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Quatro dias na Venezuela


Publicado em: 9 de outubro de 2025

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Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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A destreza pode muito, mas mais a perseverança
Provérbio popular português

 

1.⁠ ⁠Fui convidado pelo Instituto Simon Bolívar para participar de um Colóquio nos passados dias 2, 3 e 4 de outubro em Caracas. Recebi o convite três dias antes da data da viagem, mas foi fácil aceitar. A Venezuela está sob cerco militar dos EUA e, se há um momento em que é preciso dar um passo em frente na solidariedade, é agora. É nas horas mais difíceis que o internacionalismo da esquerda é colocado à prova. Um embargo imperialista que limita ao extremo as relações comerciais do país se impõe há muitos anos, e não foi diminuído nem sequer durante a pandemia. Mas a presença de oito barcos de guerra com mísseis capazes de devastar tanto as principais cidades, como Caracas e Valência, quanto os campos produtores de petróleo, para aterrorizar o país criando uma situação de emergência mudou tudo. A esquerda latino-americana não pode deixar de assumir um compromisso de solidariedade, não importa qual seja a sua opinião sobre o regime político e a orientação do governo de Nicolás Maduro. Trump já declarou, de forma frontal, que Washington já deveria ter garantido o domínio sobre a nação com as maiores reservas de petróleo e gás certificados do mundo, quarta maior de ouro e sétima maior de gás. Trata-se de um compromisso anti-imperialista elementar com um país periférico que defende sua soberania.

2.⁠ ⁠A acusação de que a Venezuela seria um narcoestado, e Maduro a liderança de um suposto Cartel de Los Soles é uma mentira absurda. O respeitado ICG (International Crisis Group), uma ONG Think Tank (Tanque de pensamento) insuspeita de qualquer simpatia pela Venezuela, além de hostil a toda a esquerda, já esclareceu que este Cartel, simplesmente, não existe. A Venezuela não produz cocaína, e não é um destino de passagem de drogas para os EUA, ou qualquer outro país. A criminalização de Nicolás Maduro como narcotraficante, indissociável da caracterização dos cartéis de drogas como organizações terroristas, é uma fraude inventada pelo governo Trump para justificar uma possível agressão militar contra Caracas, que pode estar sendo preparada, também, pelo deslocamento de uma esquadra da Força Aérea para Porto Rico, um protetorado norte-americano que opera como um “porta-aviões” dos EUA no Caribe.

3.⁠ ⁠A Venezuela resiste a uma ofensiva de 1042 sanções econômicas e políticas desde 2014. À excepção da Rússia, que foi excluída do mercado mundial, é o país mais perseguido pelos EUA e União Europeia no mundo. Está sob um bloqueio devastador há uma década: financeiro e comercial, da PDVSA a empresa nacional de petróleo, do ouro, da CITGO (refinaria e distribuidora, subsidiária da PDVSA), dos barcos petroleiros, aeronaves e empresas. Entre 2015/20 a produção de petróleo caiu 90%. Desmoronou de 2.358 milhões de barris/dia para 498 milhões. Todos os ativos da Venezuela foram confiscados. As perdas são estimadas em US$232 bilhões por Caracas. O PIB contraiu para um quinto ou 20% do de 2015. Ocorreu fuga de capitais, desinvestimento, fechamento de empresas, e saída de quadros especializados – médicos, engenheiros, administradores, professores, etc. – formados pelas universidades públicas que são gratuitas. Caíram, previsivelmente, todos os indicadores sociais: saúde, nutrição, etc. A migração é estimada pela Acnur da ONU em 7 milhões de pessoas em um país de 28 milhões, algo acima de 20%. São as consequências de uma guerra econômica impiedosa que teria desestabilizado, social e politicamente, qualquer país da periferia, derrubando o governo, e colocando a ameaça da guerra civil na ordem do dia. É, ingenuamente, imperdoável, comparar a experiência chavista na Venezuela com uma expectativa idealizada do que deveria ser uma transformação democrática socialista. Nas condições concretas colocadas pela luta de classes e pela intervenção imperialista, a comparação que se deve fazer é com o que era a Venezuela antes de Hugo Chávez e o MRV República, depois o PSUV, terem chegado ao poder. A realidade é que a Venezuela, ainda que exausta e esgotada, resistiu. Por quê?

4.⁠ ⁠A explicação repousa em um processo que se iniciou em 1998 com a eleição de Hugo Chávez à presidência, a eleição para uma Assembleia Constituinte em 1999, e deu um salto qualitativo com a mobilização revolucionária das massas populares que derrotou o golpe militar em 2002 em dois dias, radicalizando uma parcela da oficialidade média das Forças Armadas. Desde então, a massa da burguesia se deslocou, abruptamente, para a oposição e foi sendo arrastada, politicamente, pela extrema-direita dirigida por neofascistas como Maria Corina Machado. A imensa maioria da classe média proprietária acomodada e eurodescendente girou para a oposição e, em grande medida, saiu do país. Assim como no Brasil, uma parte da camada dos trabalhadores mais instruídos, que tinham se beneficiado de mobilidade social e um modo de vida de classe média com a bonança da urbanização dinamizada pela renda petroleira, viu suas condições de vida desmoronar, e rompeu com o chavismo. O governo Maduro disputa a hegemonia política, mas tem uma evidente base social entre a maioria do povo, especialmente, os mais pobres, ainda que o país esteja, dramaticamente, fraturado. Sem a compreensão deste contexto não se entende nada, absolutamente, nada sobre a Venezuela.

5.⁠ ⁠Uma parcela majoritária da esquerda brasileira e mundial, tanto entre os partidos mais moderados, quanto até entre as tendências mais radicais, tem uma visão, radicalmente, crítica sobre o regime político da Venezuela, em especial, depois das eleições presidenciais de 2024. Esta avaliação, embora se apoie em excessos autoritários, em especial na repressão de organizações que se deslocaram para uma oposição de esquerda ao governo, é injusta. O regime chavista endureceu por necessidades defensivas. Quem rompeu o respeito pelas liberdades democráticas foram os capitalistas venezuelanos, com o apoio dos EUA, e fizeram de tudo, até o reconhecimento de um presidente autoproclamado e corrupto como Juan Guaidó. A experiência política dos últimos anos confirma que a dominação burguesa nos países periféricos através de regimes democrático-liberais, entre o fim da URSS e a crise mundial de 2008, foi uma excepcionalidade histórica. Na atual etapa do capitalismo, os governos de esquerda, mesmo quando ultra moderados, estão ameaçados, permanentemente, por uma oposição burguesa liderada por partidos neofascistas que apostam na subversão e golpismo. Em qualquer país da America Latina em que um governo de esquerda inicie um programa de reformas estruturais em benefício da maioria do povo, a reação da classe dominante seria igual, ou até pior, do que aconteceu na Venezuela. A rigor, não foi necessário nem que as reformas econômico-sociais tivessem uma dinâmica anticapitalista para que as classes dominantes girassem para a quartelada. O golpe policial-militar na Bolívia em 2019 foi somente mais uma confirmação. Não é um exercício contrafactual diletante concluir que, se diante do golpe institucional de 2016 no Brasil, o governo Dilma Rousseff tivesse se preparado para o confronto, o desfecho teria sido, igualmente, terrível.

6.⁠ ⁠A Venezuela é uma nação, economicamente, pobre e, socialmente, desigual, mas é um país independente, o que é uma anomalia para os EUA. No mundo de hoje, em que se mantém uma ordem política imperialista, na periferia, só países em que triunfaram revoluções sociais, como Cuba, ou que são grandes produtores de petróleo, como o Irã, são independentes. Trata-se de um país com um capitalismo com forte regulação do Estado. Operam na Venezuela importantes companhias capitalistas, algumas muito grandes como a Chevron de petróleo. Os grandes burgueses saíram do país e se estabeleceram em Miami, Madri e, também, em Bogotá, e vão e vêm. Novos grupos burgueses aproveitaram oportunidades de negócios e se fortaleceram. Mas a massa do povo venezuelano amadureceu uma intensa consciência de pertencimento, e têm uma forte identidade nacional como um povo que compartilha um destino comum. O Estado é um poderoso aparelho civil e, sobretudo, militar com Forças Armadas que foram totalmente reestruturadas neste século pela autoridade política do chavismo. O regime político, desde 1998, procurou legitimidade através de eleições em que as forças de oposição puderam participar, até vencendo, às vezes, nas parlamentares, mas foi evoluindo para formas mais rígidas, em função do cerco imperialista liderado pelos EUA.

7.⁠ ⁠Caracas é uma cidade simpática, em um planalto a 900 metros acima do nível do mar, cercada por montanhas muito altas, com os bairros mais populares nas encostas. O aeroporto fica no litoral, em Maiquetia ao lado de La Guaira, a mais ou menos uma hora de distância. A montanha que separa o litoral de Caracas é imponente, e se eleva a dois mil metros de altura, protegendo a cidade dos tufões do Caribe. Dois terços da população da Venezuela é mestiça, um quinto é eurodescendente e uns 10% são negros afrodescendentes do período da escravidão colonial. O impulso para a abolição da escravidão surgiu durante a guerra de independência do Império Espanhol, sob liderança de Simón Bolivar, mas foi oficializada em 1854, portanto, uns trinta e cinco anos antes do Brasil. A vida cotidiana não parou de piorar entre 2015/22, mas desde então veio melhorando. O PIB cresceu 5% em 2021, 12% em 22, 3% em 23, 6,2% em 24 e 7,7% no primeiro semestre deste ano segundo o governo. A maioria da população pelo que vi tem celulares, e faz todas as transações por via eletrônica, dispensando o uso de papel moeda. Os preços de alimentação são dolarizados e parecidos com os do Brasil. Não se vê ninguém, na área central de Caracas onde estive, ou no bairro popular que visitei, abandonado nas ruas mendigando. Não há sinais de miséria. Nas áreas nobres os prédios são semelhantes aos que conhecemos no Brasil. No domingo ocorreu uma corrida de rua de 10km, e o hotel de quatro estrelas ficou cheio com pessoas que se hospedaram revelando que uma parcela das camadas médias prósperas tem disposição de viajar, internamente, e desfrutar da vida.

8.⁠ ⁠Três peculiaridades distinguem a experiência chavista, em comparação, por exemplo, com nossa vivência com governos de coalização liderados pelo PT. A primeira é disputa ideológica de visão de mundo que resultou em uma intensa experiência de politização popular. Trata-se de um processo real. Os venezuelanos nos devem ser um dos povos mais politizados do mundo. Essa tem sido uma das maiores preocupações do governo que utiliza a televisão para programas de educação política, inclusive com debates teóricos. Não é nenhum exagero dizer que existe um nível surpreendente de consciência política de classe diante da burguesia e sobre os perigos da pressão norte-americana. A construção da Tele Sur foi um “canhão” para a apresentação de explicações sobre o significado dos acontecimentos nacionais e internacionais, explicando de forma didática as interpretações, e fazendo a luta ideológica. A segunda foi e permanece sendo o papel de Hugo Chávez como liderança que incorporou a mística de liderança emancipadora de Simón Bolívar na consciência popular. A terceira é o esforço de organização da participação popular.

9. O contato com o povo foi possível somente em dois momentos em uma curta viagem. No sábado de manhã, na Praça Simon Bolívar, antiga Plaza Mayor do período colonial em que surgiu a cidade de Carcas, em frente à Casa Amarela, um palácio presidencial no passado, e hoje um espaço do Ministério de Relações Exteriores, ocorreu uma mobilização das milícias populares que surgiram diante do cerco militar dos EUA. Segundo o governo já são mais de oito milhões que se alistaram na Milícia Nacional Bolivariana. Todos os sábados, desde agosto, algo em torno de umas trezentas pessoas de todas as idades, homens e mulheres, uma maioria jovem e de origem humilde, mas também alguns mais veteranos, se reúnem na Praça com a presença de militares de carreira. Um general fez um discurso nacionalista de defesa da pátria de inspiração, fortemente, anti-imperialista. A outra oportunidade foi no domingo de manhã na visita à Comuna El Panal, em um dos cerros de Caracas. Existem hoje na Venezuela, em graus diferentes de organização um pouco mais de cinco mil Comunas. Uma Comuna é uma comunidade auto-organizada num território que decide o que se deve fazer no espaço em que vivem. Através de assembleias se debatem as propostas, e depois se realizam eleições que decidem. Trata-se de uma experiência de democracia direta e participação popular nos bairros pobres, como nos morros das encostas de Caracas. As Comunas não respondem ao poder das prefeituras. São uma instância de poder popular. Uma ala esquerda do chavismo impulsiona estas experiências com paixão revolucionária.

10.⁠ ⁠O governo Maduro parece estável, um ano após as eleições de 2024, mas o regime não é nem monolítico, muito menos blindado. A crise política provocada pela prisão do presidente da PDVSA Tarek El Aissami foi uma sinalização de tensões e fissuras dentro do partido/movimento que oferece sustentação ao regime, e que expressava uma ala mais neoliberal que, possivelmente, defendia uma concertação com Washington. Tarek renunciou ao cargo de ministro após o início de uma investigação sobre corrupção envolvendo a PDVSA. Em abril de 2024 foi preso, acusado de desviar bilhões de dólares da empresa petrolífera estatal, através de uma conta em um paraíso fiscal do Caribe. Em outra dimensão, merece ser considerado o papel da Chevron na Venezuela marcado por uma relação complexa e, também, volátil. A Chevron atua no país através de joint ventures com a PDVSA. A licença que permite à Chevron operar na Venezuela tem sido renovada e revogada em diversas ocasiões pelo governo dos EUA. As mudanças na licença da Chevron geram grande incerteza para a economia venezuelana, que depende muito das receitas do petróleo.

 


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