membros ativos. Mas o alicerce não é ainda o prédio. É a juventude que deve constituir as paredes, as aberturas e o acabamento fino do edifício. Um coletivo que não promove a renovação geracional de seus quadros dirigentes está condenado à crise e à estagnação. Não foram poucas as rupturas recentes no campo da esquerda radical que tiveram como mote alguma forma de conflito geracional. A acomodação das distintas gerações na estrutura da agremiação é um tipo de arte tão delicada quanto imprescindível para a saúde interna de uma corrente.
Mas as coisas mudam um pouco de figura quando se fala da composição geral do grupo. Uma organização que pretenda cumprir algum papel na história precisa ser uma organização, em média, jovem. O envelhecimento generalizado de uma corrente, a permanência de uma mesma equipe de direção por longos anos à frente do aparato partidário, o apagamento do papel da juventude na estrutura do coletivo, uma fraca atuação no movimento estudantil e de juventude são sintomas que devem preocupar.
Não se trata de um desejo interno, mas de uma necessidade da luta. Dificilmente podemos encontrar algum movimento histórico importante que não tenha tido a juventude como protagonista: desde a Revolução Russa até os atuais protestos da Geração Z (ainda não estudados pela esquerda), passando pela Revolução Cubana, pela Revolução dos Cravos, pelo Maio de 68, pela resistência contra a ditadura no Brasil, pelos protestos dos últimos anos na América Latina e no mundo, por Junho de 2013, pelas lutas de solidariedade em defesa do povo palestino e muitos outros.
No mundo atual, em que se aprofunda o abismo geracional devido ao acelerado avanço da tecnologia e à precarização e plataformização da vida, essa questão assume dimensões dramáticas. Uma organização que não consiga atrair a juventude (não apenas estudantil, mas também periférica, dos movimentos culturais, da classe trabalhadora, das classes médias intelectualizadas) simplesmente não tem futuro. O vício do “presentismo” é tanto a ignorância do passado quanto o esquecimento do inevitável porvir. A extrema-direita está muito à frente da esquerda no manejo das redes sociais e da linguagem digital. Nossos ensaios têm sido tímidos. A renovação da direção fascista também é uma realidade, com figuras como Nikolas Ferreira, organizações relativamente jovens como MBL e milhares de influencers espalhados por todas as plataformas e explorando todo tipo de formato. A ideia de que o fascismo é um movimento de velhos acomodados é extremamente equivocada. Talvez tenha sido assim há alguns anos. Não é mais. É imprescindível se ligar à juventude. Não cabe aqui o velho consolo de que o movimento estudantil é tradicionalmente de esquerda e portanto constitui um espaço naturalmente nosso. Essa realidade já está mudando. O que hoje são incursões pontuais de provocadores nas universidades públicas amanhã pode se tornar trabalho estrutural do fascismo. Se isso acontecer, as coisas ficarão muito mais difíceis para nós.
A juventude é um dinamizador das lutas
A juventude não é uma classe social nem um setor política ou ideologicamente diferenciado. Há jovens ricos e pobres, revolucionários e reacionários. A juventude é apenas um período da vida. Mas a vida humana tem uma certa mecânica mais ou menos previsível em qualquer cultura. Por isso, em todas as sociedades, a juventude é sempre o setor mais dinâmico. A própria análise econômica e social de fundo deve levar em conta o peso da juventude. É sabido que países mais velhos perdem dinamismo econômico, cultural, político e militar. Ao contrário, países mais jovens usufruem o chamado “bônus demográfico”, quando a população ativa é maior que a população inativa (crianças e idosos), o que cria uma importante janela de oportunidades para o crescimento e inovação.
Esse fato deve orientar também a atuação das organizações socialistas. As análises políticas devem levar em consideração o humor da juventude, sua condição estrutural, sua situação empregatícia, o problema da educação e do movimento estudantil, as novas tendências culturais do mundo analógico e digital.
Trata-se aqui de entender realmente a dinâmica política da juventude, o papel mais profundo dessa faixa etária na própria história do país. E estar atento aos sinais de crise e insatisfação desse setor da população. Ser jovem tem consequências programáticas.
A juventude é ideológica
Uma organização política que não faça trabalho ideológico terá muita dificuldade de se conectar com a juventude. Quando se tem 16, 20 ou 24 anos as ideias importam mais do quando se tem 40 ou 50. Frequentemente, elas determinam os projetos de vida, as escolhas profissionais e pessoais dessas novas gerações. Basta lembrar a importância que as ideias tiveram para nós, membros das gerações mais velhas. Começamos a militar em alguma luta concreta, alguma greve, alguma mobilização. Mas não escolhemos qualquer organização. Optamos por aquela que melhor representava o nosso desejo de mudar o mundo. Nossa escolha foi baseada em ideias. Uma organização que substitua a política concreta pela propaganda abstrata está condenada à marginalidade. Mas uma corrente que não fale de comunismo, revolução, alienação, capitalismo e de como construir uma nova sociedade não merece a designação de socialista.
Enquanto lemos este artigo, quantos jovens estão pesquisando no ChatGPT qual a organização mais revolucionária, mais socialista e mais radical? Por isso, fazer luta ideológica no século 21 é ter uma presença nas redes, promover debates, participar de lives, produzir vídeos. Não bastam os velhos encontros presenciais. Eles sempre serão importantes, mas já não suprem nossas necessidades. É preciso não apenas um perfil político e organizativo, mas ideológico.
A juventude quer enfrentar o mundo
As posições sindicais, os gabinetes parlamentares, a “institucionalidade” (cotidiano ordeiro) do movimento de massas são muito importantes. Eles ajudam a dar um senso de continuidade, estabilidade e força à luta. São instrumentos poderosíssimos, sobretudo em tempos de retrocesso e avanço do fascismo. Mas uma organização que se limite a essa institucionalidade terá enormes problemas em se ligar com os setores mais aguerridos, mais corajosos da juventude. É preciso uma combinação de terrenos da luta. Quem reivindica para si a designação de revolucionário deve estar na primeira linha do enfrentamento extrainstitucional. Não precisamos inventar nada, nenhum foco exemplar. A luta de classes já está repleta de conflitos de rua, ação direta, resistência ativa. É preciso apenas ser parte deles. E não apenas estar presente, mas ser o setor mais consciente, propor não apenas táticas de luta, mas saídas estratégicas.
A juventude é antropofágica
Existe um certo senso comum mais ou menos disseminado de que “A juventude não lê!”, “A Juventude não estuda!”. Seria preciso acessar estatísticas sérias a esse respeito para formar uma opinião. Da forma como esse assunto surge, no entanto, parece muito mais uma ideologia justificativa da dificuldade, por parte dos mais velhos, em estabelecer um diálogo intergeracional. A juventude vive nas redes, é verdade. Lê menos do que a nossa geração – também parece verdade. Mas está absorvendo o mundo, engolindo ideias, se nutrindo de tudo de bom e de ruim que circula nas redes, exatamente como nós fizemos na nossa época. A juventude assiste a toneladas e toneladas de cursos, palestras, aulas online, pequenos vídeos, carrosséis, stories. Ela quer saber, e muito! Mas o faz à sua maneira, à maneira da sua geração. Somos nós, os mais velhos, que olhamos para essa nova forma de devorar o mundo com uma certa arrogância e muitas vezes deixamos de dialogar. A juventude está no auge de sua curiosidade intelectual. É preciso aproveitar essa estreita janela. São poucos os indivíduos em que ela não se fecha depois, lá pelos 40 ou 50 anos.
A juventude quer mais do que política
“Não só de política vive o homem”, escreveu Trótski em seu famoso artigo de 1923 publicado na coletânea Questões do Modo de Vida. Nesse texto magistral, o organizador do Exército Vermelho advogava a necessidade do partido bolchevique se conectar com as massas por outros canais para além dos da política pura: cinema, cultura, festas populares, clubes de alfabetização, até a secularização e ressignificação dos rituais religiosos. Valia tudo na luta pela conexão com uma população que se interessava não apenas pelas questões estatais, mas sobretudo pela própria vida humana. A revolução socialista era um despertar total do indivíduo e era preciso levar isso em consideração.
O mesmo acontece com a juventude, que também pode ser encarada desde o ponto de vista da consolidação da personalidade, do estabelecimento dos gostos pessoais, da autodescoberta e do amadurecimento psíquico. Por isso, uma organização que deseje se conectar com a juventude precisa oferecer a ela mais do que política. Não se trata de criar novas pequenas seitas que visam suprir todas as necessidades de conexão. Não. A organização política não substitui o mundo real. Mas é preciso haver, dentro da corrente de juventude, espaços de expressão e promoção artística, literária, lazer, estudos para além da política, até esporte e saúde. “Nada do que é humano me é alheio”, teria dito o dramaturgo romano Terêncio no século II a.C. e o repetiu Marx em uma carta ao pai em 1837, em sua fase boêmia e lírica. E isso é muito sintomático. O homem que escreveu O Capital passou sua juventude bebendo cerveja nas tavernas alemãs e escrevendo poemas para sua amada Jenny. É preciso se orientar por essa via: uma juventude que não seja apenas política, mas que ofereça a seus membros e simpatizantes um senso de pertencimento mais amplo. A igreja sabe aproveitar isso muito bem e oferece a seus fiéis muito mais do que religião. Nós precisamos fazer o mesmo.
A juventude quer e tem direito a espaço
Não raro no interior das organizações socialistas a juventude é considerada um “setorial” como qualquer outro, quando deveria constituir o próprio objetivo geral da corrente em termos de construção. Quantos dirigentes da velha geração estão deslocados para o apoio à juventude? Não se trata de colocar artificialmente adultos de 30 ou 40 anos para passar em sala convocando para reuniões de CA, mas de um apoio político, ideológico e organizativo aos quadros que estão à frente das tarefas. Não basta integrar representantes da juventude nos organismos de direção. Isso é apenas o primeiro passo. É preciso promover a sua formação, realizar cursos, acampamentos, discutir os documentos de juventude na máxima direção da corrente. É preciso que parte significativa do orçamento das organizações seja destinado ao trabalho na juventude. O cuidado com as profissionalizações demasiado longas de jovens que ainda não entraram no mercado de trabalho é válido e importante, mas não anula a necessidade de um alto grau de investimento. Nesse terreno, temos importantes experiências, inclusive no Brasil, que podem nos ensinar muito. É preciso conhecê-las e discuti-las.
O futuro lhes pertence
O grande historiador trotskista Pierre Broué descreveu a construção do partido bolchevique como uma sucessão de ondas geracionais que começaram a ingressar na fração leninista a partir do final do século 19 até 1917. Em todas essas ondas, a juventude foi a vanguarda. E em relação a todas elas, Lênin sempre foi o decano: “Por isso, a imensa autoridade que possui sobre seus companheiros não é a de sacerdote nem de oficial, mas sim de pedagogo ou camarada, de professor e de veterano – muitos o chamam de ‘O Velho’ –, cuja integridade e inteligência se admira e cujos conhecimentos e experiências são muito estimados”. Mas o próprio Lênin teve em seu tempo a chance de trabalhar com os monstros sagrados da social-democracia europeia: Plekhánov, Axelrod, Vera Zassúlitch e Potréssov no período londrino do Iskra, nos primeiros anos do século 20. A revolução mais profunda da história foi um encontro e uma síntese de gerações.
Da mesma forma, a revolução brasileira é inconcebível sem o protagonismo da juventude pelo simples fato de que nenhuma revolução nunca foi possível sem jovens. Os socialistas precisam encarar o recrutamento da juventude como uma tarefa de vida ou morte, estratégica em todos os sentidos, não apenas para uma ou outra organização concreta, mas para o próprio país. O futuro sempre pertenceu e sempre pertencerá a eles. E eles farão desse futuro o que bem entenderem. Cabe a nós abrir espaço. No final das contas, a principal função de uma geração é ser a ponte para a geração seguinte. Nisso consiste o mecanismo fundamental da própria vida.
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