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Argentina: Milei entre a derrota em Buenos Aires e o resgate de Washington

A derrota em Buenos Aires rompeu a sensação de invulnerabilidade de Milei. Entre o ajuste brutal, a dependência do resgate de Trump e o crescente mal-estar social, o governo libertário entra em sua fase mais frágil


Publicado em: 25 de setembro de 2025

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Pedro Perucca, de Jacobin América Latina

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Foto: Reprodução/redes sociais

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As eleições legislativas do último 7 de setembro, realizadas na província de Buenos Aires, abriram uma nova etapa na política argentina. A percepção do La Libertad Avanza como uma força invulnerável e capaz de distorcer a tradição política nacional ao seu próprio gosto foi contundentemente desmentida diante de uma derrota de mais de 14 pontos diante das candidaturas unificadas do peronismo, cujos resultados beneficiaram o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, responsável pela decisão de desmembrar a votação, separando-a da eleição nacional. Este resultado incontestável na província que concentra cerca de 40% do eleitorado total do país não apenas transformou o cenário eleitoral no curto prazo, mas também disputou a sensação de excepcionalidade que rodeava o governo de Javier Milei desde seu início.

Apesar de já vir acumulando resultados ruins em várias eleições provinciais até o desastre de Buenos Aires, Milei tinha conseguido manter a percepção generalizada de um tipo de imunidade política, que lhe permitia implementar um brutal ajuste sem arcar com os custos políticos esperados, o habilitando a agir de forma autoritária diante dos poderes do Estado ou a manipular toda a institucionalidade a seu bel-prazer e em benefício próprio. Mas esta “suspensão” das regras políticas convencionais parece ter se rompido na votação da província de Buenos Aires. Desde então, o mileísmo é confrontado com uma paisagem mais realista, em que o conflito social cresce, a economia cambaleia, as pesquisas mostram um progressivo desgaste e os escândalos de corrupção agravam essa percepção de um governo cada vez mais vulnerável.

O voto bonaerense e a fratura social do mileísmo

O jesuíta e cientista político Rodrigo Zarazaga, especialista nas dinâmicas políticas da região metropolitana de Buenos Aires, analisou a nova distribuição de votos neste território: La Libertad Avanza manteve porcentagens altíssimas nos bairros ricos, mas seu desempenho se deteriora à medida que se desce na escala social, chegando a menos de 10% nas vilas (onde obteve resultados surpreendentes na eleição prévia). O peronismo, no entanto, reproduziu sua morfologia histórica: fraco nos setores altos, forte nos médios e muito forte nos populares.

O novo fato é que o fenômeno de Milei como “estrela pop” (como definiu recentemente César González), que em 2023 conseguiu penetrar entre os trabalhadores e as classes médias baixas, claramente perdeu seu apoio nesses setores, enquanto previsivelmente o reforçou entre os setores mais acomodados, em parte por conta da captação de um setor histórico de eleitores do PRO [Propuesta Republicana, partido conservador]. Assim, o fenômeno de uma “direita popular”, que poderia atrair os de baixo, está se aproximando cada vez mais de uma direita clássica, ancorada nos mais ricos e nos eleitores de bairros abastados.

Essa agitação social é central para compreender a nova dinâmica política. A derrota em Buenos Aires foi a expressão eleitoral de um mal-estar que já vinha se acumulando nas ruas: conflitos universitários, reivindicações de saúde e invalidez, deterioração salarial e de aposentadoria. A promessa mileísta de que “o pior já passou” não encontra correlação com a experiência cotidiana de milhões que sofrem a recessão, o crescente desemprego e a inflação.

Nesse contexto, o anúncio em cadeia nacional posterior à derrota eleitoral, em que foi apresentado o projeto de orçamento para 2026, assumiu um tom inédito. Milei tentou mostrar-se moderado, quase sóbrio, reconhecendo implicitamente que os ajustes econômicos não são automaticamente compreendidos ou aceitos pela população. Aplicando a contabilidade criativa que caracteriza seu governo, antecipou reforços orçamentários para as universidades, aposentadorias, saúde e para pessoas com deficiência (que uma análise séria logo demonstrou que, na realidade, implicam em novos recordes). Porém, o mais significativo foi a mudança no tom político: em vez de difamar a “casta imunda”, falou em trabalhar lado a lado com os legisladores e governadores (um dia antes, tinha reabilitado o degradado Ministério do Interior, nomeando Lisandro Catalán como titular). Indiretamente admitiu que suas pretensões de ser autocrata que não negocia com ninguém já não se sustentam mais. A retórica da excepcionalidade deu lugar a uma intenção forçada de normalização política.

Fragilidade econômica e esperança do resgate estadunidense

Por trás dessa mudança discursiva, se evidencia a fragilidade de um esquema econômico que parece à beira do desmoronamento. O plano anti-inflação do governo se fundamenta em um dólar artificialmente desvalorizado e nas taxas de juros exorbitantes que asfixiam qualquer iniciativa produtiva. O Banco Central viu suas reservas se esvaziando e os credores começaram a antecipar que os dólares disponíveis seriam usados para conter a fuga cambial e não para pagar os vencimentos de 2026. Assim, o risco-país saltou de 800 para 1.500 pontos em questão de dias. Diante da disparada da cotação do dólar, que chegou a superar os 1.500 pesos, o governo optou por desperdiçar mais de um bilhão de dólares de reservas em três rodadas de câmbio para tentar contê-lo. O discurso contraproducente do Ministro da Economia Luis Caputo (“Defenderemos a taxa cambial até o último dólar”) disparou todos os alarmes: esse último dólar havia sido emprestado pelo FMI e está prestes a evaporar. Ficou evidente o paralelo com os últimos meses do macrismo, quando a fuga de capitais devorava cada desembolso do fundo.

Nesse momento dramático, como se fosse um filme de suspense, apareceu a intervenção decisiva do governo dos Estados Unidos. Scott Bessent, secretário do Tesouro de Donald Trump, declarou que a Argentina é um “aliado de importância sistêmica” e que Washington está disposto a fazer “todo o necessário” para sustentá-la com linhas de swap [1], compra de dívidas ou apoio direto. A mensagem teve efeitos imediatos: houve uma queda parcial do dólar paralelo e do risco-país, além de uma recuperação nos preços dos títulos e ações. Para além de sua eficácia no mercado, a notícia revelou algo mais profundo: o resgate de Milei não será conduzido pelo FMI, mas diretamente pelo Tesouro estadunidense, com um respaldo político explícito de Trump.

Os precedentes são escassos e reveladores. Em 1994, Bill Clinton enviou 20 bilhões de dólares para resgatar o México durante a crise da “tequila” – quando o país era o principal sócio comercial dos Estados Unidos na NAFTA e em meio a uma crise financeira global – e, em 2002, concedeu assistência ao Uruguai. Hoje, Trump se dispôs a resgatar Milei, um dos poucos governos incondicionalmente aliados com Washington (e Israel) em uma região estratégica majoritariamente governada por forças progressistas.

O gesto tem um sentido estratégico evidente. A partir da perspectiva de Trump, a América Latina parece dominada por governos considerados hostis a Washington: Sheinbaum no México, Lula no Brasil, Petro na Colômbia, Boric no Chile. Nesse mapa, a Argentina se torna uma exceção: um país de peso governado por um presidente que não teve dúvidas para se alinhar a Trump desde o início de sua carreira, até mesmo quando era oposição. O respaldo financeiro persegue dois objetivos centrais para os Estados Unidos: evitar uma crise na taxa de câmbio que poderia corroer a Milei antes das eleições de outubro e bloquear um eventual retorno do kirchnerismo em 2027, interpretado como um sinal de maior aproximação com a China. É também a partir daí que surge a obsessão estadunidense pelo controle de setores estratégicos, como a mineração de terras raras, os insumos decisivos para a indústria tecnológica e militar na disputa hegemônica com Pequim.

Na terça, 23 de setembro, o presidente argentino se reuniu com Trump, em uma situação que não poderia ser mais desigual. Um deles comparece à reunião implorando por um empréstimo de emergência que lhe dê algum fôlego para as eleições cruciais de meio de mandato em outubro, e o outro sabe que pode pedir o que quiser como contrapartida e que nada lhe será negado: fala-se de imposições econômicas ainda mais duras, de entregar patrimônio nacional, da instalação de uma base militar estadunidense na Terra do Fogo. As condições do resgate serão conhecidas nos próximos dias, mas não existem dúvidas de que não serão baratas.

Resultados e perspectivas do mileísmo

A nota etapa do mileísmo fortalece suas contradições. No plano interno, o governo busca disciplinar a sociedade com um ajuste que corrói sua base social e o pressiona para um eleitorado mais reduzido e classista, enquanto que no plano externo sobrevive devido à tutela de Washington, garantindo divisas em troca de manter o alinhamento automático e, possivelmente, também de aplicar medidas econômicas ainda mais regressivas. O contraste é eloquente: enquanto perde votos entre os trabalhadores e os setores populares, sai fortalecido como um peão da estratégia imperialista estadunidense na região. O que se pretendeu ser apresentado desde seu início como um projeto de “liberdade de mercado” acabou sendo traduzido em uma crescente dependência de um estrangeiro selvagem. O “especialista em crescimento com ou sem dinheiro” corre o risco de ficar sem divisas, sem crescimento, sem base popular e com o futuro de sua experiência política ligado a uma providencial ajuda financeira do Tesouro estadunidense, cujos custos ainda são desconhecidos.

Nesse marco, as eleições de outubro aparecem hoje como uma moeda girando no ar. Não é impossível que o governo recupere conjunturalmente algumas possibilidades devido ao oxigênio que Washington fornece e a uma série de manobras fiscais de curto prazo. Mas a situação econômica geral não melhorará em um mês; a percepção popular da degradação vital segue crescendo, enquanto as esperanças de uma recuperação a curto prazo se esgotam. Além disso, os escândalos de corrupção em torno do casal presidencial, que também contribuíram para a derrota eleitoral em Buenos Aires, continuam se multiplicando e impactando profundamente um dos eixos retóricos do governo: sua autoproclamada diferença em relação à “casta” política tradicional.

Porém, o que está em jogo vai mais além do resultado imediato. A derrota em Buenos Aires já mostrou que a sociedade argentina não está disposta a aceitar um ajuste ilimitado sem resistência, e o possível resgate de Trump deixou claro até que ponto o projeto de Milei depende de uma tutela imperialista que não busca apenas estabilizar um aliado, mas evitar o retorno de qualquer opção vinculada a um horizonte progressista ou de moderada autonomia. Nesse cenário, define-se o futuro próximo: veremos se o mileísmo conseguirá superar seu pior momento político e se irá se recompor temporalmente com a ajuda externa in extremis para continuar tentando impor uma disciplina social duradoura ou se a derrota em Buenos Aires foi o início de uma recomposição popular para se iniciar uma nova alternativa. Em qualquer caso, o que se julga é muito mais do que uma eleição: é a possibilidade de que um experimento reacionário, debilitado em nível local, se prolongue como engrenagem da estratégia imperialista na região. Teremos momentos interessantes pela frente.

[1] Trata-se de acordos temporários de troca de moedas entre bancos centrais. (Nota do tradutor)

Pedro Perucca é sociólogo, jornalista e editor-assistente da Jacobin América Latina.
Texto original em Milei entre la derrota bonaerense y el salvataje de Washington
Tradução: Paulo Duque, do Esquerda Online


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