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Os monstros do interregno da crise global
Entre o capitalismo em declínio, expresso nas guerras e no neofascismo, e a esquerda convocando para uma reconstrução, o povo resiste
Publicado em: 2 de setembro de 2025
A famosa citação do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci parece ter sido escrita para o momento que a humanidade está passando agora: “O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, os monstros surgem” [1].
O mundo está passando por uma crise civilizacional no qual a ordem capitalista neoliberal, embora mortalmente ferida, continua a impor uma lógica predatória, aquela do uso da força e do ressurgimento do fascismo, enquanto as alternativas emancipatórias falharam em se consolidar. Nesse vácuo, os monstros proliferam: guerras e tentativas de recolonização, crise climática, fome estrutural, colapso do multilateralismo e do direito internacional colocados à serviço das potências mundiais.
O capitalismo e sua “crise terminal”
De acordo com o teólogo brasileiro Leonardo Boff, o sistema capitalista globalizado tem mostrado sinais terminais [2] por mais de uma década: a obscena concentração de riqueza, a financeirização parasitária [3], as catástrofes planetárias e a precariedade da vida têm levado a essa crise, mas não foram suficientemente fortes para definitivamente enterrar este sistema. O imperialismo ocidental – hoje personificado pela OTAN e em sua pressão pelo aumento dos orçamentos militares dos países membros, pela economia de guerra dos EUA, especialmente contra a China, e pelas sanções da União Europeia contra a Rússia – não pode mais ostentar como antes, mas resiste em desaparecer. Seu declínio é evidente na inflação global, o retorno da geopolítica da Guerra Fria e o surgimento dos neofascismos como “soluções” fictícias para a desigualdade.
A esquerda também está em crise?
Enquanto o capitalismo parece estar se movendo em direção à sua decomposição, a esquerda não está preparada para articular um projeto hegemônico. As experiências progressistas na América Latina enfrentam um cerco econômico, bloqueios, medidas coercitivas unilaterais e judicialização, divisões e desmobilização popular. A social-democracia está se rendendo ao neoliberalismo e as alternativas anticapitalistas ainda carecem de força global. A fragmentação e o que parece ser uma falta de estratégias diante das novas formas de dominação (tais como a exclusão digital, o corporativismo governamental e o domínio das Big Techs [5]) enfraquecem a possibilidade do surgimento de uma nova ordem.
Os monstros do “interregno”
Em seu limbo histórico, as crises estão se multiplicando:
Guerras e neocolonialismo: Ucrânia, Palestina, Sudão, Sahel, conflitos em que recursos
são saqueados sob a retórica da “defesa da democracia” ou simplesmente apostando no caos e no desaparecimento dos Estados.
Catástrofe ambiental: o capitalismo transformou a natureza em uma “mercadoria” e, agora, o planeta está sofrendo incontáveis incêndios, inundações e desertificação.
Fome e desigualdade: 1% possui mais do que 99%, enquanto a ONU relata que 735 milhões de pessoas sofrem de fome crônica, bilionários quebram recordes nos lucros e ganham o apoio das corporações midiáticas e políticos.
O fracasso do direito internacional: o Tribunal Penal Internacional processa africanos, mas ignora os crimes de Israel e dos EUA, enquanto o Conselho de Segurança [da ONU] se tornou um clube de veto. Além disso, a reforma das Nações Unidas se tornou uma questão central para o Sul Global, como se viu na última reunião do BRICS no Rio de Janeiro, Brasil.
Criminalização dos imigrantes: Nos primeiros seis meses de seu segundo mandato, o Presidente Donald Trump lançou uma forte campanha pública contra a presença de imigrantes, especialmente latinoamericanos, nos Estados Unidos. Esta campanha também tem servido como fundamento para uma agressiva política anti-imigração, que vai desde a revogação de programas como o Humanitarian Parole, o cancelamento do Temporary Protected Status, as deportações de massa, a separação de famílias e a remoção de bebês de seus pais, até o estabelecimento de um sistema prisional internacional altamente sofisticado que viola os direitos humanos.
No entanto, esta política não é exclusiva, nem foi iniciada pelo governo de Trump, conforme observado no testemunho de Gladys Caricote, uma das mulheres venezuelanas deportadas dos Estados Unidos para a Venezuela. Em seu depoimento, ela detalha a política discriminatória dos governos dos EUA após ter sido mantida em um centro de detenção de imigrantes por mais de 10 meses, o que significa que foi durante o governo de Joe Bidenm o 46º Presidente dos Estados Unidos (do Partido Democrata, entre 2021-2025), quando essa política restritiva em relação aos migrantes da Venezuela foi reforçada.
Existe uma saída?
O que é necessário para construir alternativas? Como o Sul Global pode contribuir? Faz sentido criar novas formas de democracia, organização popular e internacionalismo de classe?
A cúpula do BRICS realizada no Rio de Janeiro, Brasil, em 6 e 7 de julho foi um evento central, já que representou um contrapeso à ordem econômica e política dominada pelo ocidente. Da mesma forma, sua expansão progressiva (em 2023-2024, os BRICS aceitaram novos membros, como o Egito, a Etiópia, o Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos), apesar dos diferentes critérios entre os países sobre essa questão, significou maior representatividade para o Sul Global, ainda que não sem tensões, como a oposição do Brasil à entrada da Venezuela.
Esta cúpula, que emitiu uma declaração de 126 pontos, foi rapidamente respondida pelo Presidente Donald Trump, que descreveu a proposta de desdolarizar as transações econômicas do grupo, promovendo pagamentos em moedas locais e mecanismos como o Novo Banco de Desenvolvimento, como uma ameaça aos Estados Unidos e ameaçou aumentar as tarifas sobre os países que apoiam esta ação.
Outro evento importante, destacado na declaração final desta reunião, foi a sessão do Conselho Civil, que os movimentos presentes no Brasil chamaram de “Conselho Popular do BRICS”, promovido na reunião do ano passado em Kazan, na Rússia, como um Fórum Civil, apesar de não ser institucionalizado em nenhuma instância do bloco político. No entanto, o potencial desse Conselho, não apenas para os próprios países do BRICS, mas também para nossos países no Sul, está resumido na leitura da declaração consensual do Conselho por João Pedro Stedile, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e da Coordenação Política dos Movimento ALBA, que resumiu que “a participação formal do Conselho Popular é histórica porque consolida um método. Todos concordam que os problemas enfrentados pelos povos não serão resolvidos por iniciativas governamentais isoladas”. No entanto, todos parecem ter claro que não será um processo fácil, dado que a rotatividade das presidências do grupo determinam as abordagens.
No próximo ano, a presidência será da Índia, que pode ter uma visão diferente do papel das organizações populares no BRICS, mas o importante é que já é uma decisão das organizações populares acompanhar esta instância geopolítica como alternativa às crises já levantadas, sendo este outro modo no qual os movimentos e organizações populares estão enfrentando os monstros que surgiram nesta etapa, bem como também fizeram com ações de massa contra os ataques ao Irã, a violência extrema de Israel em Gaza e em toda a Palestina, o sequestro de imigrantes, em defesa da soberania dos países do Sahel etc.
[1] O termo “interregno” indica o período de crise em que a ordem hegemônica antiga se desintegra enquanto uma nova hegemonia ainda não se consolidou, resultando em instabilidade social e política. Também pode ser traduzido como “período de transição”. (Nota do tradutor)
“A crise consiste propriamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: nesse interregno ocorrem os fenômenos morbosos mais variados” (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: obra completa. Rio de Janeiro: IGS-Brasil, 2024. p. 343).
Traduzido de The monsters of the global crisis interregnum, por Paulo Duque, do Esquerda Online
O artigo acima representa a opinião do autor e não necessariamente corresponde às opiniões do EOL. Somos um portal aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista
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