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O que define um revolucionário? E quem define?
Publicado em: 13 de junho de 2025
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Henrique Canary
Henrique Canary
Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.
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Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.
"Calmaria", Nikolai Dubrovskoi, 1890.
Há uma dificuldade com o conceito de revolucionário: com o passar dos anos, ele tem perdido concretude. Aqui quero ser muito bem compreendido: não é que o conceito já não importe. Não é que tenham desaparecido as diferenças entre revolucionários e reformistas. Ao contrário, elas seguem existindo e são decisivas para se entender a história e o mundo atual. Mas a definição de revolucionário, tal como tem sido operada por muitas organizações socialistas, deixou de ser uma chave explicativa da posição dos distintos setores da esquerda e se tornou uma mera identidade, e das mais abstratas.
Em um sentido, o conceito se tornou demasiado amplo. Em outro, demasiado estreito. Demasiado amplo porque abarca um conjunto de organizações que não possuem qualquer unidade programática, política, organizativa ou metodológica. Apenas a autorreivindicação da identidade abstrata de revolucionários. Demasiado estreito porque tem sido utilizado como instrumento de luta sectária entre correntes: é uma espécie de status, do qual são excluídos todos aqueles que não concordam comigo, que não pertencem ao meu coletivo, que não se filiam à minha tradição.
Se ser revolucionário é a minha identidade essencial, por que sou tão diferente dos militantes daquela outra organização que também se autodeclara revolucionária? Ora, deve haver algo de errado com a identidade dos outros! A conclusão é inescapável: não são verdadeiros revolucionários! Só eu sou.
De qualquer ponto de vista que se analise, é preciso refletir sobre o conceito. Se não para encontrar respostas, ao menos para levantar perguntas. Tal é o objetivo deste artigo.
O que é o reformismo?
O reformismo não é uma sensibilidade política mais moderada. Isso é uma simplificação grosseira. O reformismo é uma teoria política, uma forma de entender a transição ao socialismo. Ele surgiu no interior do marxismo no final do século 19 na pessoa de Eduard Bernstein. Até aquele momento, era hegemônica dentro do nosso movimento a ideia de que o socialismo só poderia vir ao mundo por meio de uma ruptura violenta da ordem social e política vigente e a instauração da ditadura do proletariado, ou seja, o governo exclusivo dos explorados e oprimidos hegemonizados pela classe trabalhadora. Essa ruptura abrupta da ordem era chamada de revolução socialista. Ela era necessária porque se sabia que nenhuma classe dominante abre mão voluntariamente do poder. Ao mesmo tempo, o marxismo não previa os mecanismos concretos dessa ruptura. Isso abria um leque de possibilidades que cada teórico ou organização nacional explorava livremente. Marx e Engels chegaram a levantar a hipótese, por exemplo, de que o partido operário chegasse ao governo via eleições (Engels pensou essa hipótese para a Alemanha, Marx para a Inglaterra). Nesse caso, a ruptura se daria porque o partido burguês atacaria o resultado eleitoral, forçando o partido proletário a dirigir uma ação de massas em defesa da própria democracia. Essa ação defensiva não deixaria de ser radical, possivelmente armada e provavelmente violenta. Não há nessas elaborações uma única gota de reformismo. A ruptura é evidente. O que se discutia era a sua forma concreta, os seus mecanismos; se quisermos, o seu “disfarce” político.
Mas as coisas mudam de figura com Bernstein. O teórico alemão partia do fato real da expansão da classe operária em relação ao conjunto da sociedade. Ele via que a classe trabalhadora se tornava cada vez mais numerosa. E também menos miserável. Daí tirava uma conclusão decisiva: o socialismo poderia ser atingido via um alargamento da democracia e uma ampliação ininterrupta das conquistas sociais. Essa democracia, onde a classe operária teria uma papel cada vez maior, implementaria uma série de reformas que seriam apoiadas por todo o povo. Assim, não seria necessária uma ruptura. Através do acúmulo de reformas, a sociedade capitalista se transformaria gradualmente em sociedade socialista.
Essa visão se tornou predominante entre os partidos socialistas e social-democratas da Europa ainda na primeira metade do século 20. E é claro que ela não parou no tempo. Evoluiu como teoria e prática política. Quando os grandes partidos operários chegaram ao poder (principalmente na Europa do pós-guerra), se depararam com uma situação econômica relativamente favorável, na qual o capital estava disposto a ceder terreno, ou seja, admitia a implementação de importantes reformas sociais (pelo menos na Europa). Foi assim que surgiu o Estado de bem-estar social: do medo da burguesia de enfrentar o proletariado europeu em uma nova rodada de revoluções no continente. Foi o auge do reformismo. Quando o fôlego da situação econômica do pós-guerra se esgotou, se encerraram também as possibilidades de novas reformas e mesmo as antigas conquistas passaram a ser atacadas.
Diante desse fato, o reformismo novamente se adaptou. Primeiro, ao invés de promover reformas, passou a dizer que era preciso administrar o sistema e proteger o que já se tinha porque não era mais possível conquistar nada de novo. Depois, quando o neoliberalismo resolveu destruir o Estado de bem-estar social, o reformismo começou a afirmar que as contrarreformas eram inevitáveis e que a tarefa estava em aplicá-las da melhor maneira possível porque não havia alternativa.
Assim, de uma força política que defendia e aplicava reformas progressistas “rumo ao socialismo”, o reformismo acabou se tornando uma corrente que meramente administra o capitalismo, não apenas sem fazer reformas (um “reformismo sem reformas”), mas inclusive realizando o trabalho sujo exigido pelo capital: corte de direitos, ataques econômicos, guerras etc. Essa estratégia política de gerenciamento do capitalismo se mantém viva até hoje nos grandes partidos operários e social-democratas. Ou seja, o reformismo moderno é a administração e defesa consciente do capitalismo, a agitação de sua inexorabilidade. É um horizonte vazio de qualquer paisagem.
O etapismo e uma injustiça histórica
Etapismo e reformismo são comumente igualados, mas não representam exatamente a mesma coisa e isso provocou muita confusão, além de (a meu ver) uma grande injustiça histórica.
No esquema geral elaborado por Marx (ao final de sua vida, ele chegou a pensar outras hipóteses, mas que não nos interessam tanto aqui), os países mais desenvolvidos mostravam o caminho aos países menos desenvolvidos. Para haver socialismo, era preciso antes haver capitalismo. Não era possível saltar do feudalismo ao socialismo sem passar antes por uma longa etapa de desenvolvimento capitalista. Então, a Europa Ocidental estava madura para o socialismo. Mas e a Europa Oriental (principalmente a Rússia), o Oriente, a África e a América Latina? Esses países precisavam de uma revolução burguesa antes de fazerem uma revolução socialista. Ou seja, a revolução socialista se daria em duas etapas: 1) uma etapa burguesa, onde o proletariado conquistaria a democracia formal e se fortaleceria enquanto classe para a disputa do poder e 2) uma etapa socialista, em que o proletariado faria sua revolução e estabeleceria seu próprio governo.
Foi exatamente esse debate que atravessou o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) entre 1905 e 1917. Os mencheviques representavam a ala ortodoxa da social-democracia russa. Apoiados em Marx, diziam que na Rússia o capitalismo não estava desenvolvido e que por isso, antes da revolução proletária, era preciso uma revolução burguesa que levasse a burguesia ao poder contra a autocracia tsarista. Essa revolução burguesa inauguraria uma longa etapa de desenvolvimento capitalista (democracia, parlamento, eleições etc.), o que depois abriria a possibilidade da revolução proletária. Se isso era assim, então era preciso apoiar a burguesia russa em sua luta pelo poder. O proletariado seria a ala esquerda de uma aliança entre classes, mas a revolução seria dirigida pela burguesia. Ou seja, tarefas e sujeito social da revolução coincidiam. É o que se convencionou chamar revolução por etapas.
Já Lênin e os bolcheviques reconheciam que a revolução russa era burguesa (país atrasado semifeudal), mas negavam que a tarefa central fosse o estabelecimento de uma república parlamentar. Apoiando-se não em uma doutrina abstrata, mas na análise concreta da vida russa, diziam que a tarefa principal da revolução era a distribuição das terras aos camponeses – uma tarefa burguesa, realizada historicamente pela burguesia em países como a França. Acontece que na Rússia, o campo era capitalista e os latifundiários eram burgueses. Ora, se isso era assim, então essa revolução (burguesa por sua tarefa) não poderia ser dirigida pela burguesia. Como a burguesia poderia dirigir uma revolução cuja principal tarefa era arrancar-lhes as terras? Quem a dirigiria então? Segundo Lênin, uma coalizão entre proletários e camponeses. Assim, uma aliança proletário-camponesa dirigiria uma revolução burguesa. Tarefa e sujeito social não coincidiam. Foi o que Lênin chamou de ditadura democrática do proletariado e do campesinato. Essa ditadura democrática abriria uma etapa em que o proletariado poderia conquistar a hegemonia no seio da sociedade e instituir a sua própria ditadura, ou seja, iniciar a transição ao socialismo. De uma forma ou de outra, a concepção de Lênin e dos bolcheviques também implicava em uma revolução por etapas. Mas em Lênin, essa concepção é mais complexa, mais aberta, menos dogmática do que nos mencheviques.
O que aconteceu entre fevereiro e outubro de 1917 na Rússia? Ora, os mencheviques levaram às últimas consequências sua teoria de revolução por etapas. A burguesia havia derrubado o tsar, ou seja, feito sua revolução democrática. Segundo a lógica menchevique, era preciso proteger essa revolução, desenvolvê-la, evitar que se perdesse. Isso significava apoiar o Governo Provisório com todos os seus problemas e contradições. Primeiro, um apoio desde fora. Depois, o ingresso no gabinete. O Comitê Executivo dos Sovietes, órgão do duplo poder, deveria ser o instrumento máximo do proletariado, mas sempre como ala esquerda de uma revolução que ainda não era socialista, ainda não era especificamente proletária. Já os bolcheviques entendiam o papel reacionário e submisso da burguesia russa e, apoiando-se na existência dos sovietes, consideravam que era possível e necessária a passagem imediata à etapa socialista da revolução.
Pode-se e deve-se criticar a política menchevique entre fevereiro e outubro de 1917 porque ela ignorava o real desenvolvimento das classes sociais russas e os laços do país com o imperialismo, que impediam na prática que a burguesia cumprisse qualquer papel progressista e se comportasse como lacaia do capital inglês e francês. Mas não se deve confundir essa linha errônea com reformismo. Os mencheviques eram revolucionários. Pelo menos em 1917. Sua estratégia não era a administração do capitalismo. Era consolidar a revolução burguesa como etapa necessária à revolução socialista. Por isso se opuseram à insurreição de outubro. Porque consideravam que se tratava de um golpe ultraesquerdista que condenaria ao desastre a revolução pela qual tanto lutaram (nessa avaliação, aliás, eram acompanhados por alguns bolcheviques, como Kámenev e Zinóviev, que nem por isso deixavam de ser quadros decisivos da fração). Os mencheviques eram politicamente mais moderados em tudo o que faziam, mas isso é outra questão. Daí a serem reformistas, há uma distância. A pecha de reformistas veio a posteriori, fruto de outros desenvolvimentos. Lênin sabia disso e os tratava com respeito, ainda que fosse feroz na luta política. Qualificava-os de oportunistas, mas não de reformistas. Ou seja, uma caracterização política, não essencialista. Manteve até o fim da vida relações próximas com seu amigo Mártov, e nunca desistiu de tentar ganhá-lo para o bolchevismo. É verdade que a Guerra Civil polarizou tudo, as organizações se deslocaram e muitos mencheviques pegaram em armas contra os bolcheviques. A maior parte da organização, no entanto, preferiu o exílio e vários militantes ingressaram no bolchevismo e até no governo.
Na cultura do movimento comunista internacional costuma-se pensar em termos de bolchevismo x menchevismo, como um sinônimo da oposição entre revolucionários e reformistas. Mas isso é uma aplicação abusiva do conceito de reformista. A oposição bolchevismo x menchevismo teve uma história mais complexa, pertence especificamente ao processo russo e não reflete uma oposição geral entre reforma e revolução.
Quem é o revolucionário?
Assim como no passado, também hoje seria importante evitar as generalizações simplistas na caracterização das correntes. A questão importa porque diz respeito à unidade-separação entre revolucionários e reformistas. É possível unir todos os revolucionários apenas sobre a base de que são revolucionários? A história mostrou que não. A identidade revolucionária é um critério demasiado amplo e abstrato. Ao mesmo tempo, importa muito porque não se pode construir uma organização estratégica que flutue entre reforma e revolução. A questão reside em saber quais as questões presentes que realmente separam os reformistas dos revolucionários e unem os últimos. Precisamos ter unidade em tudo? Aparentemente, não. Mas então sobre o que precisamos concordar?
Não sei. Mas talvez seja bom começar por ter uma postura aberta. E refletir. Podemos negar a classificação de revolucionário ao menchevique que, em maio de 1917, odiava o tsar e lutava honestamente no interior dos sovietes pelo desenvolvimento da revolução burguesa na Rússia porque pensava que assim chegaria mais rápido à revolução proletária? Eram reformistas aqueles militantes dos partidos comunistas que combateram nas brigadas internacionalistas na Espanha em 1936, ainda que estivessem lutando por uma república burguesa? Eram reformistas aqueles que pegaram em armas para resistir à ditadura militar no Brasil na década de 1960 e 1970, ainda que se possa criticá-los por ignorar o movimento real da classe operária naquela época?
Mas mesmo isso é passado. O mais importante é: será um reformista este que está ao meu lado agora, que odeia o capitalismo tanto quanto eu, que enfrenta os patrões e o fascismo junto comigo, mas que pertence a outra organização, com outro programa, outra visão de mundo, outra política e outra tradição? Temos certeza que a linha que nos separa é a mesma que separava Lênin de Bernstein?
Como dissemos acima, a diferenciação entre reformistas e revolucionários segue tendo todo o sentido do mundo. Mas os conceitos precisam ser dialéticos e revelar a verdade em processo. Talvez devêssemos reconhecer que a definição não é fácil e que não somos bons juízes nem de nós mesmos, nem daqueles que não pensam como nós. E às vezes julgamos mal principalmente os que estão mais próximos, os mais parecidos conosco. Talvez devêssemos reconhecer que revolucionário é uma definição dinâmica, composta por um conjunto de fatores, que incluem a visão de mundo, o programa, a política, a moral e a ética, a história de vida e a autodefinição consciente – uma síntese de múltiplas e complexas determinações; que há, portanto, muitas maneiras de ser revolucionário e que a nossa é apenas uma. Repetimos: não se trata de unir todos os revolucionários em uma utopia romântica, mas de criar condições para que aqueles que querem se unir se unam. No final, não somos nós que julgamos. Sempre foi e sempre será a história.
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