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O fascismo está de volta na política francesa

O auge da extrema direita na França tem sido acompanhado do crescimento das tendências racistas e autoritárias entre os autodenominados centristas, como Emmanuel Macron. A única forma de combater a ameaça fascista é enfrentar diretamente essas tendências.


Publicado em: 27 de outubro de 2025

Especiais

Ugo Palheta

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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O voto da extrema direita aumentou de forma constante em todas as eleições francesas desde 2012, alcançando 41,5% no segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Não se trata de um fenômeno isolado.

A direita tradicional se tornou extremista; as liberdades civis foram restringidas em nome da luta contra o terrorismo; nos últimos dez anos, cada vez mais manifestações foram proibidas e cada vez mais toda a dissidência foi criminalizada; as leis e os decretos islamofóbicos foram acompanhados de campanhas midiáticas dirigidas contra os muçulmanos; e se desenvolveu um movimento reacionário massivo contra a igualdade de direitos e os programas educacionais que promovem a igualdade de gênero.

Na França atual, os imigrantes são sistematicamente perseguidos e agredidos pela polícia (por ordem de governos sucessivos), quando não são sequestrados, espancados e abandonados à sua própria sorte por multidões violentas. Os observadores relatam um número cada vez maior de agressões físicas por parte de grupos de extrema direita contra membros de minorias étnicas e contra ativistas envolvidos em movimentos sociais.

Um conjunto cada vez maior de publicações em todas as plataformas – desde artigos online até vídeos, podcasts, livros etc. – promove um racismo conspirativo (a teoria da “grande substituição”) e exige o estabelecimento de um governo autoritário capaz de contra-atacar as minorias e à esquerda (“o partido dos estrangeiros”). Existe um assédio público constante aos muçulmanos e aos ativistas antirracistas, feministas e LGBTI+.

Tudo isso se completa com a intensificação da repressão policial nos bairros operários e a impunidade estrutural da violência policial. O fascismo está anunciando sua chegada não como uma hipótese abstrata, mas como uma possibilidade concreta. Mencionamos algumas de suas formas distintas, ainda embrionárias, e o simples fato de enumerá-las revela a natureza esclerosada da política francesa na era neoliberal.

“Nunca mais”

Os comentaristas costumam descartar de imediato este possível retorno do fascismo: como a República Francesa, autoproclamada pátria dos direitos humanos, poderia dar lugar à barbárie fascista? A França não era “alérgica” ao fascismo ao longo do século XX, como afirmaram durante muito tempo diversos historiadores franceses convencionais?

O Front National [Fronte Nacional – FN], que se tornou o Rassemblement National [Reagrupamento Nacional – RN] em 2018, não afirma ter abandonado o projeto político que defendia desde sua fundação em 1972? Este partido não atingiu um teto de vidro eleitoral, como tem se afirmado habitualmente durante as últimas três décadas? Na verdade, não estamos assistindo a um renascimento do capitalismo francês, liderado por um presidente jovem, que finalmente está realizando as “reformas” que supostamente a França necessita?

O fascismo na França atualmente está encarnado em organizações como o FN/RN (um partido que tem mais de cinquenta anos), Reconquête [Reconquista] (fundado em 2021 pelo comentarista islamofóbico Étic Zemmour) e outros movimentos e seitas (Action française [Ação francesa], Identitaires [Identitários], “nacionalistas revolucionários” etc.). Isto não significa que alguma dessas organizações seja um movimento fascista propriamente dito. No entanto, cada uma delas é um veículo – ou, mais precisamente, um produtor, organizador e amplificador coletivo – dos desejos, ideias, estratégias e práticas fascistas.

A ideia é difícil de aceitar porque, provavelmente, temos dado muito crédito à ideia do “nunca mais”. Ou melhor, porque muita gente a interpreta mal: deveria ter sido vista como uma convocação para a ação, com o objetivo de se opor a todo ressurgimento do fascismo que se espreita no centro do capitalismo. Ao contrário, foi confundida com uma promessa ou garantia de que as “democracias” que derrotaram o fascismo nazista em 1945 não poderiam, por sua própria natureza, dar lugar ao fascismo. Não levamos suficientemente a sério a advertência do dramaturgo Bertolt Brecht: “Ainda continua sendo fértil o útero de onde surgiu a besta imunda”.

Depois de 1945 e de décadas nas quais os herdeiros de Adolf Hitler e Benito Mussolini foram marginais, o fascismo sobreviveu e renasceu. O fez se livrando das características externas do fascismo específico que se desenvolveu no contexto do período entre-guerras: o estilo com o qual o fascismo se associa tão obstinadamente em vossas mentes, porque era tão evocativo, pôde ser abandonado ou consideravelmente reformulado.

A partir desse ponto de vista, é necessário reconhecer que nem Marine Le Pen, nem Zemmour, nem seus respectivos adjuntos, nem os youtubers e influencers de extrema direita que surgiram nos últimos anos são adeptos das camisas marrons e das suásticas.

Mas se apresentam como as diversas encarnações de um neofascismo para o momento presente e, mais precisamente, no caso do FN/RN, como um setor mais institucional do fascismo, como sempre existiu dentro dessa corrente política. Na verdade, já se encontra presente no coração da sociedade francesa (e, mais amplamente, do capitalismo neoliberal), aguardando o momento oportuno e preparando o terreno para se converter em uma prática de poder.

Fascistização

Porém, o fascismo não se limita a estas organizações. Também se manifesta por meio de uma série de mudanças e transformações moleculares, tanto no nível ideológico quanto no institucional, que facilitam o caminho tanto para uma vitória eleitoral da extrema direita como para uma transformação qualitativa do Estado em uma direção autoritária e racista. Tais mudanças e transformações podem ser resumidas no conceito de [processo de] fascistização.

Desde 2007-2008, com a grande crise financeira e suas sequelas, o capitalismo mergulhou em uma crise da qual apenas os especialistas mais cegos da imprensa econômica acreditam vislumbrar a saída. Na verdade, esse regime de crise parece ter se convertido no formato normal de administrar a economia e a sociedade. Sem dúvidas, uma expressão dessa crise é o enfraquecimento do que chamamos de instituições democráticas.

Na França, as liberdades civis e os direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora e por suas organizações durante os últimos séculos foram corroídos por uma série de governos. Os mecanismos tradicionais da democracia parlamentar são sistematicamente minados, marginalizados e esvaziados de seu conteúdo pela própria classe dominante, em favor de órgãos ou procedimentos não eleitos que burlam seus processos (por exemplo, o artigo 49.3 da Constituição, empregado para aprovar leis sem votação, ou o governo por meio de decretos).

Em outras palavras, as formas políticas atuais de dominação capitalista, que garantiam certos direitos à manifestação social ou à oposição parlamentar, e cuja função principal era construir amplos compromissos sociais que puderam ter um efeito estabilizador, estão desmoronando. Além disso, o racismo é cada vez mais visível na esfera pública, especialmente na forma da xenofobia contra os imigrantes e a islamofobia.

Os ideólogos reacionários, onipresentes na atualidade, justificam a discriminação sistêmica contra os imigrantes não europeus e seus descendentes, ao mesmo tempo em que introduzem a ideia da possível deportação de milhões de muçulmanos (rebatizada agora como “reimigração”). Por fim, as forças da extrema direita conseguiram importantes avanços eleitorais na França e em outros países.

Chantagem

Entretanto, nos últimos dez anos, a possibilidade de uma ameaça fascista foi descartada com grande facilidade, simplesmente devido à forma em que se empregou este espectro durante várias décadas. De fato, isso foi utilizado cinicamente por um Parti Socialiste [Partido Socialista – PS] que se tornou social-liberal na década de 1980 e, depois, liberal-autoritário sob François Hollande na década de 2010, mas também pela direita, particularmente na época de Jacques Chirac.

“Se não voltarem em nós no primeiro ou segundo turno, o retorno do fascismo pesará sobre a sua consciência”, nos disseram constantemente seus líderes. Tal chantagem, combinada com as políticas aplicadas por estes partidos (que, em muitos aspectos, se inspiram no programa da extrema direita), teve o efeito de banalizar o perigo específico que representa o FN/RN: de que serve causar um alarme, se quem fala de uma ameaça e pretende evitá-la também está se esforçando na prática para que se torne realidade?

Basta comparar a reação popular massiva quando Jean-Marie Le Pen chegou ao segundo turno das eleições presidenciais de 2002 e uma resposta mais fraca quando sua filha fez o mesmo em 2017 e 2022, apesar da pontuação desta última acabar sendo muito mais alta (41,5% em 2022 em comparação com 18% em 2002), constatando que este pseudo-antifascismo eleitoral está perdendo sua força cada vez mais.

Nas últimas décadas, temos assistido a uma piora constante das condições de trabalho e de vida de milhões de trabalhadores; um estado de emergência empregado para impedir a mobilização social e, depois, para administrar a pandemia; o uso de procedimentos autoritários para minar os direitos trabalhistas e as aposentadorias; as políticas imigratórias e de segurança cada vez mais não se distinguem das defendidas pela extrema direita; e uma islamofobia que atualmente é endêmica na sociedade francesa.

Estas mudanças foram impulsionadas pelo partido gaullista sob Chirac e depois sob Nicolas Sarkozy, pelo Parti Socialiste sob Hollande Manuel Valls (além de outros) e, desde 2017, também pelo macronismo. Tudo isso debilitou a sensibilidade do público diante da real ameaça que representa o FN/RN, inclusive entre aqueles que, sem dúvidas, são os que mais têm que temer com a atual dinâmica neofascista na França.

Por que alguém deveria temer um partido que é conhecido por sua hostilidade violenta para com os movimentos de libertação, os estrangeiros e muçulmanos, e, em geral, as minorias, quando os sucessivos governos já se sentaram em suas bases para uma legislação de emergência dirigida contra os chamados “inimigos internos”? Estas políticas afetaram os muçulmanos, os ciganos, os imigrantes, os residentes de bairros operários e imigrantes, mas também a todos aqueles que a direita macronista descreveu nos últimos anos como “ecoterroristas” ou “islamoesquerdistas”.

Uma estratégia poderosa

Agradar ao eleitorado do FN/RN durante todo o ano para depois denunciar a ameaça da extrema direita nos dias que antecedem um segundo turno eleitoral decisivo tem sido uma estratégia perdedora. Isso é demonstrado de forma bastante inequívoca pelo avanço eleitoral de Marine Le Pen e seu partido. Não foi o próprio Hollande quem legitimou o FN/RN ao convidá-lo para o Palácio do Eliseu [1] após os atentados terroristas de novembro de 2015? Emmanuel Macron não apoiou a extrema direita ao conceder uma longa entrevista à Valeurs actuelles, uma revista semanal reacionária recentemente condenada por insultos racistas à deputada Danièle Obono, do La France Insoumise?
Não tomou emprestado da classe dirigente francesa, liderada por Macron e seus ministros, grande parte da linguagem neofascista quando fala de “crescente selvagerismo”, “incivilização”, “grande substituição” ou de uma França “sufocada pela imigração”? É de se admirar que restam pouquíssimas pessoas que acreditam que compensa enfrentar a extrema direita e que a proporção de eleitores dispostos a votar contra ela no segundo turno está reduzindo de forma lenta, mas certa?

Votar no partido de Macron, Renaissance [Renascimento], e, mais ainda, no partido tradicional de direita Les Républicains [Os Republicanos – LR], que tem se aprofundado cada vez mais em uma fusão entre o neoliberalismo e a política identitária nacionalista, somente pode afastar temporariamente o perigo. É uma ilusão esperar algo deles.
No longo prazo, a lógica do “mal menor” é prejudicial porque adia sistematicamente qualquer tentativa de desenvolver e aplicar uma política emancipadora. Essa alternativa deve ter seu centro de gravidade entre as classes trabalhadoras, já submetidas a condições de vida cada vez piores, mas também entre aqueles que enfrentam todas as formas de opressão.
Inevitavelmente, à medida que as ilusões se desfazem, o chamamento ao “voto programático” ou ao “voto para barrar a extrema direita” tem cada vez menos influência sobre as populações que deveria mobilizar. O PS assumiu durante muito tempo que esta era a forma de fazer a extrema direita recuar e manter unida sua própria base eleitoral, apesar de seu histórico de usar o FN para dividir o campo da direita.

Porém, evidentemente fracassou em dois aspectos. Em primeiro lugar, porque seu eleitorado e sua base ativa (reduzida mais ou menos aos seus representantes locais e ao seu círculo) esgotaram-se a um ponto que teria sido difícil imaginar há apenas alguns anos. Em segundo lugar, porque o FN/RN continuou crescendo, embora ainda longe de ser um movimento de massas.

Renovar o antifascismo

A instrumentalização eleitoral da luta contra a extrema direita se voltou contra seus promotores (tanto do PS como da direita): as classes trabalhadoras e os setores das classes médias que se encontram em uma situação cada vez mais precária agora podem vislumbrar facilmente por meio de sua artimanha. Mas é óbvio que sua função é fazer com que as pessoas se esqueçam de uma política que faz de tudo para servir aos mandos do capital e aos interesses das classes proprietárias.

A luta antifascista precisa, portanto, de uma renovação urgente. No entanto, isto significa, em primeiro lugar, abandonar certas ideias cômodas, mas impotentes, sobre como combater a extrema direita. Para se opor ao FN/RN, precisamos mais do que os “valores republicanos” – que a experiência cotidiana da maioria das pessoas demonstra que está longe de ser uma realidade – ou uma “frente republicana” formada por organizações diretamente responsáveis pela destruição dos direitos sociais e democráticos, da banalização do racismo e, como consequência, do auge da extrema direita.

O antifascismo somente tem chances de sucesso ao abandonar uma postura exclusivamente defensiva. Sua ação deve fazer parte da construção paciente, mas decidida, unida, mas radical, de um movimento amplo capaz de colocar um fim nas políticas neoliberais, autoritárias e racistas; deter o empobrecimento das classes trabalhadoras; e, mais profundamente, romper com a organização capitalista de nossas vidas.

[1] Palácio do Eliseu é a residência oficial do presidente da República Francesa. (Nota do tradutor)

Ugo Palheta é sociólogo, professor associado na Université de Lille e codiretor da revista Contretemps. É autor de Why fascism is on rise in France: From Macron to Le Pen. Publicação original: https://jacobinlat.com/2025/08/el-fascismo-esta-de-regreso-en-la-politica-francesa/


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