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O problema da extrema direita na Espanha
Grupos espanhóis de extrema direita estão ajudando a incitar ataques racistas e xenófobos em uma tentativa desprezível de conseguir ganhos parlamentares. A esquerda espanhola é forte o suficiente para reagir?
Publicado em: 14 de outubro de 2025
O padrão nos é bastante familiar. Alguém comete um crime, a extrema direita se aproveita disso como uma suposta prova de suas teorias racistas sobre as origens do crime, um grupo determinado é alvo nas redes sociais e a violência começa – frequentemente alimentada pelas figuras conservadoras no parlamento. Isso aconteceu no Reino Unido durante o verão de 2024 e na região da Múrcia, na Espanha, no mês passado. O pretexto foi a agressão de um homem morador da cidade de Torre-Pacheco, no sul da Península Ibérica. O resultado foram vários dias de ataques aos residentes da cidade provenientes do Magrebe, conduzidos por centenas de militantes da extrema direita que viajaram de outras regiões.
A violência em Torre-Pacheco (com uma população de 40 mil habitantes), que começou em 11 de julho, foi seguida por diversos incidentes menos graves, mas parecidos. Apenas alguns dias antes, Sabadell, um bairro operário de Barcelona, havia sido alvo de ataques racistas contra residentes imigrantes, desencadeados por um protesto contra a insegurança supostamente causada por invasores de origem estrangeira. Na mesma semana, uma mesquita na cidade de Piera, próxima de Barcelona, foi incendiada pouco antes de sua inauguração.
A islamofobia e o racismo contra os trabalhadores do Marrocos e de outros países do Norte da África são as formas mais comuns de racismo na Espanha. Nos anos anteriores, aconteceram ataques a centros que acolhem menores imigrantes desacompanhados, particularmente na Catalunha e na região de Madri. No entanto, a série de incidentes racistas deste verão marca uma mudança qualitativa: revela que a extrema direita escolheu a estratégia da propaganda racista por meio da violência.
Em 9 de julho, um morador foi agredido em Torre-Pacheco, alegadamente por um grupo de jovens provenientes do Magrebe. Pouco tempo depois, supostas imagens da agressão começaram a circular entre grupos de extrema direita e neonazistas – na verdade, os vídeos mostravam outros ataques, incluindo um no México sem motivo evidente e o espancamento de um morador de rua.
A desinformação e a convocação para a violência racista rapidamente se espalharam dos fóruns extremistas fechados para as redes sociais convencionais, em que os membros do Vox – o partido de extrema direita da Espanha, que mantém 33 das 350 cadeiras no parlamento – juntamente com o deputado europeu Alvise Pérez e provocadores de direita, aproveitaram o incidente para espalhar slogans como “Mais muros, menos mouros”. O chamado à ação veio de um canal do Telegram de um grupo neonazista chamado “Depórtalos Ahora” [Deporte-os Agora!], o que incitou uma “caçada” para “enviar os agressores para Alá”. O grupo, pouco conhecido na Espanha até recentemente, abertamente provocou o imaginário e os slogans nazistas.
Mas este incitamento à violência talvez não tivesse ganhado tração sem o apoio implícito do Vox, que também formou coalizões com o conservador Partido Popular (PP) em diversas regiões e governos locais. Em um país em que as visões anti-imigração ainda não são tão comuns como em outros países da Europa, o Vox tipicamente mascara seu racismo em uma retórica mais palatável. Porém, desta vez, suas mensagens eram quase indistinguíveis daquelas dos grupos neonazistas que incitam à violência. De fato, o líder do Vox, Santiago Abascal, atiçou as chamas ao publicar um vídeo no qual afirmava que “a Espanha está sofrendo uma invasão migratória brutal”.
A “caçada” racista em Torre-Pacheco aconteceu dias depois de o deputado europeu do Vox, Rocío de Meer, apelar pela deportação de “oito milhões de pessoas”, um processo de “reimigração” que incluiria “a segunda geração”, porque eles “não se adaptaram aos nossos costumes e, em muitos casos, têm contribuído para a insegurança”. Esta proposta abertamente racista ecoa um plano discutido secretamente em 2023 por empresários alemães, neonazistas e membros da Alternative für Deutschland [Alternativa para a Alemanha – AfD] a fim de organizar uma deportação em massa da Alemanha, o que causou um escândalo.
Uma “caçada” aos imigrantes impulsionada por políticos de terno e gravata
A violência começou em 11 de julho, seguida por uma manifestação organizada pela Câmara Municipal de Torre Pacheco (liderada pelo PP) para condenar a agressão a um aposentado espanhol. Nem as autoridades locais, nem o governo regional da Múrcia, liderado pelo PP, convocaram qualquer mobilização quando foram revelados casos graves de agressões sexuais contra trabalhadoras agrícolas imigrantes por parte dos empregadores espanhóis ou quando meios de comunicação expuseram as condições de semi-escravidão sob as quais muitos trabalhadores imigrantes são submetidos arduamente nas fazendas de Múrcia e Andaluzia – cujas exportações de frutas e vegetais abastecem grande parte da Europa.
Após a manifestação, um grupo de militantes de extrema direita de fora da cidade começou a perseguir e agredir residentes provenientes de Magrebe. A presença policial limitada foi esmagada pela multidão racista, que vandalizou lojas, ateou fogo em lixeiras e atacou residentes locais. Por diversas noites, centenas de ativistas de extrema direita aterrorizaram a cidade, de forma que muitas famílias de imigrantes foram forçadas a ficarem trancadas em suas casas, já que a polícia, com recursos insuficientes, não conseguiu garantir a segurança delas. Grupos de jovens moradores enfrentaram os militantes de extrema direita na rua. O porta-voz do Vox se recusou a condenar os ataques racistas e, ao invés disso, continuou a espalhar a ideia falsa de que a imigração provocou um aumento na insegurança na Espanha – revelando um nível sem precedentes de coordenação entre a violência e os segmentos parlamentares da extrema direita espanhola.
Gradualmente, os reforços policiais foram enviados e os distúrbios foram controlados. Em 15 de julho, um guarda-costas particular de Mataró, na Catalunha, e o líder do “Depórtalos Ahora” foi preso e o governo excluiu o perfil do grupo no Telegram. Os distúrbios deixaram diversos feridos, com 120 pessoas identificadas pela polícia e 13 presas.
A imigração enquanto campo de batalha política
Até recentemente, a Espanha – juntamente com Portugal – se destacava como uma exceção à guinada radical da Europa à extrema direita. Embora movimentos conservadores marginais tenham chegado a diversos governos e influenciado fortemente os partidos tradicionais, a Península Ibérica permaneceu relativamente resistente até os últimos anos.
Em Portugal, o fim da exceção ficou claro nas eleições de maio de 2025, quando o partido Chega! de extrema direita conquistou mais de 20% dos votos [2]. Na Espanha, o governo de Pedro Sánchez sobreviveu até as eleições gerais de 2023 graças a uma frágil coalizão parlamentar com o Sumar [coalizão de esquerda] e os partidos da Catalunha, do País Basco e da Galiza, mas a direita está crescendo; pesquisas apontam que, agora, o Vox possui cerca de 15% de apoio – um resultado que tornaria o partido de Abascal um aliado indispensável para um potencial governo encabeçado pelo líder do PP, Alberto Núñez Feijóo.
Tais tumultos racistas deste verão marcam o ápice (até agora) da mudança estratégica da extrema direita espanhola em direção à retórica anti-imigrante. A imigração assumiu agora o papel central enquanto o principal campo de batalha político do Vox, substituindo as obsessões anteriores com o feminismo e os direitos LGBTI+ – questões que anteriormente dominavam a agenda do partido, enraizadas no legado nacional-católico do franquismo. Em 2024, a decisão do Vox de priorizar posições anti-imigração o levou a romper as alianças governamentais regionais com o PP, depois que os conservadores concordaram em fazer uma distribuição de menores imigrantes desacompanhados entre as regiões da Espanha.
Como em outros países europeus, o PP está sendo arrastado para posições cada vez mais radicais pelo endurecimento da narrativa da extrema direita. Ao invés de se opor à retórica racista que alimentou a violência em Torre Pacheco, Feijóo apelou para a deportação “imediata” dos imigrantes irregulares que cometem crimes, uma novidade na postura do PP em relação à imigração e ao crime.
Os apelos racistas à ação em Torre Pacheco atraíram centenas de militantes de extrema direita, embora a agitação não tenha se espalhado para outras partes da Espanha, como aconteceu no Reino Unido no ano anterior. No entanto, também não conseguiu provocar uma resposta forte dos movimentos sociais espanhóis e da esquerda espanhola, que se concentrou mais em exigir a intervenção policial e jurídica contra a extrema direita organizada do que em uma solidariedade concreta com os trabalhadores imigrantes ameaçados. Uma diferença preocupante, em comparação com a reação inspiradora dos movimentos antirracista e antifascistas britânicos à violência racista, que decorre da tradição mais fraca do ativismo antirracista da esquerda na Espanha. Para recordar uma exceção à generalização do racismo na Europa, os movimentos sociais da Espanha necessitarão se preparar para confrontar as tentativas futuras da extrema direita para espalhar a proposta racista por meio da violência.
[1] O Partido Popular é o principal partido conservador da Espanha, de orientação liberal-conservadora, tendo governado o país em diversos períodos. Representa a direita tradicional, mas tem se disposto a formar alianças com a extrema direita. Já o Vox é uma dissidência do PP, que surgiu em 2013 como um partido de extrema direita com pautas ultranacionalistas, autoritárias, anti-imigratórias, xenofóbicas, privatistas, contra as autonomias regionais, pela retirada de direitos e pelo aprofundamento do neoliberalismo. O Vox constituiu-se como a terceira maior força no parlamento espanhol atualmente e é liderado por Santiago Abascal. (Nota do tradutor)
[2] O Chega! é um partido político de extrema direita fundado em 2019 em Portugal e liderado por André Ventura. Defende um discurso nacionalista e anti-imigratório, além de se opor aos direitos das minorias, como a comunidade LGBTI+. Atualmente, é a segunda maior força parlamentar de Portugal. (Nota do tradutor)
Pablo Castaño é um jornalista e cientista político que leciona na Universidad Autónoma de Barcelona. Escreve para o Le Monde Diplomatique, El País, The Independent e Jacobin. Publicação original em Tribune
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