marxismo
Escapar das armadilhas
Mais do que o fim da esquerda, a dialética que a ascensão da extrema-direita desperta, é a da sua renovação. A boa notícia é que ainda estamos aqui. Só precisamos de mudar, como a realidade mudou. Há um lugar central a ser ocupado pela esquerda popular e anticapitalista na reorganização em curso.
Publicado em: 15 de julho de 2025
Foto: @_scarlettrocha_ /@sinasefe
O nosso pensamento está repleto de armadilhas.
Cientistas descobriram que, desde muito pequenas, as crianças separam objetos por semelhanças. Isto foi demonstrado em experiências. Cientistas deram, a bebês de doze meses, lápis e cavalos de brincar para se entreterem e, no fim, pediram-lhes que os guardassem. Os bebês fizeram-no de forma aleatória, misturando os pequenos lápis ratados com os cavalinhos de plástico. Porém, aos dezoito meses, sem serem ensinados a tal, os bebês começam, sistematicamente, a arrumar cavalos com cavalos e lápis com lápis. Concluiu-se que, de alguma maneira, vimos ao mundo programados – ou, pelo menos, fortemente preparados – para pensar por categorias. Preto é preto, branco é branco; cavalos são cavalos e lápis são lápis. “A” é sempre igual a “A” e diferente de “B”. Somos aristotélicos por natureza.
A categorização é uma ferramenta mental poderosa. Facilita a organização mental de um mundo caótico. Sem ela, estamos perdidos. Contudo, é também uma armadilha. No mundo real, raramente encontramos preto e branco; antes navegamos entre diferentes escalas de cinzento. “A” nunca é só “A”, tirando na nossa mente. Na política socialista, provavelmente, a mais complexa atividade a que a humanidade já se propôs, usar categorias é muito útil. E escapar às suas armadilhas é vital. Nada é apenas o que parece.
Recuamos porque não avançamos… e vice-versa?
Isto vem a propósito dos infindáveis debates sobre o momento político atual. Longo inverno, derrota profunda, fascistização em curso; situação defensiva, reacionária ou contrarrevolucionária. Com fórmulas mais ou menos inspiradas, procuramos encaixar a situação de ascensão da extrema-direita numa caixinha conceptual. Isso é importante: devemos perceber o contexto em que lutamos. Depois de algum período de negação, começa a ser unânime a gravidade do momento. Ele é defensivo para a esquerda e as classes populares e de avanço para as classes dominantes e os seus segmentos mais agressivos, a extrema-direita.
> Leia também: Zohan Mamdani provocou um terremoto político
Estamos numa luta defensiva, a tão propalada “resistência”. Porém, se lutamos é porque o mundo se move. Na luta de classes, como na guerra, se as condições objetivas, mesmo que muito mais favoráveis a um dos lados da contenda, determinassem automaticamente o resultado, não havia sequer combate. Contavam-se as espingardas de cada lado e declarava vencedor quem as tivesse em maior número. A esquerda tem menos votos? Menos deputados? Menos visualizações e likes? Está derrotada: vão para casa e voltem daqui a dez anos. Felizmente, não funciona assim. Categorizar o momento atual como perigoso, reacionário, fascistizante, é correto. Esquecer que a realidade é mais dinâmica do que essa simplificação é fatal.
O maior perigo é fazer das categorias lentes. Os óculos da “situação reacionária” ou da “fascistização em curso” só verão os recuos. É o viés da confirmação. A análise tornar-se-á circular: a esquerda recua porque existe uma direitização da sociedade; a direitização da sociedade confirma-se pelo recuo da esquerda. O resultado é a paralisia. É a morte da política, a toalha jogada ao chão. E o último a sair que apague a luz.
A dialética da coisa
Presos à caixinha da “fascistização em curso”, como explicamos certas coisas que, aqui e ali, insistem em acontecer?
Coisas como a possibilidade de um imigrante socialista se tornar Mayor (prefeito) de Nova Iorque em plena era trumpista; a inesperada ascensão do Die Linke quando a sua morte havia sido já proclamada; o sucesso inaudito da esquerda francesa a par e em contraponto com a ascensão da extrema-direita? O mundo é feito de cinzentos; na verdade, de muitas cores, tonalidades, misturas, espectros, matizes. Como dizia o outro, “a vida é bué cenas”.
Tanta conversa para quê? Se “A” não é sempre “A”, interessará sequer o alfabeto? Sim, porque o ecletismo é tão perigoso como a unilateralidade. Vivemos, de facto, uma ofensiva da extrema-direita e uma direitização da sociedade. Tempos perigosíssimos: o risco de uma derrota histórica existe. Mas também vemos brotar sucesso, brechas ocupadas pela esperança, lutas de massas e, em vários países, irrupções de uma esquerda nova e radical que amplia a sua influência aqui e ali. Qual é a dialética concreta desta situação?
A classe dominante, presa na armadilha da longa estagnação capitalista, impelida, sobretudo nas potências decadentes, a competir com os outros Estados, precisa eliminar todas as barreiras à circulação irrestrita e predatória de capital. Que barreiras? A regulação ambiental, os orçamentos públicos para a educação e a saúde, os direitos laborais, a obrigação democrática de prestar contas, a resistência popular nas ruas e quem a defende e organiza – os movimentos sociais, os sindicatos, a esquerda. Tudo isso deve ser eliminado: nós devemos ser eliminados. Pela ofensiva política ideológica, se possível; pela força, se necessário. É o fascismo. O monstro saiu da jaula e nisso reside o perigo da situação. Mas ainda não fomos devorados e nisso reside o combate.
Há, no entanto, razões históricas para que a classe dominante tanto resista a jogar a cartada do fascismo. Quem pelo ferro mata, pelo ferro morre. O fascismo é a direita de combate. Ele existe para destruir as forças acumuladas das classes populares, da esquerda, da democracia social. Ele existe porque não estamos derrotados – se estivéssemos, se o grau de força social do nosso lado fosse nulo, o fascismo era desnecessário, o caminho estava já aplainado ao avanço irrestrito do Capital. Ou seja, a ofensiva fascista pressupõe o aprofundar da luta rumo a uma lógica de tudo ou nada. Daí resulta imprevisibilidade. Até que ponto a resistência popular pode ser quebrada? Em que momento as lutas defensivas podem transbordar em ascensos populares? A eliminação das instituições democrático-liberais não varrerá também as amarras políticas ideológicas que prendem os mais explorados à moderação? A história acelera.
O neofascismo tem-se imposto pela capacidade de iniciativa, de organização, de combatividade, pelos meios ao seu dispor. Assim, inclinou todo o tabuleiro político a seu favor. Quem chama a briga e desfere o primeiro murro tem sempre vantagem – mas não a vitória assegurada. Na luta de classes não há KO ao primeiro round. Ao forçarem a luta, despertam o formigueiro. As massas tomam as ruas em solidariedade com a Palestina, na Alemanha são centenas de milhares a exigir a ilegalização do partido neofascista, em Los Angeles a classe trabalhadora insurge-se contra as deportações, o povo francês protagonizou, contra a reforma das pensões, o maior levante de classe desde o Maio de 68. As categorias que nos ajudam a ver o quão defensiva é a situação – e ela é – não nos podem cegar para estes fenômenos. Não temos direito a desistir.
Nós, a esquerda, muitas vezes embebidos na inércia da rotina democrático-liberal – embalados num sonho que acabou, estremunhados ainda sem perceber que acordamos de repente com a casa a arder – demoramos a ver as brechas, a intuir as possibilidades, a saltar para a ação. Primeiro resistimos a assumir o perigo, depois, quanto tal já não é possível, paralisamos perante ele. Os mais audazes, quiçá menos presos à rotina cristalizada de sucessos anteriores, ganham a dianteira. Agem. Inovam. É o que vemos nos EUA, França, Alemanha, nos exemplos dados acima e em outros. Claro que estes casos não são, mesmo em França, de uma vitória iminente da esquerda. Em todos esses países se combate num terreno desfavorável, mas estes exemplos contrabalançam as perspetivas de focadas na derrota inevitável.
Mais do que o fim da esquerda, a dialética que a ascensão da extrema-direita desperta, é a da sua renovação. Radical, muitas das vezes. Aqui também está a acontecer, nem toda a esquerda recuou nas últimas eleições. Mas o jogo só começou.
A boa notícia é que ainda estamos aqui. Só precisamos de mudar, como a realidade mudou. Há um lugar central a ser ocupado pela esquerda popular e anticapitalista na reorganização em curso.
Original em Esquerda.Net
Top 5 da semana

mundo
Carta aberta ao presidente Lula sobre o genocídio do povo palestino e a necessidade de sanções ao estado de israel
editorial
É preciso travar a guerra cultural contra a extrema direita
marxismo
O enigma China
brasil
Paralisação total nesta quinta pode iniciar greve na Rede Municipal de Educação de BH
mundo