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Autonomia do Banco Central: a brecha que pode mudar tudo
Não é apenas uma chance de corrigir uma “falha técnica”, é uma oportunidade de recolocar no centro a pergunta: quem decide os rumos da economia?
Publicado em: 8 de setembro de 2025
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Há momentos na vida política que se parecem com fendas num muro de concreto. Elas não aparecem com frequência. Quando surgem, duram pouco. E, se não forem aproveitadas, fecham-se de novo, condenando gerações inteiras a caminhar diante do mesmo obstáculo. A autonomia do Banco Central, celebrada como a maior vitória neoliberal das últimas décadas, é uma dessas muralhas. Agora, por ironia da história, pintou a chance de rachar essa estrutura.
O curioso é que não foi a esquerda, nem o governo eleito em 2022, quem abriu a fissura. Quem deu a primeira martelada foi o próprio Centrão, movido não por convicções democráticas ou por qualquer projeto de soberania, mas por sua velha especialidade: negócios bilionários, disputas internas, rearranjos de poder. O caso que envolve a compra do Banco Master pelo BRB, com atuação questionada do diretor do BC, tornou-se o pretexto. O que está em jogo, porém, ultrapassa em muito essa negociação.
A autonomia do Banco Central foi erguida como se fosse cláusula pétrea. Não é. Mas o discurso que a sustenta é poderoso: o de que o país estaria finalmente protegido da política, como se “a política” fosse uma doença e a “técnica” uma cura milagrosa. Foi vendida como modernidade institucional, blindagem contra populismos, maturidade de uma economia que se queria cosmopolita. Na prática, tornou-se uma camisa de força.
Pensemos nessa autonomia como um contrato escrito em pedra. Um acordo que dizia mais ou menos o seguinte: “as decisões fundamentais sobre a vida econômica brasileira — juros, crédito, endividamento, moeda — não pertencem mais à sociedade. Elas foram entregues a um condomínio restrito, blindado de pressões populares e eleitorais.”
Durante anos, esse contrato foi aceito como natural. Era repetido por economistas nos jornais, defendido como inevitável nas universidades, transformado em senso comum entre jornalistas e investidores. A autonomia se tornou, assim, um mito. E como todo mito, quanto mais distante da vida real, mais sólido parecia.
Só que até os contratos de pedra racham. E agora estamos diante da rachadura. O Centrão, em sua pressa de abrir caminho para interesses imediatos, acabou esbarrando na pedra e arrancando um pedaço. O que parecia indestrutível de repente se revela provisório.
A leitura mais lúcida — e aqui sigo a linha de muitos analistas críticos — é que uma oportunidade como essa talvez só volte a aparecer em cinquenta anos. É difícil exagerar o que isso significa. Em política, janelas históricas são raras e custam a se abrir. Há décadas, os neoliberais conseguiram o que parecia impossível: arrancar da soberania popular uma das principais ferramentas de governo. Agora, paradoxalmente, é a própria engrenagem fisiológica do sistema político que cria uma brecha para reverter esse movimento.
Mas a história não premia os distraídos. O risco maior é que essa chance se perca em meio à letargia governamental, às hesitações de sempre, às negociações que empurram tudo para o futuro. É possível que daqui a alguns meses vejamos, mais uma vez, as mesmas vozes dizendo que “não há o que fazer”, que “o Congresso não deixa”, que “não existe correlação de forças”.
O ponto é: a correlação de forças não surge do nada. Ela pode ser construída. E uma fissura aberta por interesses particulares pode se transformar em abertura política se houver mobilização, pressão e disputa de sentido.
Muitas vezes, o debate político brasileiro se concentra em personagens, crises imediatas e escândalos do dia. Mas o que está em jogo agora é de outra ordem. Rever a autonomia do Banco Central não é apenas mexer em um arranjo institucional: é disputar quem governa de fato a economia do país.
Enquanto discutimos episódios que ocupam a superfície da cena política, a autonomia do BC segue moldando silenciosamente a vida de milhões de brasileiros. É ali que se decide se a economia cresce ou trava, se o crédito circula ou seca, se a população terá acesso a empregos e renda ou se viverá sob a tutela permanente da austeridade.
A fissura aberta hoje não é, portanto, apenas uma chance de corrigir uma “falha técnica”. É uma rara oportunidade de recolocar no centro a pergunta essencial: quem tem o direito de decidir os rumos da economia? Um punhado de tecnocratas blindados pelo mito da neutralidade, ou a sociedade, por meio de suas escolhas políticas e democráticas?
Essa é a dimensão estratégica do momento. Se deixarmos a brecha se fechar, o Brasil continuará condenado a viver sob um regime em que os grandes números da economia estão fora de alcance do debate público. Aproveitar a chance significa, justamente, romper essa barreira.
Há algo quase filosófico nessa discussão. O neoliberalismo se alimenta da ideia de que não há alternativa. “Não existe alternativa”, repetia Thatcher, e o mundo acreditou. A autonomia do BC é uma expressão desse dogma: retirar da esfera do possível algo que deveria ser, por excelência, objeto de disputa democrática.
Quando uma brecha se abre, o que acontece é exatamente o contrário: a história mostra que alternativas existem. O muro não era tão sólido. A pedra não era tão pétrea. A política volta a respirar onde diziam que ela estava proibida de entrar.
A oportunidade, então, não é apenas técnica ou legislativa. É simbólica. É mostrar que aquilo que parecia eterno pode ser desmontado. Que nenhuma camisa de força é definitiva. Que até mesmo o mais alto altar neoliberal pode desmoronar quando a vida real bate à porta.
O grande desafio, porém, é que essa brecha não se transformará em mudança se depender apenas do governo. A tendência, como já se viu em tantas outras ocasiões, é o Planalto hesitar, negociar, adiar. Para que a oportunidade não se perca, é preciso que a pressão venha de fora.
É preciso pautar o governo. Transformar essa questão em assunto popular. Torná-la compreensível e urgente como foi a luta contra o imposto de renda sobre assalariados. Só assim a fissura aberta pela disputa entre bancos pode se alargar em porta histórica para a soberania.
“Pintou a chance” não é só uma frase otimista. É um aviso. Se o momento passar, se a esquerda não souber transformar essa fissura em projeto, se o governo não for pautado a agir, estaremos diante de mais um daqueles capítulos em que a história nos oferece uma saída e escolhemos a repetição.
A autonomia do Banco Central não é eterna. Foi uma vitória política dos neoliberais, construída com esforço e discurso. Pode ser desfeita. Mas só será desfeita se houver coragem de transformar ironia em ação, fissura em brecha, brecha em caminho. O Brasil está diante dessa chance. A questão é: o que vamos fazer dela?
Márcio Pereira Cabral é psicanalista e professor mestre pela UFRGS, diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política e do Instituto E Se Fosse Você?
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