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A “espiritualidade” no cuidado e nas políticas sobre drogas
Publicado em: 5 de julho de 2025
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Coluna Saúde Pública Resiste
Saúde Pública resiste
Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;
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Saúde Pública resiste
Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;
Foto: Divulgação/Salve a Si
Por Pedro Henrique Antunes da Costa
Em meio à realização de Consultas Temáticas Livres para a Construção do Plano Nacional de Políticas sobre Drogas (PLANAD), proprietários e apoiadores das ditas “Comunidades Terapêuticas” (CTs), que nada têm de comunidades ou de terapêuticas, vêm veemente defendendo a inserção de um eixo no referido Plano sobre “espiritualidade”. Venho aqui contribuir para este debate, buscando “limpar o terreno”, ao demonstrar o que está por trás dele, bem como as suas implicações.
1. Primeiramente, devemos reforçar o óbvio: se a espiritualidade é constitutiva da singularidade de alguém, se ela diz daquela pessoa como ser, como indivíduo, ela deve ser considerada, deve ser abordada em qualquer processo assistencial, terapêutico. A questão é que isso já está garantido por todo o arcabouço legal-normativo que se refere às políticas sobre drogas e, nelas, à assistência a pessoas com necessidades assistenciais atreladas ao consumo problemático ou abusivo de drogas.
Em diferentes leis, políticas, e outros documentos de distintas naturezas legais, jurídicas etc. e que embasam o cuidado no campo da saúde mental, álcool e outras drogas, inclusive alguns deles bastante contraditórios e com antagonismos entre si, as pessoas poderão constatar facilmente isto. Por exemplo, isso vai ser expresso por meio da defesa de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) ou do Plano Individual de Atendimento (PIA), todos eles mencionados em uma série de documentos que versam sobre o cuidado em álcool e outras drogas e que dizem, justamente, sobre a obrigatoriedade de construção, de desenvolvimento e do acompanhamento de processos assistenciais, em suma do processo de cuidado, não só junto a pessoa a qual tal plano ou processo se refere, mas que seja construído desde as suas necessidades, isto é, sua subjetividade, sua singularidade. Se nela, a espiritualidade é algo importante, deve ser, necessariamente, abordada.
A questão aqui é outra: colocar a espiritualidade como um eixo das políticas no âmbito do cuidado, significa obrigar a abordagem ao que não necessariamente pode comparecer para todas as pessoas ou, mesmo que compareça, pode não ser tão relevante. Ora, isso é justamente negar a subjetividade, a singularidade, a individualidade das pessoas, forçando a abordagem a algo que não faz sentido para ele e o seu processo de cuidado.
Então, o que temos, na verdade, é que a imposição da abordagem à espiritualidade, como algo compulsório, independentemente da singularidade da pessoa, pode ser justamente uma violência, uma violação de direitos; e é. Por outro lado, não há necessidade de se colocar a espiritualidade como um eixo dos processos de cuidado porque, como argumentado, ela já está presente, ela já está contida – e da forma como deve comparecer, a partir do reconhecimento e do respeito à singularidade, à subjetividade, à individualidade das pessoas e não como uma imposição prévia.
2. Em segundo lugar, é preciso analisar e compreender o que está por trás dos discursos, por trás da aparência das coisas, estando por vezes, mistificado ou ocultado pela forma como as coisas são ditas ou defendidas. De acordo com mapeamento realizado e publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2017)2, apesar da heterogeneidade das CTs, é possível extrair um núcleo comum formado por três pilares constitutivos: (a) trabalho; (b) disciplina; e (c) espiritualidade. Rita de Cássia Cavalcante (2019), que é uma pesquisadora e professora importante no que se refere a álcool e outras drogas, nomeia esse tripé ou tríade como “religioso-médico-legal das drogas” (p. 254)3, que reproduz (e é) não só a hegemonia na saúde mental, mas também no que se refere às particularidades dos entendimentos e abordagens em álcool e outras drogas hegemonizadas no/pelo proibicionismo.
A questão é que sob o prisma da defesa do caráter terapêutico do trabalho, a partir do que denominam de laborterapia, temos concretamente: trabalho forçado, trabalho não-pago, em condições degradante e análogo à escravidão. Essa característica inerente, constitutiva das CTs está fartamente documentada na produção científica e acadêmica, bem como amplamente denunciada na mídia, por meio de inúmeras reportagens e matérias, como constatado, por exemplo, pelo Observatório de Violências das CTs, produzido pelo grupo de pesquisa Psicologia e Ladinidades, da Universidade de Brasília, e seu projeto de extensão Saúde Mental e Militância no DF4. A título de ilustração, recomendo o relatório As comunidades terapêuticas em evidência: o que dizem as avaliações e fiscalizações do estado brasileiro?5, publicado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo supracitado grupo de pesquisa Psicologia e Ladinidades, o qual coordeno, e que fez um mapeamento e sistematização dos principais trabalhos de avaliação e fiscalização das CTs realizados por órgãos e entidades estatais, sobretudo no âmbito federal. Nele, aliás, foram encontradas quatro CTs na Lista Suja de trabalho escravo, na sua atualização do segundo semestre de 2024, com 94 pessoas tendo sido resgatadas delas. Cabe ressaltar que as pessoas ou instituições inseridas na referida Lista só permanecem nela por dois anos.
O que estou argumentando quanto ao trabalho que, nas CTs, tem sido trabalho forçado, não-pago, em condições degradante e análogo à escravidão, acontece também com a espiritualidade. Na verdade, sob o guarda-chuva da “espiritualidade”, o que temos visto acontecer concretamente é violência, violência religiosa. Não apenas o grosso das CTs é religiosa, ou seja, são elas próprias instituições religiosas ou geridas por instituições religiosas – sobretudo de religiões cristãs, sejam elas evangélicas ou católicas –, mas elas colocam, de maneira compulsória, a realização e participação em atividades pautadas na sua religião. Temos aqui, aliás, uma gritante contradição: se a maioria de tais instituições é religiosa, elas não poderiam ou não deveriam receber financiamento público, financiamento estatal, afinal, até onde sabemos, o Estado ainda é formalmente laico. Deixemos este importante parêntese de lado, e voltemos para o debate sobre a “espiritualidade”, ou melhor dizendo, já podemos também mistificar que, ao invés de espiritualidade, o que está de fato sendo abordado e, pior, sendo imposto – é a religiosidade, é a religião.
Em grande parte, o que ocorre é que não importa a fé ou a ausência de fé da pessoa internada nas CTs, ela obrigatoriamente terá que professar a fé da CT em que está depositada, porque isto faz parte do que as CTs consideram “tratamento”. Nos casos de indivíduos que possuem credos diferentes daquele proferido pela CT ou que nem os possui, não há alternativa senão participar das atividades impostas, professar o credo religioso que lhe está sendo exigido, sob risco de, ao não cumprir tal obrigação, ser penalizado de inúmeras e igualmente violentas formas – como, aliás, demonstra o supracitado relatório do MNPCT e do Psicologia Ladinidades e inúmeros outros trabalhos.
Além do mais, como consta no primeiro artigo da Lei 10.216, de 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica, e que dispõe sobre proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental:
“Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra”.
Dessa forma, podemos desmistificar ainda mais que, em vez de espiritualidade, o que concretamente vem sendo feito por grande parte das CTs é violência religiosa; é violação de direitos. E, se vai na contramão de leis, como é o caso da Lei 10.216/2001, é ilegal.
Nesse sentido, tal constatação – correta – de que as CTs praticam violência religiosa em sua maioria, sobretudo com pessoas de religiões de matriz africana, bem como outras que não possuem religião, não pode ser enfrentada com tentativas de se assegurar o acesso de pessoas das variadas religiões às CTs ou que tais instituições passem a “respeitar” religiões outras que não a sua. Digo isto, pois estamos falando de uma instituição de caráter asilar-manicomial – e mais, como abordarei. Assegurar a presença de outras formas de espiritualidade nas CTs, significa, ao fim e ao cabo, assegurar um direito, mas nos marcos de negação de outros direitos, já que manicômio é instituição de violência, não podendo não o ser, não podendo ser reformado ou humanizado – mesmo com todas as boas intenções, que sabemos que existem.
Ora, onde já se viu assegurar a negação de direitos? Assegurar o acesso à violência, mesmo que lhe seja permitido professar sua fé? Uma CT laica, que respeita a religião das pessoas, ou que ali tenha múltiplas religiões, continua sendo uma CT; um manicômio, portanto. Um manicômio laico ainda é um manicômio. Não existe mais ou menos manicômio, mas manicômio.
Ademais, as CTs têm sido uma mistura de manicômios, prisões, igrejas (com o acréscimo da violência religiosa) e senzalas, já que a laborterapia tem significado, como mencionado, trabalho forçado, não-pago, em condições degradantes e análogo à escravidão. Além disso, a maioria das pessoas depositadas nas CTs é pobre e negra, de tal forma que tais instituições expressam e reproduzem o próprio caráter desigual de classe e o racismo estrutural de nosso país e sociedade.
Rememoremos Frantz Fanon (2008): “[d]efendemos, de uma vez por todas, o seguinte princípio: uma sociedade é racista ou não o é. Enquanto não compreendermos essa evidência, deixaremos de lado muitos problemas” (p. 85)6. Uma instituição é manicomial ou não é; é racista ou não o é. As CTs são ambas – e mais. Uma CT que “respeita” a religião das pessoas não deixa de ser racista, ao expressar o racismo estrutural de nossa sociedade, ao reproduzi-lo, ou diminui o seu racismo e o seu caráter manicomial – até porque não existe mais ou menos racismo ou manicômio.
Instituições como as CTs, portanto, não se disputam, se ocupam ou se qualificam. Ao contrário, são instituições que precisam ser desocupadas, fechadas, superadas. Nem toda contradição carece de ser gerida. Algumas delas devem ser abolidas. A questão não é (só) técnica – é também, mas não é só técnica – como se o problema das CTs fosse a sua “falta de padrão” ou de qualidade. Também não é o desrespeito à religiosidade, à diversidade, por mais que este seja também um problema. Em suma, todos estes problemas são sérios, são graves, e são problemas das CTs. Mas as CTs como problema não podem ser reduzidas a eles, sob pena de simplificarmos e descaracterizarmos o problema, achando que é possível melhorá-lo qualificando CTs – e não fechando-as, as extinguindo.
A partir do exposto, vemos que o que está em jogo não é a consideração ou a desconsideração da espiritualidade nos processos de cuidado no campo da saúde mental, álcool e outras drogas e nas suas políticas. Ela já é considerada, nos casos em que deve ser considerada, em que ela é dimensão importante da subjetividade, da singularidade da pessoa assistida. Se não é, deve ser. E os meios para isso já existem e estão assegurados no arcabouço legal-normativo, nas políticas sobre drogas. Estas políticas devem, sim, ser modificadas, mas não neste ponto.
Portanto, o que está em jogo, por trás de discursos e aparências, não é a espiritualidade, não é a religiosidade. Pelo contrário, estas se respeitam e, como falei, caso não estejam, devem ser respeitadas. O que temos aqui é uma disputa, na qual, por um lado, temos um projeto de poder, de sociedade, em que avança o conservadorismo, o fundamentalismo e que tem se apoderado cada vez mais das políticas sobre drogas, dentre outras políticas e esferas de nossa vida. Por outro lado, temos a defesa dos direitos das pessoas que consomem drogas, para que elas sejam respeitadas nas suas singularidades e que os processos assistenciais sejam verdadeiramente assistenciais, de cuidado, e não mais uma forma de violência.
1 Professor na UnB. Resistência/DF
2 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Nota Técnica. Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Brasília: IPEA, 2017.
3 CAVALCANTE, R. A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e a sua relação com a saúde mental brasileira. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (Orgs.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações na política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 245-308.
4 O Observatório pode ser acessado no seguinte link: https://www.saudementaldf.com/observatorio.
5 https://mnpctbrasil.wordpress.com/2025/03/27/as-comunidades-terapeuticas-em-evidencia-o-que-dizem-as-avaliacoes-e-fiscalizacoes-do-estado-brasileiro/.
6 FANON, F. Pele negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
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