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As fissuras do discurso liberal de Vale Tudo


Publicado em: 31 de julho de 2025

Cultura

Patrícia Aparecida Guimarães de Souza

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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REPRODUÇÃO/TV GLOBO

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A novela Vale Tudo tem como premissa opor a forma de “subir na vida” de mãe e filha. A mãe, Raquel, seria portadora de uma honestidade inegociável, evidenciada em seu mantra: “Quem mente rouba, quem rouba mata”; já a filha, Maria de Fátima, encarnaria o título da novela, “para subir, vale tudo”, pronunciada na icônica cena de seu casamento por interesse com o bilionário Afonso Roitman. A novela é mais complexa e interessante do que isso em todas as suas subtramas (por isso o sucesso). No entanto, a mensagem de fundo é a valorização do mérito daquele que “vence” pelo seu próprio esforço – o autêntico “self made man” liberal.

Raquel encarnaria essa figura: uma mulher pobre, que chegou sem nada no Rio de Janeiro, após ser roubada pela própria filha, e se torna proprietária de uma empresa de distribuição de alimentos, sendo festejada em revistas de empreendedorismo.

Mas novelas da Globo, principalmente a das 21h, exigem alguma verossimilhança interna e é preciso rechear o enredo. Os passos de Raquel para enriquecer revelam quase nada de “self” e muito de “lucky” made woman. Ao chegar no Rio de Janeiro, ela é acolhida por desconhecidos que lhe dão abrigo (quem imagina alguém colocando para dentro de casa uma pessoa que nunca viu? nem agora nem em 1988). Logo se apaixona e seu recém sogro lhe dá uma dica, que na novela é tratada por brilhante, mas é mais um lugar comum: “Trabalhe com o que você gosta”. Ela – que não precisa pagar hospedagem, pois desconhecidos a recebem de graça – gasta o pouco que lhe resta comprando insumos para fazer sanduíches às 5h da manhã e vende-los na praia (claro, sem nenhuma burocracia para iniciar as vendas nem concorrência).

O homem que a acolhe sem nenhuma segunda intenção (é até assexuado) é dono de um bar e fica sem cozinheira de uma hora para outra. Ele, então, dá a Raquel o emprego.  Depois, com empréstimos bancários abrem juntos um restaurante. Nesse meio tempo, Celina, milionária cansada de ter suas finanças controladas pela irmã tirana Odete Roitman, busca alguma autonomia financeira. A ricaça conhece Raquel por uma amiga em comum e resolve investir milhões de reais para que ela compre uma empresa de distribuição de alimentos. Assim, depois de muita sorte, a heroína é festejada por revistas de empreendedorismo.

Enquanto isso, sua filha, também com muita sorte para cruzar o caminho das pessoas certas,  consegue casar com um bilionário, subindo mais alto e de forma mais rápida e fácil que sua mãe.

Porém, de acordo com os spoilers, a riqueza de nenhuma das duas tem vida longa. A injeção milionária de dinheiro na empresa de Raquel vai acabar quando Odete Roitman intervir nas finanças da irmã que, com tanta gente precisando de dinheiro, havia resolvido investir justo na rival amorosa de sua sobrinha. Já a golpista Maria de Fátima será desmascarada e escorraçada. Ela nunca havia sido tratada de fato como uma igual pelos bilionários.

No fim, como os bonzinhos vencem, numa crise de consciência, Celina entregará mais uma vez uma bolada para Raquel ter de volta sua empresa. Já Maria de Fátima será castigada. Desta forma, a novela que tenta reproduzir o discurso liberal com a vitória de Raquel, que “trabalha enquanto eles dormem”, acaba, em suas entrelinhas, mais uma vez lembrando que as classes no capitalismo são tão intransponíveis quanto castas. Para subir, é preciso de uma sorte descomunal (para mocinhas e vilãs) e, mesmo assim, essa posição será extremamente frágil diante dos verdadeiros donos do poder.

A primeira versão de Vale Tudo, de 1988, foi um sucesso extraordinário, tanto que a frase “quem matou Odete Roitman?” ficou no imaginário coletivo, conhecida mesmo por quem era um bebê ou nem tinha nascido quando a novela foi ao ar. A atual também tem feito sucesso, embora muito menor, pois em tempos de streaming, a Globo não tem mais o controle quase total sobre o entretenimento no Brasil. Ainda assim, a nova Vale Tudo  sofreu com fortes críticas no início e, por mais incrível que seja a atuação de Taís Araújo (muito superior à de Regina Duarte, a primeira Raquel), sua personagem é vista como “chata”, já a vilã Odete é uma diva e mesmo Maria de Fátima, com sua falta de caráter, consegue o riso cumplice do público.

Por que não nos identificamos mais com Raquel?

Em 1988, no auge da redemocratização no Brasil com a Constituinte, que criava um ambiente otimista, e a ascensão vertiginosa do neoliberalismo que elegeria tragicamente Fernando Collor no ano seguinte, talvez fosse mais fácil engolir o discurso que uma personagem como a Raquel tenta encarnar. Mas com o fracasso do neoliberalismo e seu desague num neofascismo, tal personagem, mesmo enquanto mera ideologia, não se sustenta e seu otimismo soa caricato e tolo. O discurso mais realista da novela veio da vilãzinha Maria de Fátima no túmulo de seu pai ainda no início do folhetim. Ela constata que, mesmo com uma vida inteira de luta, o fim da classe média baixa é nos fundos do cemitério (a desigualdade persiste até na morte). Sendo uma vilã, sua conclusão é reafirmar para si mesma que “vale tudo” para se estar do outro lado da luta de classes. E se ela não fosse tão cruel e egoísta (é uma personagem disposta a roubar a mãe e, segundo spoilers, vender o filho), se não valesse tudo, qual seria a conclusão?

Raquel e Maria de Fátima, por mais diferentes que sejam, ainda reproduzem a mesma lógica: elas querem e acreditam que podem “vencer” no jogo da vida capitalista. Assim, desvenda-se uma nova camada de ideologia, não apenas o discurso do self made man, mas a ideia de que existe uma ordem social inquestionável, dentro da qual há apenas caminhos constituídos de lutas individuais (o que não exclui a ajuda de amigos, porque essa também é uma escolha exclusivamente pessoal). Reitera-se a questão de como chegar aos Roitman, sendo que a pergunta certa é por que num mundo em que nem nos cemitérios há dignidade para os mais pobres existem Roitmans?


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