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Entre o tempo que passa e o futuro que se cria


Publicado em: 5 de julho de 2025

Marxismo

Glória Trogo e Henrique Canary

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Imagem: Francesco Salviati, O tempo como ocasião (1545)

Ouça agora a Notícia:

Rocky Balboa:
Apollo? É, ele era ótimo. Lutador perfeito. Ninguém nunca foi melhor.
Adonis (Creed) Johnson:
Então como você o venceu?
Rocky Balboa:
O tempo o venceu. O tempo, sabe, derruba todo mundo. É invicto.
(Creed, 2015)

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo, tempo, tempo, tempo
Quando o tempo for propício
(Oração ao tempo, Caetano Veloso)

Kairós é um deus secundário na mitologia grega. Filho mais novo de Zeus, ele não vive no Olimpo, mas perambula pelo mundo. Anda nu; na parte de trás da cabeça, uma enorme careca em forma de coroa; na frente, uma grande franja encaracolada. Kairós é o deus do tempo, mas um tempo muito específico. Enquanto Chronos comanda o tempo linear, aquele que passa sempre igual para tudo e todos, Kairós é o deus do momento exato, do ínfimo átimo em que uma chance se apresenta, o tempo da oportunidade. Chronos é quantitativo; Kairós é qualitativo.

Embora secundário em comparação com outros deuses olímpicos, Kairós é muito referido na tradição clássica. Na filosofia prática da medicina hipocrática, é o momento em que o médico deve intervir para resolver a crise da doença, sem o quê o paciente morrerá; na arte da guerra, é o tempo preciso em que uma flecha pode ser disparada com a maior força e com mais possibilidades de encontrar o alvo; na tecelagem, é o instante em que a lançadeira deve ser passada pelos fios do tear, de maneira que o tecido não seja arruinado. Toda arte, todo conhecimento, toda filosofia tem o seu “momento kairótico”. A tarefa do ser humano é encontrar esse momento e agir para mudar o andamento natural das coisas.

Kairós, portanto, tem uma enorme força; uma força sobretudo humana, que se confunde com a inteligência e o senso de oportunidade. Mas ele tem também uma fraqueza. Diferente de outros deuses, ele pode ser capturado. Para isso, é preciso agarrar sua franja no exato momento em que ele se aproxima. Quando ele se afasta, já não é mais possível. O momento oportuno passou.

A existência de uma ciência política, ou seja, de um conhecimento estruturado que busca estabelecer as leis mais gerais do desenvolvimento dos sistemas, organizações e processos políticos, não anula o fato de que a política em si, enquanto atividade, é fundamentalmente arte. É arte porque não há fórmulas nem laboratórios estéreis, só ideias gerais e ateliês bagunçados; porque as condições mudam e as mesmas ações geram novos efeitos. Uma mesma tática pode ser uma traição ou uma necessidade extrema, a depender das circunstâncias dessa oficina caótica chamada vida. Na arte da política, muitos fatores têm um papel importante. Um deles é essa compreensão kairótica do tempo; a de que ele não é linear. É muito mais perigoso confundir o tempo na política do que na gramática, dizia Trótski; é preciso saber reconhecer o momento, ter senso de oportunidade.

Kairós na história mundial

Na aurora de seu surgimento, o movimento comunista se deparou com as enormes possibilidades abertas pela Primavera dos Povos, a onda revolucionária que varreu a Europa entre 1848 e 1851. Marx e Engels, que há pouco haviam fundado a Liga Comunista, se jogaram de corpo e alma naquela luta. Os autores do Manifesto Comunista escreveram panfletos, programas, declarações, viajaram, agitaram e organizaram. O tempo da filosofia e da formulação dos princípios gerais do movimento havia passado. Chegara o tempo da ação. Fruto desse esforço consciente, a Liga dos Comunistas cresceu exponencialmente e o socialismo se tornou uma potência europeia que não podia mais ser ignorada. Foi o momento kairótico da infância de nosso movimento.

Mas as oportunidades não são só políticas; elas são também organizativas e muitas vezes surgem em momentos inesperados e até contraintuitivos. Em 1875, ainda sob o impacto da derrota da Comuna de Paris (portanto, um momento de crise e refluxo), uma oportunidade incrível: a fusão entre a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundada por Ferdinand Lassalle, e o Partido Operário Social-Democrata, dirigido por August Bebel e Wilhelm Liebknecht, deu origem ao Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (mais tarde Partido Social-Democrata da Alemanha), aquela que viria a ser a mais influente organização socialista que o mundo já conheceu. Marx desconfiava da aliança, e submeteu as ideias de Lassalle a uma dura crítica teórica em seu famoso panfleto Crítica ao Programa de Gotha. Mas apesar das diferenças, aceitou a união por considerar que “Cada passo do movimento real é mais importante que uma dúzia de programas”. Era preciso aproveitar a oportunidade.

É verdade que mais tarde o Partido Social-Democrata da Alemanha viu surgir em seu interior uma corrente reformista na figura de Eduard Bernstein, mas isso teve muito mais a ver com o desenvolvimento objetivo da luta de classes no período posterior à fusão do que com qualquer “gérmen reformista” inserido no partido pelas ideias de Lassalle. Enquanto manteve uma estratégia revolucionária, o SPD foi uma organização exemplar: centenas de milhares de militantes ativos e disciplinados, milhões de votos, dezenas de deputados, dúzias de jornais diários, clubes operários, disputa da hegemonia no conjunto da sociedade. Foi certamente o partido revolucionário que melhor expressou o proletariado sobre o qual se assentava, uma coincidência quase completa entre a classe e sua representação política. Nenhum partido operário ou revolucionário jamais obteve o mesmo grau de implantação, nem mesmo os bolcheviques depois da tomada do poder.

Em 1914, um novo momento kairótico – a Primeira Guerra Mundial. O enfrentamento militar aberto entre as principais potências do mundo colocou na ordem do dia o problema da revolução europeia. Era preciso aproveitar a chance aberta por uma crise aguda que se seguia a um longo período de estabilidade econômica e social. Mas não era fácil. A maioria dos partidos socialistas europeus, inclusive o poderoso partido alemão, havia votado em seus respectivos parlamentos pela aprovação dos créditos de guerra, ou seja, o financiamento estatal para que os governos europeus matassem os operários dos países rivais. Reunidos no pequeno vilarejo suíço de Zimmerwald, 37 revolucionários, que representavam a ínfima minoria do movimento socialista europeu, resolveram apostar em uma estratégia distinta: a transformação da guerra interimperialista em guerra civil. Essa estratégia seria construída ao longo de dois anos, até que a Revolução Russa triunfasse em 1917, seguindo exatamente os passos traçados em Zimmerwald.

Dois anos depois, uma nova oportunidade: baseado no entusiasmo mundial desencadeado com a vitória da Revolução Russa, a fundação de uma nova Internacional, oposta pelo vértice à já carcomida Segunda Internacional. Novamente, algumas dezenas de revolucionários deram um passo que se demonstraria estratégico: a fundação da III Internacional, ou Internacional Comunista, o partido mundial da revolução que exerceria uma influência decisiva no imaginário da classe operária mundial ao longo de toda a primeira metade do século 20. Parecia loucura chamar um congresso mundial em Moscou no meio da Guerra Civil. A simples viagem até a Rússia representaria um risco incalculável para muitos delegados. Mas a direção bolchevique decidiu apostar, e por mais de 20 anos a Internacional Comunista incorporou o ideal de internacionalismo proletário proclamado pelos fundadores do socialismo científico no Manifesto Comunista, até ser dissolvida em 1943 por ordem de Stálin, devido a um acordo com Roosevelt e Churchill.

Não existe história contrafactual (“E se?”). Se o fato não aconteceu, não pode ser analisado objetivamente. Ainda assim, devemos admitir que cada situação histórica tem dezenas de desenlaces possíveis e o que realmente aconteceu é apenas um deles. Ninguém anulou ainda a imaginação revolucionária. Nossos mestres perderam oportunidades, é verdade, mas souberam aproveitar tantas outras. É por isso que chegamos até aqui. Porque o tempo passa, mas não sem abalos. A vontade e a consciência dos seres humanos contam.

Kairós e Chronos no século 21

A firmeza estratégica é a base sobre a qual se assenta a construção de organizações revolucionárias no longo prazo. Mas a luta por aproveitar as oportunidades do presente parece estar no centro da própria atividade política, ou seja, é o que permite os avanços no curto prazo, inclusive os grandes saltos. Nem sempre somos bons nisso. Junho de 2013 o demonstrou. Uma luta contra o aumento das passagens que, reprimida pela polícia, se transformou em ascenso multitudinário por saúde, educação e contra a construção de estádios luxuosos. Uma parte da esquerda governava o país (não há 10 meses, mas há 10 anos!) e não viu na movimentação desordenada da multidão nas ruas uma oportunidade política, e sim um inimigo a ser enfrentado. Outra parte também compreendeu mal o processo; não notou suas contradições; demorou a perceber as forças que passaram a operar; tinha um acúmulo prévio extremamente frágil, confuso e pouco implantado socialmente. Perdemos a oportunidade. Mas outros a aproveitaram; forjaram movimentos e organizações políticas como o MBL; defenderam ideias; formaram militantes e figuras públicas; disputaram a sociedade; fomentaram o desenvolvimento de um outro movimento de massas, esse diretamente reacionário, que agrupou as forças do golpe de 2016.

Não fazemos uma ode abstrata à oportunidade sem conteúdo de classe. Aliás, muitas vezes na esquerda, essa ideia de “senso de oportunidade” se transformou no seu exato contrário: a “oportunidade” para um giro sectário ou oportunista: rupturas precipitadas, construção de movimentos artificiais, capitulação aos sentimentos mais reacionários “da moda”, tentando “surfar uma onda” que nunca foi nossa, como o “Fora Dilma!”, o apoio à Lava Jato etc. Isso demonstra que o simples fato de querer aproveitar uma oportunidade não é nenhuma garantia de sucesso. É preciso uma política correta.

O século 21 é difícil, não cansamos de dizer. Como todo tempo, ele é governado por Chronos: é homogêneo em sua duração, e todos os dias são iguais (e como eles são angustiantes!). Desde janeiro lemos nos jornais as consequências da vitória de Trump nos Estados Unidos. O genocídio televisionado do povo palestino nos alerta que o imperialismo se associou à extrema direita e construiu redes de defesa ideológca de Israel capazes de bloquear a mente humana contra imagens indignantes, como o assassinato de crianças, a destruição de Gaza e da memória de um povo. No Brasil perdemos Junho de 2013, mas mais grave ainda é que, no mundo, perdemos todas as revoluções dos últimos 15 anos. Não é exagero afirmar que vivemos tempos sombrios, tempos de derrotas brutais.

Mas exatamente por isso é preciso estar atento à aproximação de Kairós. Chronos é o deus absoluto, o devorador de seus próprios filhos, ele vence a tudo e a todos. E vencerá a nós um dia. Mas enquanto isso, Kairós segue vivo, vaga pela floresta e pode subverter essa fatigante rotina. A eleição de 2026 será muito difícil. As pesquisas apontam para uma dinâmica que piora a cada semana. Mas a política é a arte de mudar as coisas. Existe dialética; existe movimento. Decisões de lideranças políticas e de sujeitos políticos coletivos podem criar conjunturas, abrir o caminho para o novo.

Evidentemente, será preciso estar com Lula em 2026. A mais ampla unidade contra o fascismo precisa ser construída. Mas a força dessa união (e inclusive a capacidade de construí-la) não estará determinada pelo grau de concessão programática e política feita aos de cima, e sim pelo nível de conexão dessa frente com os de baixo. O “nós contra eles” produzido essa semana na internet (e que fez o governo, pela primeira vez, ganhar a batalha nas redes) não é um obstáculo à vitória contra o fascismo, mas sua condição. Aqui cabe também um pouco de imaginação revolucionária: O governo usou uma pequena fração de sua força e tudo aquilo aconteceu. E se ele tivesse agido assim desde o início? A nossa chance de vitória está baseada na capacidade de fazer uma frente não apenas ampla (essa única característica se demonstrou insuficiente), mas insurgente, rebelde, conectada com o melhor do nosso tempo.

O ser humano não é observador, nem veículo da história. É agente. Agir é resistir ao tempo, dominá-lo, dobrar suas duras engrenagens, submetendo-as à forja da vontade, da capacidade de mudança e da consciência. É isso que nos faz quem somos. Ela – a oportunidade – virá pelo simples motivo de que sempre vem. É preciso vê-la se aproximando porque quando se afastar será tarde demais e uma nova chance terá sido perdida. Entre o tempo que passa e o futuro que se cria, há o momento. É preciso agarrar Kairós pela franja.


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