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O partido revolucionário imaginário


Publicado em: 28 de maio de 2025

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Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Valerio Arcary

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Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Não há ninguém que não se engane.

Provérbio popular português

1. A esquerda socialista brasileira nunca esteve tão fragmentada como hoje. Existem no Brasil mais de vinte organizações de esquerda, em estágios diferentes de construção e influência. Talvez a metade com pelo menos centenas de militantes, algum alcance nacional, influência sindical e ou estudantil, implantação popular, capacidade de iniciativa política, presença no debate teórico-programático, audiência nas redes sociais, presença na legalidade, representação parlamentar e imprensa regular e outras menores, que se reivindicam marxistas-revolucionárias. No interior do PT há três correntes internas longevas: a Democracia Socialista, o Trabalho e a Articulação de Esquerda. Mas, além delas há outras correntes que reivindicam alguma identidade com o marxismo e, mesmo dentro da CNB, há quem se declare comunista. No interior do PSol há mais de dez correntes internas que se autodeclaram, orgulhosamente, socialistas: Revolução Solidária, Primavera, Resistência, Insurgência, Subverta, MES, Fortalecer, Rebelião Ecossocialista, Centelhas, APS, entre outras. São pelo menos quatro partidos comunistas com graus de influência muito diferenciada. PCdB, PCB, PCR, e PCBR além de vários outros pequenos círculos. Mas, maior do que a maioria destas correntes, temos o Movimento Brasil Popular que surgiu da divisão da Consulta Popular, impulsionada, originalmente, pelo MST. E ainda temos o PSTU e, à sua maneira esdrúxula, a Causa Operária. A dispersão é avassaladora. Muitos ativistas honestos se perguntam o que poderia explicar esta catástrofe. Algo tão complexo tem muitas causas. Mas uma das razões é que a ideia de que existiria um núcleo que seria o embrião do partido da revolução brasileira ainda está presente. Mas este “partido revolucionário” imaginário é somente uma ilusão. Quem são os “mais revolucionários”? Como explicar esta anomalia?

2. Historicamente, existiram dois grandes campos na esquerda, os moderados e os radicais. Mas o movimento socialista internacional, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, não se dividiu somente em reformistas e revolucionários. Estes foram os dois campos programáticos decisivos no marxismo, mas, assim como os que se reivindicaram gradualistas aprisionaram na sua órbita à esquerda um espectro, o centrismo, as correntes identificadas como revolucionárias precisaram descolar de suas sombras ultra-esquerdistas. Ou seja, as divisões na esquerda não são simples e, indo além das duas grandes estratégias, um programa de regulação do capitalismo por reformas que garantam expansão de direitos para os trabalhadores, e uma aposta na ruptura política que permita a conquista do poder apoiada em uma maioria social, existiram sempre outros dois campos. Um à esquerda das posições mais oportunistas, e outro no voluntarismo extremista. Os centristas abraçaram, grosso modo, a defesa de uma transição ao socialismo pela radicalização de um processo de reformas, por temor a insurreição e a provável guerra civil. A ultraesquerda aderiu à perspectiva da iminência da revolução pela razão inversa, o temor à adaptação às rotinas sindicais-eleitorais de aparelhos que desenvolvem interesses próprios.

3. Encontramos, portanto, quatro campos na história da esquerda mundial. Uma resposta para a principal divisão da esquerda pode ser encontrada em fatores objetivos. A capacidade do sistema, quando em certas condições histórico econômicas e determinadas conjunturas políticas, como na Europa e nos EUA fim do XIX, ou nos países da Tríade nos trinta anos pós-1945, de absorver reivindicações parciais, se ameaçados pelo perigo de extensão de revoluções. Há reformistas porque reformas foram possíveis. No Brasil, a força resiliente do lulismo repousa na experiência das reformas conquistadas em quatro mandatos entre 2003/16. Não pode ser ignorada, também, a pressão que das classes proprietárias incentivando lideranças moderadas, que não deixaram de ser promovidas. Por outro lado, o movimento socialista foi, desde a sua fundação, internacional e seus desenlaces foram indissociáveis dos confrontos entre revolução e contrarrevolução em escala mundial. A existência de Estados que reivindicavam o projeto socialista, em sociedades em que processos revolucionários levaram à expropriação do Capital, mas que permaneceram isolados, exerceu uma poderosa autoridade sobre a esquerda mundial durante décadas: o “nacionalismo da URSS”, ou seja, o campismo socialista ou estalinismo foi uma das ideologias mais influentes no século XX. A defesa dos interesses desses Estados – e dos aparelhos burocráticos que se apropriaram de seu controle – sacrificando os ideais do internacionalismo, produziu importantes divisões no proletariado, e uma desmoralização devastadora quando da restauração capitalista. Além das diferenças ideológicas, a estratificação social do mundo do trabalho foi ficando mais complexa. Não há como desconhecer que o proletariado contemporâneo foi se diversificando a tal ponto, que a sua representação por um único partido, há muito deixou de ser, politicamente, possível na maioria das sociedades urbanizadas. Não obstante essa diversidade social é insuficiente atribuir somente à heterogeneidade social as dispersões na esquerda. Análises sociológicas precisam ser historicamente contextualizadas. Há uma história complexa de disputa de visões do que seriam as possibilidades e limites do capitalismo, e que remete às reviravoltas dos processos revolucionários do século XX. As vitórias revolucionárias incendiaram esperanças militantes, renovação teórica e unificações políticas. E as derrotas alimentaram os nomadismos ecléticos dos partidos, a dispersão teórica do marxismo e, finalmente, diásporas sociais na intelectualidade. Mas à esquerda do campo reformista, que no Brasil se organiza, essencialmente, no interior do PT pela sua corrente majoritária, a CNB, há dezenas de “micropartidos” revolucionários. Por quê?

4. Se não são fatores objetivos que explicam a divisão, devemos procurar causas subjetivas. Uma das razões chaves da situação de uma esquerda fraturada, estilhaçada e dispersa é o sectarismo. O sectarismo é muito negligenciado. Uma percepção superficial do tema pode levar à associação indiferenciada de ultra esquerdismo e sectarismo. Essa primeira percepção não é de todo incorreta, mas é insatisfatória. É razoável afirmar que as organizações ultimatistas foram, predominantemente, doutrinárias na teoria, e tiveram um quadro ideológico de referências muito fechado, e reflexos defensivos extremos. No entanto, embora muito associados, os grupos ultra-esquerdistas não foram sempre mais sectários que outras correntes no movimento socialista, nem os sectários foram todos ultras. Não é incomum que algumas correntes reformistas sejam muito flexíveis com organizações com posições ainda mais moderadas, mas, furiosamente, sectárias com aquelas à sua esquerda. O ultra-esquerdismo pode ser definido como uma doutrina, se considerarmos que o anarquismo antecedeu, no século XIX, grande parte do que seria o repertório do ultra-esquerdismo do século XX. Já o sectarismo é mais uma conduta política que elegeu como prioridade a defesa de interesses de grupo. Sectarismo político deve ser entendido como aparelhismo, um conjunto de procedimentos de autoafirmação. Tendências sectárias têm muita dificuldade para realizar a frente única, mesmo quando acordos eram possíveis para campanhas conjuntas, porque identificam os potenciais aliados, em especial, os mais próximos, como inimigas. A autoconstrução e, pior a autoproclamação é o sintoma mais recorrente do sectarismo.

5. Outra dimensão do problema é a existência de seitas. Nem todas as correntes sectárias são seitas políticas. Seitas são organizações hipercentralizadas e incorrigíveis, isto é, incapazes de reagir às pressões sociais e políticas dos meios em que decidiram agir. Os anarquistas dos “Amigos de Durruti” na Catalunha nos anos 1936/ 37 da revolução espanhola, por exemplo, eram ultra-esquerdistas. Defenderam, ainda sob a monarquia, a legitimidade das ações armadas vingativas como os ataques à bomba contra prédios públicos, e atentados punitivos contra autoridades odiadas. Herdaram o fascínio dos fenianos irlandeses, dos esseristas russos – os militantes do Partido Socialista Revolucionário – e de uma parcela do anarquismo pelas táticas terroristas. Não obstante, seria superficial ou até injusto considerá-los uma seita. Não tiveram tempo sequer para, politicamente, serem tão homogêneos a ponto de constituir uma organização centralizada. Apesar da grande liderança de Durruti, eram sensíveis às pressões políticas externas, e mantiveram relações fraternais com os trotskistas. Sua iniciativa política teve impacto na realidade. Não eram nem política, nem socialmente, marginais. Foram capazes de organizar os setores de massas mais combativos do proletariado em Barcelona na luta contra o capitalismo e o fascismo. Conquistaram a admiração da esquerda mundial pelo seu heroísmo nas trincheiras da Guerra Civil em Aragão, e estiveram entre os mártires da defesa de Madri. Atuaram em frente única política com diferentes correntes da esquerda – como o Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM) e as juventudes do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) – em distintas conjunturas, e fizeram frente única militar com todas as forças republicanas contra o fascismo. O julgamento de uma organização como uma seita exige considerar outros fatores além da linha política: sua presença social, seu regime interno e, sobretudo, sua capacidade de refletir sobre sua própria história. Seitas são imunes às pressões externas. Seitas socialistas reduziram-se a grupos marginais. Mas, a marginalidade não é somente uma questão de tamanho, embora a maioria das seitas tenham sido liliputianas, ou seja, invisíveis. A marginalidade político-social se transforma numa armadilha labiríntica. O que define uma seita não é o seu tamanho, mas sua marginalidade crônica, sua impermeabilidade à pressão social e política, e um regime interno burocraticamente deformado e, com o tempo, uma direção que cultiva a própria clarividência messiânica, politicamente, estéril.


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