colunistas
O manicômio enquanto instituição patriarcal
Publicado em: 16 de agosto de 2025
Colunistas
Saúde Pública resiste
Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;
Colunistas
Saúde Pública resiste
Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;
Divulgação/Polícia Civil
Nesta sexta-feira, dia 15 de agosto de 2025, foi noticiado no Jornal Nacional, o caso de uma mulher sequestrada e aprisionada em uma comunidade terapêutica em Goiânia, Goiás. Queremos aproveitar este caso para argumentar que o manicômio é machista, por reproduzir a estrutura patriarcal de nossa sociedade. Certa feita, Frantz Fanon (2020 [1952]), que está completando 100 anos de existência, reproduziu a seguinte afirmação: “Se você quiser se aprofundar na estrutura de determinado país, é preciso visitar seus hospitais psiquiátricos”. Adicionamos que o mesmo pode ser dito das instituições prisionais, socioeducativas (especialmente as medidas de internação), entre outras. Ora, e uma destas estruturas é o patriarcado.
Rememoramos um caso ocorrido na Inglaterra em meados do século XIX e que foi analisado e denunciado por Karl Marx (2023 [1858]). O chamado “escândalo Bulwer” foi o sequestro e a prisão de Rosina Bulwer-Lytton em um manicômio (chamado na época de asilo para loucos), a pedido de seu filho (e a mando de se ex-marido e pai de seu filho), após ela ter sido “diagnosticada” como louca. Isso ocorreu depois de ela ter ido às tribunas da Câmara Municipal de Hertford, uma cidade e paróquia civil do distrito de East Hertfordshire, no Condado de Hertfordshire, na Inglaterra, para denunciar a conduta inescrupulosa de seu ex-marido Edward Bulwer-Lytton, que era um importante escritor e político conservador da cidade.
Contrapondo toda a narrativa dominante, que buscava desqualificar a mulher, afinal, falar mal do ex-marido seria um desvio patológico frente à (suposta) natureza feminina, Marx denuncia toda a operação, apontando o seu caráter patriarcal, machista. Em determinado momento, ele diz: “A circunstância mais importante é: Enquanto Sir Edward falou, Lady Bulwer manteve silêncio”. Na verdade, Lady Bulwer foi silenciada. Ela falou de inúmeras formas, sendo inclusive sequestrada e presa por falar. Contudo, numa sociabilidade patriarcal, não cabe à mulher falar, ou ao menos falar o que pensa, o que quer. Cabe a ela reproduzir o que pensam dela e o que querem dela. Não à toa, no caso em tela, o filho falou por ela, se colocando como seu porta-voz e seu detentor – ou seja, ela a possuiu –, da mesma forma que os médios falaram por ela, seu ex-marido falou por ela. Grosso modo, todos (os homens) falaram por ela, a possuindo, ao passo que ela, silenciada, foi tida como objeto, mera coisa, sendo despossuída de si mesma – inclusive de sua voz, de seus desejos e vontades. Para garanti este processo, tivemos uma junção da moral burguesa (e cristã) do poder do homem sobre a mulher no seio familiar, com a racionalidade médico-psiquiátrica, igualmente moralista e machista, sendo o manicômio a sustentação, a validação e o depositário deste processo.
>> Leia também: Principal mecanismo de financiamento às Comunidades Terapêuticas é extinto
Poderíamos citar inúmeros outros exemplos semelhantes, inclusive da realidade brasileira. Mencionamos o caso emblemático de Jacinta Passos, jornalista, poetisa, grande intelectual e militante comunista, tida como louca e internada em manicômio por ser justamente tudo isto. Na sua dissertação de mestrado, Juliana Vacaro (2011), investigou, por meio de análise de prontuários médicos, a vida das mulheres internadas no Sanatório Pinel, de Pirituba, entre os anos de 1929 e 1944. Nela, fica nítido o controle sobre tais mulheres por suas famílias (pais e maridos, em especial) e pelos médicos (homens também). De acordo com a autora, “existia ainda um modelo de mulher a ser seguido. Esse modelo se baseava na figura feminina ‘mãe-esposa e dona de casa’”.
Mais uma vez se engana quem pensa que casos como este ficaram no passado. Cito aqui um exemplo – e não qualquer exemplo. Em 2019, veio à tona o episódio de internação involuntária de uma escritora, solicitado pelo seu ex-marido – na época, em processo de separação –, presidente da Universal Music Brasil. Ela foi levada de sua casa à clínica psiquiátrica por uma psiquiatra, amiga da família, e dois enfermeiro. Seu diagnóstico? Hipomania, que é um estado de aumento da energia, agitação e humor, também podendo significar aumento de atividade e libido. Ora, como ousa uma mulher ser feliz, estar alegre e ter libido, ainda mais em um processo de separação? Antes disso, como ousa se separar – e de um homem tão poderoso?
Seu ex-marido, por trás da internação, ficou sabendo havia pouco tempo que ela estava em outro relacionamento. Ele chegou a afirmar a pessoas próximas que ela havia sido vítima de um trabalho espiritual. Ao todo, foram 21 dias de internação, sendo submetida a revista vexatória na instituição e outras violências. Só conseguiu sair depois de um pedido de habeas corpus, após vazar uma carta para o seu namorado por meio da mãe de uma adolescente que também estava internada na clínica. É nítido o caráter machista e sexista de todo esse caso, aliado ao poder do ex-marido sobre a ex-esposa também em decorrência de sua condição econômica. Uma situação muito semelhante ao caso de Lady Bulwer-Lytton e com tantos outros.
Outro exemplo recente bastante parecido é que se deu em Goiânia, com o qual começamos a presente reflexão. Uma mulher de 25 anos foi sequestrada e internada a força por sua mãe e sua irmã, para que não comparecesse a uma audiência, sendo prejudicada em um processo judicial referente a um patrimônio que era de interesse familiar. A mulher, que estava “desaparecida”, ficou mais de três meses internada (presa) de maneira irregular em uma clínica psiquiátrica privada, com foco no suposto tratamento de pessoas com dependência de drogas, mesmo sem ser uma pessoa que consome substâncias consideradas drogas. Uma operação conduzida pela Delegacia Estadual de Atendimento Especializado à Mulher a libertou, tendo encontrado outras 45 mulheres no local, muitas delas alvo do mesmo modus operandi de sequestro e internação contra a sua vontade e a margem da lei. Na operação, foram emitidos seis mandados de prisão e dois de busca e apreensão por suspeita de sequestro, com a clínica tendo suas atividades econômicas suspensas. Uma reportagem da TV Globo, veiculada no Jornal Nacional, encontrou outra mulher que havia internada forçadamente, a mando de um ex-namorado, numa tática muito conhecida das instituições manicomiais no país, que é chamada de “resgate”, mas que concretamente tem sido uma iniciativa de sequestro e aprisionamento, sobretudo de pessoas pobres, em situação de rua (majoritariamente negras) e, como vimos, de mulheres.
Para que estes casos não sejam lidos e interpretados como evidências anedóticas – se alguém ainda teima em ir por esta direção –, ao invés de dizerem da própria normalidade do manicômio, indicamos aqui mais alguns trabalhos acadêmicos e produções que constatam (e denunciam) justamente o caráter machista e sexista do manicômio. Cito como exemplo a tese de doutorado Mulheres e Reforma Psiquiátrica Brasileira: experiências e agir político, de Melissa Oliveira Pereira (2019), que faz um importante exercício histórico de análise não só da violência manicomial contra as mulheres, mas sobretudo da agência delas na crítica à psiquiatria e na construção do Movimento da Luta Antimanicomial, resultando na Reforma Psiquiátrica brasileira. Em determinado momento, ao se debruçar sobre a história da assistência psiquiátrica às mulheres no país, a autora afirma o seguinte: Ao resgatarmos estudos clássicos sobre mulheres e hospitais psiquiátricos não é demorado nos depararmos com mulheres permanecendo nos hospitais pelos mesmos motivos que justificavam a alta de homens. Estes achados aparecem em estudos sobre prontuários do século XIX e início do XX, mas se repetem – salvo as especificidades próprias – nos prontuários pesquisados já no início do século XXI: desde “feiúra” ao que é considerado uma “hiperexcitação”; o fato de serem militantes; lésbicas; não terem desejo de terem filhos, desapego das tarefas domésticas, falta de confiança no marido, entre outros”.
Muitas mulheres foram e são internadas nos manicômios por serem, simplesmente, mulheres. De maneira contraditória, mas complementar, outras tantas também foram e são internadas justamente por não serem mulheres – ao menos, não suficientemente mulheres na concepção hegemônica de bela, recatada e do lar. Eis como o manicômio reproduz nossa estrutura patriarcal e cumpre uma função disciplinar de gênero, de controle das mulheres, mesmo que ele não se restrinja a aprisionar mulheres, isto é, mesmo que ele amplie seus braços para homens e pessoas não-binárias.
Não sendo suficiente, a violência manicomial continua e se intensifica a partir do momento em que as mulheres são depositadas neles. Citamos como exemplo um trecho do relatório do MNPCT sobre o Hospital São Vicente de Paulo, manicômio público e ilegal do DF – há mais de 25 anos. Durante inspeção realizada em 2018, Ali já foi apresentada a imagem manicomial clássica: a contenção mecânica de três mulheres negras, que dormiam em macas, duas delas contidas pelos pulsos e pernas. A contenção da terceira era exclusivamente medicamentosa, o que pôde ser identificado por sua fala pastosa, com o relato doloroso de alguém que foi à instituição buscar uma receita médica e acabou sendo internada. As outras duas mulheres mostravam certa desorientação, ao mesmo tempo em que expressavam a violência sofrida, mostrando os punhos e os tornozelos avermelhados, em função da constância do movimento do corpo em luta contra a faixa que o continha. Já na ala feminina foi encontrada outra mulher contida.
Inclusive, tal passagem é bastante pedagógica quanto aos imbricamentos das estruturas sociais (de classe, raça e gênero), suas relações opressivas e violências reproduzidas no/pelo manicômio. Não se trata de algo “velho”, “ultrapassado”. O manicômio, seja ele nas suas “velhas” ou nas suas “novas”(“-velhas”) formas, como as chamadas comunidades terapêuticas – que nada têm de comunidades e terapêuticas –, é, portanto, uma instituição capitalista (e colonialista), patriarcal e racista. Por isso mesmo, não lhe cabe reforma. Não há o que ser reformado, mas, sim, destruído. Ele precisa ser extinguido, superado.
Pelo fim de todos os manicômios!
Top 5 da semana

brasil
Pernambuco: trabalhadores e trabalhadoras da Compesa entram em greve por tempo indeterminado a partir de 13/10
mundo
China restringe terras raras para fins militares e Trump responde com tarifas de 100%
especiais
O espectro do fascismo assombra a Europa
brasil
Em Contagem e em todo o Brasil: por uma escola que eduque, não que adestre
juventude