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Lições da Bolívia

Também contribuiu para o quadro atual as limitações da estratégia do MAS. Apesar de saldos sociais importantes dos progressistas, durante duas décadas, não se logrou sair da armadilha do desenvolvimentismo primário-exportador.


Publicado em: 29 de agosto de 2025

Mundo

Chantal Liégeois e David Cavalcante, da redação

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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O primeiro turno das eleições bolivianas realizadas no domingo, 17 de agosto, confirmou o anunciado fiasco do partido governante, o Movimento ao Socialismo-MAS, após permanecer duas décadas no poder.

Os resultados da eleição presidencial

De acordo com o Tribunal Supremo Eleitoral, com 100% das atas apuradas, sem mesas anuladas, o resultado apresenta os seguintes números: 

  1. Rodrigo Paz Pereira (Partido Democrata Cristiano- PDC): 32,06%; 
  2. Jorge Tuto Quiroga (Aliança Libre): 26,7%; 
  3. Samuel Doria Medina (Unidad Nacional): 19,7 %; 
  4. Andrônico Rodriguez (Aliança Popular): 8,5%; 
  5. Manfred Reyes (APB- Sumate): 6,75 %; 
  6. Eduardo del Castillo) Movimento ao Socialismo – MAS): 3,17%; 
  7. Jhonny Fernandez (La Fuerza del pueblo): 1,67 %; 
  8. Pavel Aracena (Libertad y Progreso- ADN): 1,45%

Votos nulos: 19, 38% e Votos brancos; 2,45%.

A Bolívia tem cerca de 11,3 milhões de habitantes. O comparecimento foi de 6.900.518 de votantes, alcançando 86.95 % do universo de 7.936.515 milhões de eleitores habilitados, segundo o TSE.

A contagem dos votos revelou um resultado surpreendente, já que a média das pesquisas apontava para um empate entre Tuto Quiroga e Samuel Doria Medina, na disputa pelo primeiro lugar e indicava Rodrigo Paz em terceiro ou quarto lugar, mas ele conseguiu inverter a ordem.

Rodrigo Paz ganhou na região andina do país, nos estados regionais de La Paz, Oruro, Potosí, tradicionalmente bases eleitorais do MAS. Jorge Tuto Quiroga venceu nas regiões dos vales e planícies, a leste do país, nos estados regionais de Chuquisaca, Cochabamba, Santa Cruz e Pando. Samuel Doria Medina que saiu do estado regional de Tarija, produtor tradicional de hidrocarbonetos, e em Beni, terras dominadas pela burguesia agrícola e las grandes propiedades rurales, ficou em 3º lugar. 

O grande fato desta eleição foi a derrota histórica do Movimento ao Socialismo (MAS), que já estava dividido em três frações. Duas candidaturas da esquerda disputaram as bases remanescentes do MAS: o senador Andrônico Rodríguez (ex-MAS) que ficou em quarto lugar, com 8% , e o candidato oficial do partido, Eduardo del Castillo, que ficou em sexto lugar, com apenas 3%.  Evo Morales desgraçadamente apelou para o voto nulo, que somados com brancos, alcançaram 22 %. 

Andrónico Rodríguez (Aliança Popular) foi considerado um traidor por Evo Morales e seus seguidores, por ter se distanciado e criticado as tentativas infrutíferas do ex-presidente de se candidatar. Atacado pelo MAS oficialista (fração arcista) e abandonado pelos produtores de coca (fração evista), a candidatura de Andrónico desmoronou. No dia das eleições, houve uma explosão no local onde ele votou, na região do Trópico de Cochabamba, bastião político e sindical do ex-presidente Evo Morales, controlada pelos produtores de coca e o candidato foi alvo de pedradas e vaias após votar.  

A representação parlamentar

Os resultados preliminares refletem uma virada histórica à direita, no legislativo boliviano. A Democracia Cristiana (PDC) de Rodrigo Paz é o partido mais votado nas duas casas, seguido pela Aliança Libre de Tuto Quiroga. 

No Senado (36 cadeiras), o PDC obteve 16 representantes, a Aliança Livre de Tuto Quiroga 12, a Unidade (Doria Medina) 7 e Manfred Reyes 1. O MAS, que controlava o Senado com 21 senadores, não conseguiu nenhuma representação para o próximo mandato.

Na Câmara de deputados, o PDC (Rodrigo Paz) lidera com 49 deputados e Aliança Livre (Tuto) com 39 deputados. A Câmara dos Deputados tem 130 cadeiras, sendo necessário 66 cadeiras para uma maioria absoluta e 87 para dois terços. Nenhuma força atingiu esses limites sozinha, o que obrigará a negociações.

O Movimento ao Socialismo contou, na última legislatura, com 21 senadores e 75 deputados, ou seja, uma hegemonia de quase 60% no Parlamento. Nesta legislatura, o MAS terá apenas 2 parlamentares.  

Entender a derrota do MAS

Segundo Pablo Stefanoni, para explicar o tombo do partido do governo “três fatores se combinaram: uma guerra interna no MAS, o fim da liderança incontestável de Evo Morales à frente da esquerda boliviana e uma terrível crise econômica. A guerra interna foi brutal e contribuiu para a autodestruição do movimento.”

A esses elementos, podemos acrescentar um enorme desgaste político do MAS, após 20 anos no poder, que provocou um repúdio generalizado da população.  Uma implosão, que significa o fim do maior partido da Bolívia que conduziu mudanças institucionais e econômicas de importância, além de uma inédita e histórica participação da população indígena, majoritária no país e, até então, na vida política do país durante duas décadas. 

A capacidade de mobilização de Evo Morales, apesar de não ser candidato, foi evidenciada nos votos nulos e brancos que alcançaram 22%. Nas eleições anteriores o voto nulo foi de 3,5% e o voto branco 1,4%. No estado regional de Cochabamba, o voto nulo e branco superou todas as candidaturas, com impressionantes 35%.

As candidaturas do segundo turno

O segundo turno será realizado em 19 de outubro, está previsto na nova Constituição Política do Estado Plurinacional de 2009 e será aplicado pela primeira vez em 2025, pois nas eleições anteriores o MAS sempre venceu o primeiro turno com mais de 50% dos votos. Se enfrentarão dois candidatos oriundos do campo da direita, Rodrigo Paz Pereira e Jorge “Tuto” Quiroga. A campanha e a publicação das pesquisas começarão em 31 de agosto. 

Rodrigo Paz Pereira  (57 anos), filho e herdeiro político do ex-presidente Jaime Paz Zamora (1989-1993), que era de centro-esquerda antes de se aliar a Hugo Banzer (ex-ditador na década de 1970). 

Foi deputado nacional, vereador e prefeito da cidade de Tarija (2015-2020). Foi Senador pela Comunidade Cidadã liderada por Carlos Mesa (2020-2025).  Seu candidato a Vice-Presidente é Edmand Lara, ex Capitão da Polícia Boliviana (2007-2023)

Paz é considerado como sendo de centro-direita e se autodefine como de “mudança e renovação”. Seu plano de governo, partido Democrata Cristão, tem três eixos principais:  a) um suposto modelo de redistribuição do orçamento nacional visando uma reforma fiscal para diminuir gastos públicos com uma divisão dos royalties para que metade seja dotada ao governo central e a outra metade aos governos subnacionais; b) o plano de “capitalismo para todos”: um programa de créditos acessíveis e facilidades tributárias para impulsionar a economia formal e eliminar barreiras para a importação. Por fim, o terceiro eixo é a reforma judicial e a famosa e oportunista crítica contra a corrupção.

O seu candidato a vice-presidente, Edman Lara é um ex-policial que propõe uma reforma da Polícia, com uma “descentralização” do comando policial para aumentar o poder das oligarquias regionais com as autoridades departamentais e municipais. 

Jorge Tuto Quiroga (65 anos) foi Vice-presidente de Hugo Banzer de 1997 a 2001 e Presidente, entre 2001 e 2002, após a morte do mesmo Banzer que foi o ditador na Bolívia na década de 1970. Durante sua gestão, promoveu acordos com os Estados Unidos para sua ineficaz “guerra às drogas” e permitiu a privatização da água em Cochabamba que desembocou na conhecida Guerra da Água (2000). .

Quiroga integrou o Fundo Monetário Internacional e atou bons contatos com o imperialismo estadunidense. Também concorreu três vezes às eleições presidenciais (em 2005, com 28,6% contra Evo), em 2014 (9%), em 2020 (se retirou da disputa). Queiroga também chegou a participar do apoio ao Golpe de 2019 e foi porta-voz exterior do governo golpista de Jeanine.

O anúncio de Trump de retomar a suposta guerra contra o narcotráfico, no continente latino-americano, com apoio de militares, vai na mesma linha de Quiroga, que igualmente anunciou como promessa de campanha colocar Evo na cadeia. 

O eixo do programa anunciado por Quiroga é a “redução” do Estado e o apoio aos investimentos estrangeiros para a exploração de gás e petróleo e lítio. A Bolívia tem as maiores reservas globais deste minério. A reforma do poder judiciário e também da Constituição de 2009 que garantiu a soberania do Estado sobre os recursos naturais. 

Independentemente de quem vença no segundo turno, haverá uma onda de ataques aos direitos sociais e às conquistas sociais e democráticas das últimas duas décadas, bem como uma desvalorização da moeda, sob o pretexto de conter a inflação galopante e a crise econômica causada pela falta de dólares e diesel. Outro tema central será uma reforma do sistema judiciário e da Constituição de 2009 para anular ou limitar a propriedade estatal dos recursos naturais, entre elas as riquezas minerais e energéticas (gás, lítio, ouro, prata). 

Mas ao final, o grande perdedor é, em primeiro lugar, o povo trabalhador e os movimentos sociais bolivianos que construíram e acompanharam o MAS que foi a representação política das maiorias nacionais e dos povos originários da Bolívia. 

O resultado poderá se assemelhar à situação que viveu o país em 1985, com a derrota histórica da UDP (Uniao Democrática e Popular), uma primeira experiência de Frente Popular depois de 18 anos de ditadura, e que foi derrotada nas urnas abrindo o período de políticas neoliberais que se estendeu depois por 20 anos (1985-2005). Esperamos que haja reservas das bases e organizações sociais para enfrentar com lutas sociais o próximo governo.  

As lições para a esquerda latino-americana.

Os últimos meses foram marcados por vigorosas agitações políticas e conflitos sociais devido ao desgaste do governo e à crise econômica. Para ter algum protagonismo capaz de impedir os grandes ataques que virão, a esquerda fragmentada não tem nenhuma chance diante da ofensiva econômica de Trump, do avanço da extrema direita mundial e do retorno das políticas neoliberais na América Latina.

Também contribuiu para o quadro atual as limitações da estratégia do MAS. Apesar de saldos sociais importantes dos progressistas, durante duas décadas, não se logrou sair da armadilha do desenvolvimentismo primário-exportador. 

O programa do MAS não rompeu com o capital internacional e foi incapaz de aumentar um processo de industrialização sustentável ou ir além de programas sociais minimalistas, destinados a administrar a pobreza. Não buscaram superar as desigualdades estruturais nem garantiram direitos sociais universais permanentes, o que só é possível superando a propriedade privada dos grandes meios de produção. 

Reconstruir os movimentos sociais desiludidos e desarticulados, forjar novas lideranças e reconstruir instrumentos políticos fiéis aos interesses das maiorias nacionais não será um processo fácil nem de curto prazo. Mas o povo boliviano, colonizado, espoliado e subjugado desde a colonização espanhola, recorrentemente tem demonstrado capacidade de resistência e sempre revelou forças gigantes para defender seus os direitos conquistados e os recursos naturais que brotam de seu território.

Nestes tempos de avanço da extrema-direita no mundo, há uma lição a aprender: a esquerda desarticulada e fracionada não tem qualquer possibilidade de combater a direita. Os interesses e os projetos pessoais devem ser submetidos aos projetos coletivos. Buscar a renovação geracional das direções deve ser uma prática constante. Combater o caudilhismo e controlar as lideranças também faz parte da luta por uma sociedade igualitária. 

Referencias:
PDC y Libre dominan la Cámara de Diputados pero requieren pactos
Resumen de los resultados de las elecciones presidenciales en Bolivia 2025 este domingo 17 de agosto
Resultados de las elecciones en Bolivia: quién gano en cada departamento del país


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