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Operação no Rio foi massacre deliberado com objetivo político


Publicado em: 31 de outubro de 2025

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Por Ronaldo T. Pagotto

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Fernando Frazão/Agência Brasil

Ouça agora a Notícia:

“Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.”
— Augusto dos Anjos, 1906, Versos Íntimos

Estas notas não têm a pretensão de realizar uma avaliação global do tema, tampouco de apresentar caminhos definidos. Limitam-se a reunir um conjunto de pontos e breves reflexões que possam auxiliar o debate sobre o assunto.

O combate ao assim chamado crime organizado — agrupamento não homogêneo de forças paramilitares sustentadas por atividades ilegais — é um consenso social. Parte desses grupos caminha rapidamente rumo à mafialização; outra parte tem origem nas próprias entranhas das forças do Estado. Trata-se de um fenômeno complexo, com destaque para o PCC, o Comando Vermelho (CV) e as milícias.

O Rio de Janeiro é amplamente identificado com a presença dessas organizações, sendo berço de diversos grupos de atuação nacional. O estado foi pioneiro em ações malsucedidas que, em vez de conter, ampliaram o problema: o Bope e outras forças especiais com autorização tácita para matar; operações simbólicas marcadas por altos números de mortos e nenhuma efetividade; e intervenções militares ineficazes, como as UPPs e as GLOs.

Na década de 1990, a legislação fluminense chegou a premiar policiais por criminosos mortos em operações — um verdadeiro “incentivo à letalidade estatal”. A medida foi amplamente criticada à época, mas, recentemente, voltou a ser discutida. Não parece mera coincidência.

A discussão pública, fortemente estimulada pela imprensa, segue uma tônica constante: os territórios de vida são apresentados como territórios do crime. Comunidades são chamadas de “áreas do grupo X ou Y”. Jovens — na maioria meninos negros e pobres — são tratados como suspeitos a priori. A imprensa tem desempenhado papel decisivo na estigmatização dos moradores das comunidades, subúrbios e periferias, reforçando a associação entre pobreza e criminalidade.

As facções e organizações criminosas produzem casos exemplares de violência, crueldade, submissão da população local e atrocidades — e parte dessas forças tem origem nas milícias, formadas por agentes públicos. Esses episódios, por sua vez, são usados como legitimação para operações letais, frequentemente respaldadas por governos, parlamentares e meios de comunicação.

A recente operação mobilizou cerca de 2.500 integrantes das forças estaduais — Policiais Militares, Civis e seus grupos especiais, em especial o Bope. O saldo foi de 121 mortos, sendo quatro policiais, e 113 presos. Não há registros oficiais de feridos: ou foram mortos, ou presos. A proporção é chocante — dez policiais para cada preso ou morto —, um índice de conforto em termos militares, mas inaceitável em termos de segurança pública.

A operação pode ser dividida em duas fases: (1) a incursão em território sob controle das facções, etapa de maior exposição das forças estatais e de maior possibilidade de fuga dos grupos armados; e (2) o cerco, planejado para forçar a fuga em direção a uma área aberta e de mata — sem moradores —, criando condições para o abate em massa dos fugitivos.

A ação durou mais de dez horas, iniciando antes do amanhecer e estendendo-se até o início da noite — tempo suficiente para passar da incursão ao cerco e executar o que pode ser caracterizado como massacre, algo muito além de uma chacina.

Até o final do dia, os números oficiais omitiram os mortos da mata, local do cerco e das execuções. A operação foi desmobilizada ao anoitecer do dia 28, deixando para trás um rastro de morte e abandono. A população local, sem qualquer apoio institucional, buscou corpos e sobreviventes durante a madrugada. Essa conduta da polícia é gravíssima: caberia a ela preservar a área para perícia e investigação, mas, ao abandoná-la, facilitou a alteração das cenas do crime. É razoável supor que isso tenha sido intencionalmente planejado.

As forças policiais alegaram que as câmeras corporais deixaram de funcionar devido à duração da operação, superior às 12 horas de bateria. É inacreditável que, em uma operação dessa magnitude, nenhuma imagem tenha sido preservada — o que sugere desligamento deliberado.

Os resultados revelam o caráter da ação: não houve sobreviventes. Historicamente, desde as chacinas de Acari, Vigário Geral e Candelária até as operações no Alemão, Jacarezinho, Vila Cruzeiro, Santa Marta e Vidigal, os problemas para as autoridades sempre vieram dos sobreviventes e testemunhas. Nesta operação, há testemunhas da fase de incursão, mas nenhuma da fase de cerco e execução.

Os mais de 70 mortos na mata indicam execuções sumárias. Mesmo admitindo — em hipótese extrema — que todos os presos e mortos fossem criminosos, resta a pergunta: é aceitável uma operação com um preso para cada morto? Isso só seria plausível se o crime organizado tivesse poder militar equiparável ao do Estado — o que não se verifica. Se fosse o caso, haveria mais baixas entre as forças policiais e menos indícios de execução.

Além do problema das câmeras, da ausência de testemunhas, da falta de sobreviventes e do abandono das cenas, há ainda uma narrativa oficial unificada: todos os mortos seriam criminosos, armados com fuzis, e por isso o Estado teria autorização para matar. A história do crime organizado e a morte dos quatro policiais são utilizadas para convencer a sociedade de que as execuções foram legítimas. Trata-se de uma autorização extrajudicial para matar.

A apuração também foi comprometida: o local das mortes foi violado; os corpos, removidos pela população; e o acesso aos exames necroscópicos foi restrito ao IML, à Polícia Civil e ao MP-RJ. Tudo isso dificulta a produção de provas e reforça a suspeita de encobrimento.

Em termos práticos, a operação não apresentou resultados concretos. Não desmantelou o Comando Vermelho, não libertou territórios sob controle e não prendeu alvos relevantes. A quantidade de armas, drogas, dinheiro e lideranças capturadas foi irrisória frente à dimensão da operação.

O ritual pós-operação foi o de sempre: a polícia afirmou que todos os mortos eram criminosos, negou execuções, violação de provas ou desligamento das câmeras, e atacou quem ousou questionar — acusando-os de defender bandidos.

O governador Cláudio Castro tentou, inicialmente, justificar a operação como normal, alegando ter enfrentado resistência incomum e que o pedido de ajuda federal fora negado. Após a pronta resposta do Governo Federal, mudou o discurso, adotando a narrativa de combate ao crime e contando com o apoio imediato da grande imprensa, especialmente da Rede Globo, que legitimou a ação, com raras e tímidas vozes dissonantes.

A resposta do Governo Federal, com a reunião convocada por Lula na manhã do dia 29, foi pífia. Não houve enfrentamento político, apenas oferta de apoio técnico e presença de ministros no Rio. O episódio expôs falta de coordenação e timidez política.

Enquanto isso, a direita e a grande mídia aproveitaram o vácuo para construir uma hegemonia narrativa: a da legitimação e anistia prévia da operação. Surgiu até um Consórcio pela Paz, inspirado em Sun Tzu — “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”.

A questão da segurança pública é complexa, mas a direita a trata como simples. Essa assimetria desequilibra o debate. A esquerda busca compreender as causas estruturais da violência; a direita, explorar as consequências, reduzindo tudo a prisão, pena e morte. Para o campo conservador, uma sociedade amedrontada e violenta é mais receptiva a ideias autoritárias e fascistas. Assim, evita-se discutir as raízes da criminalidade, mantendo o foco no populismo penal.

A esquerda, por sua vez, tem propostas e experiências concretas, mas nenhuma política isolada é suficiente diante da dimensão nacional e internacional das organizações criminosas, que hoje se infiltram tanto na ilegalidade quanto na legalidade, conformando estruturas mafiosas.

O embate atual opõe dois campos: de um lado, a justificação prévia da operação, tratada como sucesso militar e moral; de outro, os setores democráticos e progressistas, que exigem apuração real e rejeitam autorizações genéricas para matar.

O ponto mais delicado é que a esquerda ainda não consegue equilibrar o debate. Enquanto o populismo penal avança com slogans simples — “mais prisões”, “menos direitos”, “bandido bom é bandido morto” —, o campo progressista tenta articular causas e consequências, enfrentando o tema em toda sua complexidade.

Por fim, entre as dúvidas e evidências, há uma conclusão inevitável: uma operação com dez policiais para cada preso ou morto, com mais de 70 corpos abandonados na mata, sem preservação da cena e sem provas periciais, só pode ser definida como um massacre planejado. Seu objetivo não era combater o crime, mas pautar a sociedade sob uma falsa dicotomia — “apoia ou não apoia bandidos”, “combate ou não combate o crime organizado”. E, em parte, esse objetivo vem sendo alcançado, graças à timidez, ao cálculo político e à omissão do Governo Federal.


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