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O enigma China

Um diálogo com Elias Jabbour e Valério Arcary


Publicado em: 28 de maio de 2025

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Gabriel Casoni, da redação

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A China é, sob qualquer ângulo de análise, uma realidade incrivelmente complexa. Mas não é de difícil apreensão devido apenas ao seu gigantismo, inúmeras particularidades e enorme distância geográfica e cultural que a separa de nós. A China é um enigma, sobretudo, porque é uma formação econômico-social contemporânea original. Sendo um produto singular do desenvolvimento histórico desigual e combinado, apresenta características novas e imprevistas em sua trajetória de ascensão meteórica.

Para pensar o gigante asiático, é instigante ler a crítica que Elias Jabbour publicou recentemente ao texto de Valério Arcary, A excepcionalidade chinesa. Arcary argumenta que a China, do ponto de vista econômico-social, é um híbrido que deve ser entendido como um “capitalismo de Estado”. No tocante ao regime político, avalia que a República é controlada exclusivamente pelo Partido Comunista. Isto é, a burguesia chinesa ainda não domina o Estado.

Em polêmica, Jabbour sustenta que a China trilha um caminho específico de desenvolvimento socialista e que possuí um regime político particular coerente com esse objetivo estratégico. Elias concorda com Valério que a classe capitalista não dirige o Estado chinês, mas afirma que existe uma “vibrante democracia de base”, enquanto Arcary avalia que há uma ditadura de partido único.

Neste artigo, dialogando com as proposições dos autores referidos acima, pretendo tecer algumas análises, com a finalidade de contribuir singelamente à reflexão marxista sobre China. Para tornar a leitura mais fluída, dados, citações e referências bibliográficas que embasam uma série de afirmações do texto serão apresentadas nas notas de rodapé.

China: um híbrido que se move para qual direção?

O império milenar chinês, formado dois séculos antes de Cristo1, foi destruído e humilhado pelo imperialismo capitalista nos séculos XIX e XX2. Em 1949, a Revolução Socialista triunfante libertou o país da ocupação estrangeira e abriu o caminho ao desenvolvimento econômico e social em bases não-capitalistas, quer dizer, por meio da apropriação pública dos meios de produção privados. A burguesia foi expropriada e fugiu do país. Mesmo antes das grandes reformas iniciadas em 1978 por Deng Xiaoping, houve uma etapa de expressivo crescimento econômico e melhorias sociais3.

Mas o imenso atraso herdado da dominação e exploração imperialista (a China era considerado o país mais pobre do mundo em 1949) cobrou seu preço, conjuntamente com as consequências econômicas deletérias advindas do “Grande Salto para a Frente”4 e da “Revolução Cultural”5. O país era ainda muito pobre em meados dos anos setenta, apesar dos avanços obtidos desde a Revolução6. Tal como ocorreu com a URSS, se evidenciou outra vez na história que não seria possível um salto direto de uma economia capitalista rudimentar e dependente para uma estrutura produtiva socialista rica e desenvolvida.

Como a teoria marxista e a prática histórica sugerem, a transição ao socialismo necessariamente implica um longo período no qual elementos do “velho” sistema (capitalismo) convivem com elementos do “novo” (socialismo)7. Em termos de dinâmica, o ponto central é identificar o sentido da evolução de uma dada formação heterogênea. Ela caminha na direção da supressão das relações capitalistas ou, inversamente, da expansão dessas?

Outro aspecto fundamental a ser analisado é o caráter da relação recíproca entre elementos econômico-sociais de distintos sistemas. Por exemplo, numa dada formação concreta, o setor público-estatal está estruturado principalmente para servir à acumulação privada de capital ou ao bem-estar da maioria da população? Não menos importante é caracterizar a natureza de classe do Estado vinculado a essa formação econômico social. Qual classe social detém o poder político, controlando o aparelho estatal como um todo?

Parêntesis teórico à parte, voltemos à China. A decisão estratégica do Partido Comunista, a partir de 1978, foi a de iniciar uma série de reformas orientadas à retomada controlada das relações econômicas capitalistas. A restauração progressiva da propriedade privada, privatizações de parte considerável do parque produtivo, o fim da coletivização da produção agrícola e o estímulo ao capital externo foram motores desse processo de abertura ao capitalismo8.

A reconfiguração produtiva foi concebida para alavancar o crescimento, sobretudo, em base à exportação de bens industriais9. Um gigantesco fluxo de capitais estrangeiros afluiu ao país para investimentos industriais, com destaque aos investimentos norte-americanos10. A mão de obra abundante e relativamente barata, os incentivos estatais e um mercado interno vasto foram atrativos irrecusáveis ao grande capital10. Atualmente, as empresas se aproveitam também de uma força de trabalho altamente qualificada e de uma base tecnológica e infra-estrutural muito avançada12. Fatores que elevam a produtividade do trabalho e, desse modo, as margens de rentabilidade dos negócios. A China se converteu, primeiro, na “fábrica do mundo”, e, depois, no parque industrial mais avançado do planeta, em termos de produtividade e inovação tecnológica13.

Como produtos sociais inequívocos desse grandioso processo de transformação, houve o surgimento e o florescimento, ao longo das últimas décadas, de uma burguesia interna robusta, de um lado, e, de outro, de uma gigantesca classe trabalhadora no setor privado, seja de propriedade estrangeira ou nativa14. Entre as duas classes fundamentais, emergiu uma camada média baseada nos pequenos e médios negócios e nos cargos gerenciais, administrativos, científicos e técnicos15. A atual configuração de classes da China espelha a estruturação social de uma sociedade capitalista normal, inclusive do ponto de vista da desigualdade social, que ampliou bastante entre os anos 80 e 2008, caindo um pouco na última década.16. A peculiaridade do caso chinês reside, porém, no papel político e econômico do Estado na relação com e entre as classes sociais.

As características específicas desse processo de restauração capitalista são várias. Cito as duas mais significativas. Primeiro, no que se refere ao setor privado17. Apesar de sua impressionante expansão, ele sempre esteve submetido ao comando do setor estatal18. Isto é, a propriedade e o planejamento estatais ainda dirigem a economia. As proporções entre o público e o privado variaram ao longo das últimas décadas, mas a posição de mando do Estado manteve-se preservada até aqui19. Importa notar que o sistema financeiro é hegemonizado pelo Estado, o que permite o controle dos fluxos de capitais20.

Segunda característica. Embora o setor estatal tenha conservado a direção do complexo industrial e financeiro, é incontestável o caráter capitalista da inserção chinesa na economia mundial21. O papel da China no comércio global, como o maior exportador de mercadorias do globo, não permite outra conclusão, dado que o mercado mundial opera sob a lógica intrinsecamente capitalista, baseada na lei do valor.

O entrelaçamento com o sistema capitalista mundial também se revela nos investimentos chineses em ativos financeiros e produtivos mundo afora22. Há anos empresas chinesas — estatais, privadas ou mistas — estão comprando reservas minerais e de petróleo, portos, aeroportos, terras agricultáveis e instalando fábricas dos mais variados ramos produtivos em todos continentes em termos diretamente capitalistas23. Isto é, com a finalidade do lucro em base a propriedade privada, a exploração da força de trabalho e as leis do mercado. A relação desigual de troca com os países do Sul Global — na qual a China, fundamentalmente, importa produtos primários e exporta bens industriais — revela outra face dessa inserção capitalista no mercado mundial24.

Portanto, para uma correta avaliação de totalidade, é preciso observar a formação econômico-social chinesa também pelo ângulo de sua integração ao circuito econômico global do capitalismo, e não somente do ponto de vista da sua constituição interna. Elias Jabbour, em suas análises, acaba diminuindo ou desconsiderando o significado da inserção da China ao sistema capitalista-mundo.

Com isso, considero que a formação econômico-social chinesa é determinada pela intersecção entre duas dimensões fundamentais. Existe a dimensão propriamente capitalista, baseada na propriedade privada, estrangeira ou doméstica. E há a dimensão “não capitalista”, assentada na propriedade e no planejamento estatais. Descrevemos como setor “não capitalista” na medida em que o enorme segmento público-estatal não opera fundamentalmente por meio da lógica da acumulação privada de capital — ainda que possa ser funcional à acumulação privada de capital, por meio do patrocínio das relações capitalistas.

Como conclusão sintética provisória, podemos classificar a China como uma “economia mista” sob comando do Estado, se a ênfase recair no caráter composto das formas econômicas internas; ou de um “capitalismo de Estado”, se o acento da definição se concentrar na dinâmica capitalista imprimida pela incorporação do país no sistema econômico global.

Transição controlada ao capitalismo ou desenvolvimento socialista original?

Valério Arcary sustenta que a China é um híbrido econômico-social que pode ser melhor definido como um capitalismo de Estado. Já Elias Jabbour argumenta que se trata de um modelo de desenvolvimento socialista. Ambos reconhecem façanhas chinesas, como a retirada de mais de 800 milhões de pessoas da pobreza25, o desenvolvimento tecnológico monumental26 e a adoção de uma política econômica nas últimas décadas distinta do receituário neoliberal hegemônico27. Porém, divergem do sentido da evolução da China.

Amparado nas evidências disponíveis, algumas delas apresentadas nas notas de rodapé, considero que a direção do movimento econômico-social da China, desde de 1978, dá razão à caracterização central apresentada por Valério. Essa dinâmica se apresenta notadamente no expressivo crescimento das relações capitalistas no interior da economia chinesa verificado nas últimas décadas, bem como no inevitável caráter capitalista da sua inserção no mercado mundial28.

Essa aferição geral não significa ignorar características específicas e ritmos próprios desse processo. Vale notar que a restauração capitalista não é ainda completa, embora seja qualitativa, pela magnitude que as relações capitalistas assumiram na totalidade econômico-social. A restauração do capitalismo está limitada, por enquanto, pela preservação da posição dirigente do Estado na economia. Essa condição singular, caracterizada pela subordinação do mercado ao Estado, ajuda a explicar o porquê a China não vivenciou nenhuma queda anual do PIB nas últimas décadas29. Um caso excepcional.

Para se ter um parâmetro histórico comparativo, em constraste com a trajetória chinesa ascendente, convém tomar nota do desmoronamento econômico e social da Rússia (e dos demais países que conformaram a URRS) após a terapia de choque neoliberal que presidiu a restauração capitalista por lá30. Na ex-União Soviética, nos anos noventa, o mercado privado se apropriou vorazmente do parque produtivo e do sistema financeiro. Um nova e poderosa classe de oligarcas capitalistas, muitos deles oriundos da alta burocracia do Partido Comunista, se formou rapidamente, se apropriando diretamente do poder estatal. O capitalismo passou a prevalecer na economia e a classe burguesa dominou o Estado.

A segunda peculiaridade do processo de transição controlada ao capitalismo na China, muito bem apontada no texto de Arcary, é que não houve a retomada do poder do Estado pela classe capitalista, tal como ocorreu na Rússia. Ou seja, a emergente burguesia chinesa, que detém enorme riqueza econômica, não controla ainda o poder político do Estado, que está monopolizado pelo Partido Comunista da China (PCCh).

O Estado, sob estrito controle do PCCh, se eleva acima das classes sociais. A burocracia do partido-Estado, ao manejar o conjunto das instituições, arbitra do alto os conflitos e interesses do proletariado, da burguesia e das classes médias. A prosperidade material do país confere ao partido-Estado legitimidade política junto à população — no que podemos denominar como a dimensão consensual da sua dominação política.

Por seu turno, a caráter autoritário do regime político assegura ao PCCh poderosos meios de coerção para fazer frente aos sinais de insubordinação, seja da classe trabalhadora, seja da burguesia. Trata-se, portanto, de uma ditadura sobre todas as classes. Por exemplo, o Estado, por vezes, conduz ações para limitar as ambições dos capitalistas chineses, impondo limites, punições e controles31. Em outros momentos, dá incentivos ao desenvolvimento e enriquecimento dessa mesma burguesia32.

Em perspectiva de médio e longo prazo, será preciso avaliar se a burocracia dirigente conduzirá à plena restauração do capitalismo, ainda que haja a manutenção de um regime autoritário. Nessa hipótese, a própria cúpula partidária se tornaria uma classe capitalista poderosa. Há sinais de “aburguesamento” da elite dirigente do Estado, com muitos burocratas se enriquecendo por vias legais e ilegais (corrupção)33. Sabidamente há membros do Partido Comunista se tornando capitalistas e vice-versa. Essa dinâmica não poderia ser diferente, dado que qualquer casta burocrática privilegiada tende à pretensão de se tornar, ela própria, uma classe proprietária. Mas, aparentemente, não existe, por enquanto, um processo mais amplo de conversão do comando partidário-estatal em grandes proprietários burgueses, tal como ocorreu na Rússia nos anos noventa.

Pode-se pensar em outra hipótese de desfecho, que me parece improvável dada a dinâmica atual, que é a seguinte. Diante de uma eventual ascensão política da classe trabalhadora e/ou de circunstâncias excepcionais, como num caso de uma grande guerra e conflito agudo com o imperialismo hegemônico, o Estado voltar a dirigir a transição econômico-social no sentido anticapitalista.

Democracia de base ou um regime autoritário unipartidário?

Elias Jabbour é um conhecido estudioso da realidade chinesa. Suas elaborações contribuem para a compreensão do tema. No entanto, o autor parece, por vezes, cair em exagero propagandístico do regime chinês, numa espécie de apologismo acrítico. Isso fica nítido quando Jabbour descreve o sistema político da China como uma “vibrante democracia de base”.

A existência de mecanismos de consulta popular pelo partido-Estado, ainda que possa possibilitar a medição dos sentimentos e opiniões existentes na população, não constitui prova alguma de que haveria democracia na China, muito menos de “base” e “vibrante”. Há uma contradição absoluta entre o conceito de democracia (seja ela socialista ou capitalista) e o monopólio do poder por um único partido.

A ditadura de um único partido pode ser mais ou menos popular, pode estar em maior ou menor sintonia com os sentimentos prevalecentes na população, pode ter mais ou menos êxito na condução da economia. Mas não deixará de ser uma ditadura, enquanto regime político, se não há o direito à organização da classe trabalhadora em diferentes partidos, se não há o direito à livre organização sindical e dos movimentos sociais, se não há direito à liberdade de expressão e crítica para os trabalhadores.

O processo de transição para uma sociedade socialista pressupõe a ampliação progressiva da democracia, porque o socialismo enquanto projeto estratégico não representa unicamente a socialização dos meios de produção, mas também o controle democrático do aparelho estatal pelo proletariado, de modo que o Estado, enquanto força coercitiva, possa ir “definhando” aos poucos, como bem assinala Lenin no livro O Estado e a Revolução. A democracia socialista significa que a classe trabalhadora, em toda sua diversidade de opiniões, pode decidir livremente sobre os caminhos do desenvolvimento econômico, social, cultural etc.

Jabbour acaba, em tom apologético, saudando o aspecto político mais regressivo da China, a manutenção de um regime autoritário de partido único, sem liberdades democráticas à classe trabalhadora. Embora me pareça um equívoco classificar o regime chinês como totalitário ou autocrático, como alardeia boa parte da mídia e a intelectualidade liberais, posto que, por dentro do PCCh, ocorrem lutas políticas e ideológicas entre diferentes correntes de opinião.

Os socialistas e comunistas são intransigentes defensores das garantias democráticas nas sociedades capitalistas. Lutam pela preservação do direito dos trabalhadores de se organizarem e votarem em diferentes partidos, pelo direito da livre organização sindical e dos movimentos sociais, pela liberdade de manifestação, de expressão, de crítica.

As conquistas democráticas sob o capitalismo (incluindo o sufrágio universal), agora ameaçadas pela extrema direita, foram, em grande medida, frutos de muita luta da classe trabalhadora e da esquerda socialista, arrancadas contra a vontade da burguesia. Por que, então, haveríamos de saudar a existência de um regime de partido único que domina um Estado que supostamente constrói o socialismo? Trata-se de um contra-senso com a própria ideia de liberdade e emancipação humanas contidas no projeto comunista de Marx, Engels e Lenin.

China, como decifrar?

Concluímos este texto, já um pouco extenso, com uma breve consideração. A dialética ensina que o objeto de análise deve ser compreendido no movimento de suas contradições. O caráter híbrido da formação econômico-social chinesa é apresentado tanto por Arcary, como por Jabbour. A questão polêmica fundamental, portanto, está na caracterização da China contemporânea. Socialismo em desenvolvimento ou capitalismo de Estado?

O artigo que apresentamos sustenta a hipótese de que a China encontra-se em um processo singular de restauração do capitalismo, num estágio concreto no qual as significativas relações capitalistas existentes estão subordinadas ao Estado, que dirige o processo econômico.

O “capitalismo de Estado” chinês está promovendo um desenvolvimento econômico e tecnológico monumental, colocando a China na liderança comercial e industrial em escala global e na disputa acirrada com os EUA pela hegemonia em diversas outras áreas. Por outro lado, crescem as contradições de classe na China, assim como torna-se visível o caráter capitalista da sua inserção no mercado mundial.

As tensões, os choques e os conflitos internos (entre as classes e entre a burocracia dirigente e as classes) e externos (sobretudo a acirrada disputa com os EUA) irão determinar a evolução desse processo original.

Para a esquerda marxista e socialista, cabe uma leitura realista da China e de suas contradições. Nem a demonizar, nem a endeusar. Compreendê-la criticamente para formular a melhor política, visando os interesses da classe trabalhadora e dos povos oprimidos, dentro e fora da China.

Gabriel Casoni é mestre em História Econômica pela USP e membro da Coordenação Nacional da Resistência-PSOL.

Notas
1 O ano 221 a.C. geralmente é referido como o momento histórico no qual China foi unificada na forma de um grande reino ou império, apesar de já haver vários estados e Dinastias antes disso. A Dinastia Qin foi a responsável por essa unificação. A China constituí a mais antiga civilização ininterrupta do mundo, tendo sendo pioneira, muito antes do surgimento do sistema capitalista, em diversas inovações tecnológicas, incluindo as Quatro Grandes Invenções (bússola, pólvora, papel e impressão) e outras como o ábaco e a lanterna Kongming. A China foi, sem dúvida, a economia mais desenvolvida do mundo por um período de tempo significativo. No século XVIII, a China era a maior economia do mundo, com uma cultura rica e um império próspero. Em meados do século XIX, foi ultrapassada por potências ocidentais.
2 O ponto marcante do início da submissão (e humilhação) da China à dominação imperialista no século XIX foram as Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860). Os conflitos armados entre a Grã-Bretanha e a China resultaram na abertura forçada do comércio chinês ao Ocidente e no estabelecimento do imperialismo britânico na região.
3 Segundo dados levantados por Michael Roberts: “Contrariamente às visões atuais, o crescimento econômico na China antes de 1978, antes das chamadas grandes reformas econômicas, foi forte. Dados oficiais chineses estimam que, de 1949 a 1978, o “valor da produção social” total aumentou a uma taxa média anual de 9% e a taxa de crescimento anual da produção industrial foi de 11,4%. Em 27 anos, a população aumentou em 400 milhões. A expectativa de vida aumentou de 35 anos em 1949 para 63,8 anos em 1975. Esses números oficiais de crescimento são contestados por análises ocidentais. O mais pessimista é o fornecido pelas Penn World Tables, usando fontes do Conference Board, onde o crescimento da China é registrado em apenas 2,4% ao ano, colocando o período de crescimento pré-Deng em um patamar próximo ao do crescimento do G7, superior ao da Índia, mas inferior ao do Japão, Leste Asiático e Brasil.” Artigo completo em China as a transitional economy to socialism?
4 A política econômica promovida por Mao Tsé- Tung nomeada de “Grande Salto para Frente”, implementada entre 1959 e 1961, cujo objetivo central era a elevação abrupta da produção de aço, teve um impacto econômico desastroso. Estima-se que houve queda do PIB de 5% em 1960 e de 10% em 1961. Uma grande fome se instalou no país, levando a morte milhões de pessoas.
5 Os efeitos da “Revolução Cultural”, liderada por Mao, que foi levada a cabo entre 1966 e 1976 e teve como mote o combate aos elementos “burgueses” e “pequeno-burgueses” presentes no governo e na sociedade, levaram ao declínio da produção industrial e agrícola no país, além da desorganização econômica com um todo. O início do período das grandes reformas, em 1978, se dá justamente no contexto da crise econômica e política herdada da Revolução Cultural.
6 Para exemplificar: em 1978, aproximadamente 82% da população da China vivia em áreas rurais. O PIB per capita do país nesse mesmo ano, em relação ao do Brasil, por exemplo, era consideravelmente menor.
7 Trotsky, ao discorrer sobre a aplicação da Nova Política Econômica (NEP) na Rússia soviética, entre 1921 e 1928, aborda a necessidade de existência de elementos capitalistas durante o processo de transição ao socialismo: “O saneamento das relações econômicas com o campo constituiu, sem dúvida, a tarefa mais urgente e espinhosa da NEP. A experiência imediata mostrou que a própria indústria, embora socializada, tinha necessidade dos métodos de cálculo monetário elaborados pelo capitalismo; o plano não podia repousar apenas sobre os dados da inteligência; o jogo da oferta e da procura é, e será por muito tempo ainda, a base material indispensável e o corretivo salvador”. Citação de Revolução Traída, página 57, de Leon Trotsky, publicado editora Sundermann (2005). Lenin, tratando também da NEP, vai no mesmo sentido: “Na Rússia predomina atualmente o capitalismo pequeno-burguês […]. Quem não compreende isso comete um erro econômico imperdoável, ou por desconhecer os fatos da realidade […], ou por limitar-se a contrapor abstratamente o “capitalismo” ao “socialismo”, não se aprofundando nas formas e degraus concretos dessa transição hoje em nosso país”. Citação extraída do texto Sobre o imposto em espécie (o significado da Nova Política e as suas contradições)”.
8 Perry Anderson e Wang Chaohua abordam em detalhes os processos por meios dos quais ocorreu a abertura o capitalismo na China a partir de 1978. Ver textos dos autores no livro “Duas revoluções: Rússia e China”, publicado pela editora Boitempo (2018).
9 A China lidera as exportações industriais mundiais, sendo a maior exportadora em bens e serviços desde 2020. Em 2023, o país também manteve a liderança na produção global de bens manufaturados, sendo responsável por mais de 40% da produção de 500 produtos industriais principais.
10 Luiz Gonza Belluzo discorre sobre o papel fundamental (e suas consequências amplas) dos investimentos norte-americanos na China; “Assim, de um perspectiva geopolítica e geoeconômica, a inclusão da China no âmbito dos interesses norte-americanos é o ponto de partida para a ampliação das fronteiras do capitalismo, movimento que culminaria no colapso da União Soviética e no fortalecimento dos valores e das propostas do ideário neoliberal. A nova relação econômica promoveu o fluxo de investimento dos Estados Unidos para a China e, no sentido inverso, a exportação de manufaturas com ganhos de escala refletidos em preços baixos”. Citação extraída do prefácio de Belluzo (página 13) do livro Duas revoluções: Rússia e China, publicado pela editora Boitempo (2018).
11 A China tem uma variedade de incentivos estatais para atrair investimento estrangeiro, que incluem medidas fiscais, apoio financeiro e regulamentações mais flexíveis. Esses incentivos visam, segundo o governo chinês, promover a abertura econômica, impulsionar o crescimento e diversificar a base industrial do país.
12 Tim Cook, CEO da Apple, afirmou em entrevistas, que na China é possível “encher vários campos de futebol” com engenheiros especializados, enquanto nos EUA a quantidade de engenheiros é muito menor. Ele também destacou que a China já não é vista como um país de baixo custo de mão de obra, mas sim como um país com uma enorme quantidade de trabalhadores altamente qualificados.
13 A China é a líder global na produção e vendas de carros elétricos e híbridos, com a empresa BYD assumindo recentemente a liderança mundial em vendas, ultrapassando a Tesla. A China detém a maior participação no mercado global de veículos elétricos, com 62% das vendas globais em 2023 e nos primeiros oito meses de 2024, e quase 70% das vendas de carros elétricos e híbridos em 2024, de acordo com dados de várias fontes.
14 A China tem 516 bilionários em 2025, de acordo com a Forbes. Este número a coloca como o segundo país com mais bilionários no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Já o banco Credit Suisse afirma que a China, em 2022, tinha cerca de 6,19 milhões de milionários, o que representa 0,6% da sua população adulta total. Este número coloca o país em segundo lugar no mundo em termos de número de milionários, atrás somente dos Estados Unidos. Por outro lado, vale notar o gigantismo da classe trabalhadora chinesa. Segundo o governo do país, em 2024, a indústria chinesa empregava cerca de 29,1% da força de trabalho, representando uma parcela significativa da economia. O número total de pessoas empregadas na China era de 734,39 milhões, das quais 473,45 milhões trabalhavam em áreas urbanas.
15 Segundo o relatório do Centro Europeu para PMEs, em 2022, o número total de micro, pequenas e médias empresas na China ultrapassou 52 milhões.
16 Carlos Aguiar de Medeiros e Isabela Nogueira de Morais demonstram com rigor em artigo científico o avanço da desigualdade social na China desde os anos 80 até 2008. “No início das reformas, em 1980, o coeficiente de Gini chinês para a renda pessoal nacional estava em 0,29, igual ao da Alemanha ou da Áustria em 2000. Em 2008, chegou a 0,47, o que seria equivalente ao México no mesmo ano, sendo um dos mais desiguais da Ásia. (…), desde 1984, houve uma persistente evolução do índice de Gini. Do mesmo modo, sobretudo nos anos 1990, a parcela dos salários na renda nacional caiu persistentemente”. A partir de 2008, a desigualdade tem diminuído, e em 2019 o índice estava em 0,465. Várias fontes divergem quanto à precisão desses dados, mas a tendência geral é de redução da desigualdade na última década.
17 A economista chinesa Keyu Jin discorre sobre o desenvolvimento e alcance do setor privado na economia do país: “Em 1990, as empresas privadas eram responsáveis por um fração ínfima da produção econômica chinesa; vinte anos depois, eram responsáveis por mais da metade (…). E a partir daí se transformaram na força motriz da economia chinesa, responsáveis por 50% das receitas fiscais, 60% do PIB, 70% das inovações e 80% dos empregos urbanos.” Citação (pg. 78) extraída do livro A nova China, publicado pela editora Edipro (2023).
18 O planejamento estatal desempenha um papel crucial na economia chinesa, coexistindo com mecanismos de mercado. O governo chinês utiliza o planejamento como ferramenta para direcionar o desenvolvimento econômico e social, definir metas e prioridades, e implementar políticas que visam o crescimento e o desenvolvimento. A economista chinesa Keyu Jin (no mesmo livro citado na nota anterior) agrega: “O Estado chinês tem três características principais . A primeira é seu poder: ele dispõe de recursos e de capacidade administrativa para mobilizar rapidamente uma ação coletiva a serviço dos objetivos da nação. A segunda é sua estrutura de centralização política, combinada com a descentralização econômica, que dá espaço para que uma atividade empresarial local criativa ocorra à sombra das orientações centrais. A terceira característica é sua adaptabilidade”. (Pg. 106).
19 Michael Roberts apresenta informações relevantes sobre a participação estatal na economia da China: “Um relatório da Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China (Szamosszegi & Kyle, 2011: 1) constatou que: “A parcela da economia chinesa de propriedade e controle estatal é grande. Com base em premissas razoáveis, parece que o setor estatal visível – empresas estatais e entidades diretamente controladas por empresas estatais – representou mais de 40% do PIB não agrícola da China. Se forem consideradas as contribuições de entidades indiretamente controladas, coletivos urbanos e empresas públicas de TVE, a parcela do PIB de propriedade e controle estatal é de aproximadamente 50%. Os principais bancos são estatais e suas políticas de empréstimos e depósitos são direcionadas pelo governo (para grande desgosto do banco central chinês e de outros elementos pró-capitalistas).
Ao mesmo tempo, o Partido Comunista/máquina estatal se infiltra em todos os níveis da indústria e da atividade na China. De acordo com um relatório de Joseph Fan e outros (Fan & Morck, 2013), existem organizações partidárias dentro de cada empresa que emprega mais de três membros do Partido Comunista. Cada organização partidária elege um secretário do partido. É o secretário do partido o eixo central do sistema de gestão alternativo de cada empresa. Isso estende o controle do partido para além das empresas estatais, empresas parcialmente privatizadas e empresas de propriedade de governos locais ou de aldeias, para o setor privado ou “novas organizações econômicas”, como são chamadas. Em 1999, apenas 3% delas tinham células partidárias. Agora, o número é de quase 13%. A realidade é que quase todas as empresas chinesas que empregam mais de 100 pessoas têm um sistema de controle interno baseado em células partidárias. Isto não é uma relíquia da era maoísta. É a estrutura atual criada especificamente para manter o controle do partido sobre a economia.” Leia aqui artigo completo.
20 Michael Roberts no mesmo artigo citado na nota anterior discorre sobre os mecanismos de controle estatal sobre os fluxos de capitais: “A China continua sendo a exceção flagrante, porque a lei do valor que opera nos mercados e no investimento estrangeiro foi inicialmente totalmente bloqueada e, posteriormente, restringida e controlada por um grande setor estatal, planejamento central e política estatal, bem como pela restrição da propriedade estrangeira de novas indústrias e pela imposição de controles sobre o fluxo de capital para dentro e para fora do país. Como afirmou o renomado economista chinês Yu Yongding (2013): “A China precisa manter seus controles de capital no futuro previsível. Se a China perdesse o controle sobre seus fluxos de capital transfronteiriços, isso poderia levar ao pânico e, assim, as saídas de capital se transformariam em uma avalanche e, eventualmente, derrubariam todo o sistema financeiro.” Foram essas mesmas restrições que permitiram à China expandir o investimento e a tecnologia, empregar grandes quantidades de mão de obra e, de modo geral, evitar o controle de seu destino pelas multinacionais, até agora.”
21 Isabella M. Weber assinala o processo peculiar de incorporação da China ao capitalismo global: “A China contemporânea está profundamente integrada ao capitalismo global. No entanto, o estonteante crescimento chinês não levou o país à completa convergência institucional com o neoliberalismo. Isso desafia o triunfalismo do pós-Guerra Fria, que previa “a vitória incondicional do liberalismo econômico e político” em todo mundo. Citação (pg. 19) do livro Como a China escapou da terapia de choque, publicado pela editora Boitempo (2023).
22 Bernardo Salgado Rodrigues e Bruno Hendle em artigo acadêmico (leia aqui) apresentam a magnitude (já muito expressivos na década passada) dos investimentos externos da China: “Os dados do IED chinês no mundo são significativos para a compreensão desta nova etapa de acumulação de poder e riqueza fora das suas fronteiras nacionais: em 2013, a China possuía o segundo maior estoque de investimento estrangeiro direto no mundo, com aproximadamente 1.8 trilhão de dólares (GALLAGHER, 2016, p.35); em 2014, os bancos de desenvolvimento chineses provisionaram mais financiamento para a América Latina do que o Banco Mundial, o BID, e o US Export-Import Bank (US Ex-Im) juntos (GALLAGHER, 2016, p.65); em 2015, a China se comprometeu a realizar empréstimos de 20 bilhões para a cooperação infraestrutural latino-americana, 10 bilhões em empréstimos preferenciais, 5 bilhões em um fundo de cooperação, todos nos marcos da cooperação China-CELAC”.
23 Os mesmos autores citados na nota acima (no mesmo artigo) apresentam informação sobre os investimentos da China na América Latina: “A China vem expandindo de forma expressiva o investimento direto especialmente na segunda metade da década de 2000, cujo interesse primordial tem sido voltado aos recursos naturais e energia (petróleo, cobre e ferro). O IED chinês na América Latina ficou concentrado, sobretudo, no setor de energia (54,6% do total acumulado entre 2005 e 2013), sendo que deste valor 40% foram direcionados ao segmento do petróleo. As participações de outros setores de atuação das empresas chinesas na América Latina foram: 17,7% em metais; 14% no setor de transporte (automóveis); 4,6 % na agricultura; 4,5% em imóveis.”
24 Como exemplo dessa relação desigual, o Brasil exporta para a China, em grande parte, produtos de comodities, como soja, minério de ferro, petróleo e carne bovina. A soja é o produto mais exportado, seguida do minério de ferro e do petróleo. Outros produtos exportados incluem carne suína, milho, açúcar, celulose e algodão. Já a China exporta ao Brasil uma vasta gama de produtos, com destaque para equipamentos de telecomunicações, plataformas e embarcações, componentes eletrônicos, produtos químicos e diversos produtos manufaturados. A China também exporta veículos elétricos e híbridos para o Brasil, com algumas montadoras chinesas iniciando a produção local.
25 A China teve um aumento notável no IDH, passando de 0,410 em 1978 para 0,761 em 2020, refletindo melhorias na saúde, renda e escolaridade. Durante este período, aproximadamente 850 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza, o que representa um dos maiores processos de ascensão social da história.
26 A China destaca-se em diversas tecnologias de ponta, incluindo energia renovável, veículos elétricos, robótica, 6G, computação quântica, moeda digital e biotecnologia. Outras áreas onde a China lidera são drones, aprendizado de máquina, baterias elétricas, energia nuclear, fotovoltaica, sensores quânticos, extração de minerais críticos, design e fabricação de circuitos integrados avançados, sensores gravitacionais e tecnologia de lançamento espacial.
27 Contrariamente ao dogma neoliberal, a política econômica da China é baseada na presença de um Estado forte, tanto pelo peso das empresas estatais (sobretudo nos setores estratégico, como energia, telecomunicações, sistema financeiro, industrias etc.) quanto pelo pelo papel dirigente do planejamento estatal na condução da economia em seu conjunto.
28 Em 2024, o comércio exterior chinês atingiu um novo recorde, com o valor total das importações e exportações a ultrapassar os 43,85 trilhões de yuans (aproximadamente US$ 5,9 trilhões).  A China é o maior exportador e importador de mercadorias do mundo.
29 A última recessão anual da China foi em 1976.
30 O PIB russo encolheu quase pela metade entre 1992 e 1998. Em 1998, a economia contraiu 5,3%. A expectativa de vida diminuiu 5 anos entre 1988 e 1994, de 69 para 64 anos. 35% dos russos passaram a viver abaixo da linha da pobreza.
31 Reportagem da CNN de outubro de 2023 trazia a notícia: “Detidos e desaparecidos: empresários enfrentam repressão “agressiva” na China. Neste ano, mais de uma dúzia de altos executivos de setores como tecnologia, finanças e imobiliário desapareceram, foram detidos ou sujeitos a investigações de corrupção. Líderes empresariais na China estão sob pressão, à medida que o líder do país, Xi Jinping, regulamenta empresas e fortalece o seu controle sobre a economia”.
32 Reportagem da Exame de fevereiro de 2025 noticiava: “O presidente chinês Xi Jinping destacou nesta segunda-feira, 17, a importância de promover o desenvolvimento saudável e de alta qualidade do setor privado no país. Xi fez essas declarações durante um durante um encontro com empresários, onde discursou após ouvir representantes do empresariado, incluindo das big techs”.
33 Como expressão do aburguesamento de parte leite dirigente chinesa, Xi Jinping lidera, desde 2012, um campanha permanente de combate à corrupção no partido-Estado. Em janeiro de 2025, afirmou que a corrupção é a maior ameaça para o Partido Comunista da China (PCCh).


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