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O espectro do fascismo assombra a Europa

Oitenta anos atrás, a Europa celebrava a derrota do fascismo após uma luta tirânica. Como aponta o historiador Enzo Traverso, o último aniversário do Dia da Vitória na Europa [8 de maio] chega no momento em que a extrema direita é mais forte do que em qualquer momento desde 1945.


Publicado em: 10 de outubro de 2025

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Enzo Traverso

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Viktor Orban e Alice Wiedel

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A extrema direita na Europa se afirma como um fenômeno social com características estruturais. Da Itália de Giorgia Meloni aos crescimentos eleitorais da Alternative für Deutschland alemã, do Rassemblement National francês e do Vox espanhol, a extrema direita avança inclusive no Parlamento Europeu. Partidos nacionalistas, anti-imigração e autoritários ganham espaço, alterando profundamente o cenário político europeu. Diante da crise do capital, que tende a se aprofundar com uma periodicidade cada vez menor, o neofascismo se levanta diante da estagnação econômica, da insegurança social e da frustração com as políticas tradicionais, apresentando-se como antissistema, sendo que, na prática, reforça a manutenção da ordem vigente.

O avanço da extrema direita na Europa representa uma ameaça existencial à democracia e aos direitos dos trabalhadores, consolidando-se como expressão política das contradições profundas do capitalismo europeu em crise.

No entanto, as lutas de resistência contra o neofascismo europeu também se aprofundam, sendo visíveis nos momentos eleitorais, nas reconfigurações partidárias e nas mobilizações diretas nas ruas. Exemplos recentes incluem o avanço eleitoral da Die Linke alemã em fevereiro e as manifestações antifascistas que ocuparam as ruas, o fortalecimento da esquerda espanhola após as disputas contra o Vox nas eleições de julho, a vitória da Nouveau Front Populaire nas eleições legislativas francesas em julho e as greves trabalhistas e mobilizações sindicais contra a reforma das aposentadorias, a formação de um novo partido de esquerda no Reino Unido, além das massivas manifestações em várias localidades em solidariedade ao povo palestino, como a observada na Itália em 22 de setembro.

Assim, para fomentar o debate entre a militância brasileira, o Especial “Avanço da extrema direita na Europa” traz uma introdução de André Freire e uma seleção de artigos que analisam, em diferentes países, esse processo de reconfiguração política no continente com o avanço da extrema direita.


As comemorações são exemplos interessantes das narrativas hegemônicas do passado, que não necessariamente correspondem à consciência popular histórica. Isto é particularmente verdadeiro em relação a datas comemorativas globais, como o 8 de maio de 1945.

Durante décadas, o ocidente celebrava o Dia da Vitória na Europa para demonstrar seu poder e afirmar seus valores. Com essa mentalidade, o ocidente era não apenas poderoso, mas também virtuoso. Esta liturgia da democracia liberal funcionava de maneira harmoniosa e consensual, com todos os participantes reunidos ao redor de lembranças, símbolos e valores que forjaram sua aliança.

Em 1985, quarenta anos após o fim dos conflitos, a República Federal da Alemanha [1] se juntou às comemorações. Em um famoso discurso ao Bundestag [2], o presidente da Alemanha Ocidental, Richard von Weizsäcker, solenemente disse que a Alemanha não deveria olhar para esta data como um dia de derrota, mas, ao contrário, como um dia de libertação.

Após o final da Guerra Fria, o Dia da Vitória na Europa significou o triunfo do ocidente: capitalismo, força militar, instituições sólidas, prosperidade econômica e um estilo de vida agradável. Alguns acadêmicos falam de um tipo de fim da história hegeliano, com outros invocando um final feliz hollywoodiano.

Marcos históricos instáveis

Atualmente, este ritual confortável parece anacrônico, uma lembrança de uma época passada. Oitenta anos após a queda do Terceiro Reich, o fascismo está retornando à Europa. Seis países da União Europeia – Itália, Finlândia, Eslováquia, Hungria, Croácia e República Checa – possuem partidos de extrema direita no governo. Partidos semelhantes têm se tornado atores importantes em toda a União Europeia, da Alemanha à França e da Polônia à Espanha.

Nesse contexto, pode parecer preferível evitar as comemorações internacionais. Afinal, J. D. Vance, o conhecido vice-presidente dos Estados Unidos, [que seriam] os libertadores de 1945, poderia celebrar a liberdade elogiando a Alternative für Deutschland ou o igualmente conhecido Elon Musk poderia fazer isso realizando uma saudação nazista.

No lado oriental do continente, Vladimir Putin comemora o sacrifício do povo soviético na luta contra o fascismo – vinte milhões de mortos – saudando o heroísmo do exército russo que invadiu o que ele chama de Ucrânia “nazista” trinta anos atrás. Nossos marcos históricos estão instáveis; a memória convencional não harmoniza com a terrível confusão do nosso presente.

Apesar de seu caráter oficial, o Dia da Vitória na Europa também foi um marco memorial para a esquerda. Como enfatizou Eric Hobsbawm, representou uma vitória do iluminismo contra a barbárie. Uma coalizão entre liberalismo e comunismo, os herdeiros da herança iluminista, derrotou o Terceiro Reich. Esta visão era hegemônica na cultura de resistência, segundo a qual o antifascismo lutava contra os inimigos da civilização. Embora verdadeira em muitos aspectos, tal perspectiva era, no entanto, muito simplista.

Talvez, ao contrário de nos engajarmos em uma forma ritualista e cooptada de comemoração, este aniversário deveria nos inspirar a realizar uma reavaliação crítica. O Dia da Vitória na Europa celebra a vitória de uma aliança militar em uma guerra mundial que possuía muitas dimensões, incluindo o estabelecimento de uma nova ordem na qual essa coalizão “iluminista” não poderia sobreviver.

No ocidente, os Estados Unidos se tornaram a superpotência dominante; no bloco soviético, a guerra de autodefesa da URSS contra a agressão nazista se transformou em uma ocupação militar e uma nova forma de colonialismo na Europa Oriental. As ideias do liberalismo e do comunismo se tornaram institucionalizadas nas formas do imperialismo e do stalinismo.

Para a esquerda, o fim da Segunda Guerra Mundial foi uma vitória dos movimentos de resistência, que concedeu uma legitimidade democrática aos novos regimes nascidos do colapso do Terceiro Reich. Na maioria dos países da Europa Oriental, a democracia não foi imposta pelos vitoriosos; foi conquistada pela resistência.

Como apontou Claudio Pavone, no entanto, o conceito de resistência possui também muitas dimensões. Ao mesmo tempo, abrangia a totalidade dos movimentos de libertação nacional contra a ocupação alemã, uma guerra civil entre as forças antifascistas e muitos regimes que colaboraram com os ocupantes nazistas, e uma guerra de classes que buscava mudar a sociedade, uma vez que as elites dominantes e a maioria dos componentes do capitalismo europeu tinham envolvimento no fascismo e na colaboração.

Esta guerra de classe venceu na Iugoslávia, que se tornou um país socialista, e criou as premissas para uma esquerda poderosa em muitos outros países, da Itália à França. Também reforçou a resistência contra o franquismo na Espanha e o salazarismo em Portugal.

Ambiguidades do liberalismo

Ainda assim, se olharmos além das fronteiras europeias, o panorama parece muito mais diversificado. Enquanto um aniversário global, o 8 de maio de 1945 assumiu diferentes significados. Enquanto o Dia da Vitória na Europa era celebrado e mitificado como um símbolo de libertação no Ocidente, o mesmo não aconteceu em outros locais.

Na Europa Central e Oriental, este momento de libertação revelou-se efêmero, já que o domínio nazista rapidamente foi substituído por um bloco de regimes autoritários instalados pela URSS. Em muitos países, isso significou a russificação e a opressão nacional.

O Dia da Vitória na Europa também não é um marco para a libertação na África e na Ásia. Na Argélia, a mesma data é o aniversário dos massacres coloniais de Sétif e Guelma, quando o exército francês esmagou as primeiras manifestações pela independência nacional. Este foi o início de uma onda de violência imperialista que se espalhou por toda a África sob o domínio francês, atingindo seu ápice dois anos depois em Madagascar.

Foi uma coalizão governamental em Paris composta por partidos de resistência que foi responsável por essa explosão de violência colonial – uma coalizão que incluía os principais partidos de esquerda: os socialistas e os comunistas. As memórias antifascistas e anticolonialistas nem sempre são harmoniosas e fraternas. O aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial merece uma lembrança crítica, em vez de celebrações apologéticas.

Tradução de Paulo Duque, do Eol

[1] Trata-se do nome oficial da Alemanha Ocidental de 1949 até 1990. (Nota do tradutor)
[2] Nome dado ao parlamento federal da Alemanha. (Nota do tradutor)

Enzo Traverso leciona na Cornell Universidade. Seu livro mais recente é Gaza Faces History.

Publicação original em The Specter of Fascism Is Haunting Europe


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